O “NOVO” OLHAR OPOSITOR DA/O ARTISTA NEGRA/O: INDO ALÉM DAS CRISES DE REPRESENTAÇÃO E DISCURSIVIDADE
Foto: Anthony Rodrigues
O título desse texto nasceu de uma série de inquietações percebidas durante meu curto período de pesquisa acadêmica com artistas visuais negros/as na cidade do Rio de Janeiro. Nela, lidei com depoimentos no qual alguns/mas dos/as artistas questionaram o fato de estarem presos/as à lógica da representação dentro do circuito das artes visuais. Em outras palavras, para o/a artista negro/a ser reconhecido/a, seria preciso se enquadrar na estética do realismo “positivo” (hooks, 2019: 199): corpos negros presentes e vivências compartilhadas. Para os espaços expositivos e o público, essas características classificariam uma obra de arte como essencialmente negra. A arte negra aparece como aquela que funde o objeto do sujeito, o/a artista da obra. “Negra”, aqui, vai além de um termo que particulariza o universal (a “arte” ou a arte “branca”). Não se trata apenas de uma arte feita por pessoas negras, na verdade a forma com que o termo é compreendido em curadorias de arte contemporânea foge muito dessa concepção. O “negra” aparece como predicado, aquilo que informa sobre o sujeito – que o completa.
A consequência imediata dessa ideia é a abertura maior de museus e galerias para artistas negras/os que se auto objetivam através do seu trabalho, trazendo à tona discussões sobre o racismo contemporâneo e fazendo com que a negritude possa ser representada de forma imageticamente “positiva”. Em suma, trata-se de um movimento estético-político que reage às relações assimétricas de poder entre aqueles que representavam e os que eram representados nas formações expressivas das artes visuais, principalmente no contexto brasileiro. Assim como na antropologia, esse movimento veio para tornar os anteriormente “representados” – negros/as – parcialmente donos das narrativas sobre si, ou ao menos capazes de fazer reverberar as críticas acerca daquelas representações que reproduziam suas imagens caricatas e estereotípicas.
Em relação ao cinema, apesar de soar muito atual, essa discussão já estava sendo feita nos anos 1980 por bell hooks, nos Estados Unidos, e por cineastas negros como Zózimo Bulbul e Jeferson De no Brasil, também há algumas décadas. A teórica estadunidense argumentava que a mulher negra era vítima de uma representação imagética sempre feita pelo olhar colonizador – branco e masculino – quando, na mesma medida, a espectadora negra era obrigada a reviver a partir do cinema a violência de uma sociedade racista e falocêntrica. Para contornar essa situação, essa mesma espectadora buscava na representação das vivências brancas uma maneira de fabular a própria subjetividade. É nessa linha de pensamento que bell hooks elogia os filmes de Oscar Micheaux (ibdem), diretor que, no contexto da segregação racial e em meio a uma Hollywood branca, conseguiu criar personagens negros/as dotados de papéis invertidos em relação à imagem reproduzida pela sociedade norteamericana[1].
No Brasil, além do já mencionados Zózimo Bulbul e Jeferson De (que fundou um forte movimento batizado de Dogma Feijoada), houve também o Manifesto do Recife (Carvalho; Domingues, 2018; Oliveira, 2019). Ambos propunham um novo olhar sobre a imagem do negro no cinema brasileiro, quase sempre caracterizada pela imposição de estereótipos negativos. O exemplo de maior destaque foi o movimento cultural do Cinema Novo, que sob a justificativa de projetar a narrativa sobre um Brasil mais próximo da “realidade”[2], acabava reduzindo a população negra ao mero lugar da pobreza, subalternidade, ludicidade, violência e ignorância. Com isso, motivados/as pela sub-representação de profissionais negros/as em funções criativas do cinema, diversos/as cineastas negros/as passaram a atuar na renovação estética e discursiva de narrativas negras no audiovisual, na tentativa de ressignificar a imagem alegórica projetada por cineastas brancos na história da sétima arte.
Nesse mesmo contexto, a política de representação “positiva” permanece sendo uma bandeira importante de artistas negro/as brasileiros/as, numa tentativa assumida de fazer ecoar mais ainda as tensões raciais presentes no país. Por outro lado, existe a queixa de artistas visuais e pensadores/as negros/as acerca de uma certa “obrigação” de retratar fielmente corpos negros em seus trabalhos, como se fosse um compromisso político inadiável. Uma das artistas que entrevistei no Rio de Janeiro – mulher, negra e pintora –, me fez esse relato ao ser questionada acerca do motivo de achar que pintores/as negros/as estão fora do circuito hegemônico da arte contemporânea:
Eu sinto que dentro de um circuito contemporâneo não tem tanta referência assim. Quando vejo são artistas que estão trabalhando o corpo figurativo, racializado. É uma galera que está trabalhando a figura negra, porque obviamente a gente não teve representação da nossa figura durante vários séculos. É uma coisa super importante, mas não tem muita circulação, eu não vejo muitas referências. Tem pessoas jovens que estão fazendo pintura abstrata, mas tem mais gente trabalhando a dimensão do corpo negro na pintura, que passa muito pela questão da representatividade, que eu acho importante. Mas não é a minha "pira", eu não consigo me encaixar nisso. E aí, o resto da pintura, quando não é nesse viés, eu sinto que é muito deixada de lado. (Entrevista realizada em 24 de outubro de 2019).
Podemos ver a partir desse relato que estar restrito à política de representação identitária nem sempre é algo bem visto. Na verdade, diversos artistas negros/as questionam esse espaço de legitimação imposto pelo circuito da arte contemporânea, que só aceita expor seus trabalhos sob a ótica da representação de si. Como resposta, existem teóricos da arte negra que estão pensando para além das crises de representação e discursividade. Porém, é preciso destacar que o cenário brasileiro, tanto das artes visuais quanto do cinema, é especificamente distinto do cenário estadunidense. O que significa dizer que reivindicar a política de representação “positiva” talvez esteja mais na “ordem do dia” aqui do que lá, devido às circunstâncias particulares do racismo “à brasileira”.
Arte “negra”: da política de representação à fabulação
O direito de “fabular” a imagem de pessoas negras é reivindicado atualmente pelo crítico cultural Tavia Nyong’o (2018), que chega a batizar um conceito para isso: afro-fabulation. Esse termo tem por objetivo propor uma certa fuga criativa dos rótulos da representação identitária – a tal imagem “positiva” de bell hooks – e também da caricatura negativa da população negra inventada por artistas brancos. Para Nyong’o, é necessário que artistas negros/as pleiteiem para si formas de expressão livremente performáticas e fugitivas; assim, não precisam estarem presos/as aos “lugares de fala” (Ribeiro, 2017) dados à representação negra dentro das artes visuais, normalmente reduzidas à denúncia do racismo ou à sua perpetuação. Em síntese, tratam-se de estratégias discursivas, narrativas e estéticas que pretendem fazer o/a artista negro/a contemporâneo/a escapar das meras políticas de representação identitária nas formas de expressão artísticas – ainda que elas sejam importantes. Para sair desse quadro, o/a artista negro/a e as curadorias de arte contemporânea precisariam incorporar a complexidade de experiências e sentimentos (hooks, 2019) da população negra, suas conexões com sonhos, ancestralidades e ficcionalizações do espaço/tempo presentes também na arte branca – aquela encarada como universal.
Antes do “direito de fabular” de Tavia Nyong’o, nos anos de 1990 o ensaísta francês Édouard Glissant defendia uma espécie de “fuga do realismo” na criação artística e intelectual dos povos colonizados. Em Poétique de la relation (1990), o escritor negro pondera que não há problema em reivindicar a opacidade ao invés da transparência, que para ele significava escapar da lógica ocidental de comunicação de ideias. Em Glissant, a transparência é uma forma de reduzir as diferenças, de torná-las menos densas e poder hierarquizá-las, controlá-las, num exercício de poder. Por outro lado, a opacidade seria a complexidade, a confluência, a multiplicidade e a compreensão das diferenças. Ser opaco, para ele, não é ser “obscuro” – é ser criativo, imaginativo e profundo. A opacidade, nesse sentido, “prefigura o real sem determiná-lo a priori” (ibdem: 54).
Entendo os termos transparência e opacidade como opostos no plano estético-político, assim como “realismo” e “fabulação”. Para artistas negros/as, representarem a si próprios em seus trabalhos artísticos pode significar uma aproximação da transparência, enquanto que as formas expressivas performáticas e fugitivas caminham mais para a opacidade. A ideia de transparência, que também aparece com muita força na obra de Ismail Xavier (2003), é metaforizada pela noção de uma janela que conecta diretamente o espectador com o trabalho de arte. Numa obra transparente nós somos transportados para o interior do universo artístico, reconhecendo ou se reconhecendo nos personagens, seja por eles representarem nossas próprias experiências ou por estarem representados em situações consideradas “reais” (compreendendo o “real” enquanto possibilidade mundana). A transparência no cinema, argumenta Xavier, faz com que o espectador “sinta” a experiência dos/as personagens, sejam elas prazeirosas, dolorosas ou apáticas.
Já na opacidade há uma certa distância entre a obra e o espectador, fazendo com que a subjetividade e a criatividade do/a autor/a sejam respeitadas dentro de um “contrato” momentâneo. Esse movimento, inclusive, quando agenciado por artistas negros/as, é responsável pela ressignificação de correntes estéticas consideradas “universais”, como o surrealismo e o futurismo – agora prefixadas pelo termo afro. Para fugir da jaula do realismo e da transparência, artistas negros/as estão tendo que se reinventar ao se apropriar de estéticas ditas “universais” a partir de um olhar enegrecido.
Hoje, onde as políticas de representação parecem forçar o/a artista negro/a essa posição de “falar de si”, o problema se tornou mais estético do que discursivo. Esses mesmos artistas parecem lutar menos pela posição de quem fala do que pelas posições de como se fala e de quem se fala. Ambas acabam revelando movimentos culturais mais criativos, o que não significa dizer que há o abandono de antigas questões sociais e políticas como a discriminação racial e a colonização. Pelo contrário, são questões que vêm à tona por meio de novas linguagens e símbolos artísticos, produtos tanto do olhar opositor de bell hooks quanto do exercício crítico de fabulação da própria subjetividade. O afrofuturismo, exemplo de maior destaque desse movimento de reinvenção estética, propõe a espectadores(as) negros/as imaginar um futuro possível ou um presente alternativo para povos colonizados.
Nessa perspectiva, artistas negros/as estão tendo que lidar com questões que vão muito além das crises de representação e discursividade. Não é mais possível dizer que o poder de retratar pelos próprios olhos a violência da escravidão, da colonização e do racismo ainda seja a maior das bandeiras para aqueles que tiveram essa posição renegada pelo sistema da arte durante boa parte da história. Kênia Freitas (2019), crítica de cinema que também se apoia na noção de “fabulação crítica” de Nyong’o, ressalta os semelhantes usos estratégicos que a historiadora Saidiya Hartman utiliza para não tornar sua pesquisa sobre a escravidão uma fonte de atualização de processos violentos já conhecidos. A impossibilidade da representação realista, assim sendo, seria o estopim para as formas expressivas mais opacas e fabulativas que nem de longe pretendem perder seu caráter crítico.
É o que eu chamo experimentalmente de “novo” olhar opositor, ao reconhecer no cenário contemporâneo artistas negros/as que parecem estar localizados/as além do debate racial meramente representativo e/ou discursivo. Artistas que estão fundando novos movimentos performáticos, estéticos e culturais sem que isso signifique um abandono de dilemas subjetivos e vivências particulares afetadas pelo convívio diário em uma sociedade racista. Seja como for, a arte negra está rompendo politicamente com o exacerbado realismo e com os recursos apelativos da transparência ao se expandir para além dos famosos “lugares de fala” da lógica identitária. As representações e narrativas sobre si agora vêm marcadas por inovações estéticas, reencantando um mundo já conhecido através de outras perspectivas.
NOTAS
[1] Em Ten Minutes to Live, por exemplo, hooks (2019: 205) ressalta como Micheaux valoriza a figura da mulher negra retinta como mais desejável e merecedora de amor do que a mulher negra de pele clara. O homem negro, por sua vez, é desconstruído enquanto vilão no decorrer do filme.
[2] Movimento chamado por Glauber Rocha de “estética da fome”. Ivana Bentes (2007) brinca com o termo ao propor uma substituição por “cosmética da fome”, já que a imagem estereotipada da população negra e pobre era muito explorada pela sua potencialidade comercial.
REFERÊNCIAS
BENTES, Ivana. Sertões e favelas no cinema brasileiro contemporâneo: estética e cosmética da fome. Alceu, v. 8, n. 15, 242-255. 2007.
CARVALHO, Noel dos Santos; Domingues, Petrônio. Dogma Feijoada: a invenção do cinema negro brasileiro. Revista brasileira de Ciências Sociais, vol. 33, n. 96, 2018.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tocam o real. Pós: Belo Horizonte, v. 2, n. 4, p. 204 - 219, nov. 2012.
FREITAS, Kênia. Fabulações críticas em curta-metragens negros brasileiros. Multiplot. Disponível em: <http://multiplotcinema.com.br/2019/03/fabulacoes-criticas-em-curta-metragens-negros-brasileiros/>. Acesso em: 18 jan. 2020.
GLISSANT, Édouard. Pela opacidade. Revista Criação & Crítica, nº 1: 53-55, 2008.
hooks, bell. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019.
NYONG’O, Tavia. Afro-Fabulations: The Queer Drama of Black Life. New York UP, 2018.
OLIVEIRA, Janaína. “Por um cinema negro no feminino”. In: Lusvarghi, Luiza e Silva, Camila Vieira da. Mulheres atrás das câmeras: as cineastas brasileiras de 1930 a 2018. São Paulo: Estação Liberdade, 2019.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.
XAVIER, Ismail. Cinema: revelação e engano. São Paulo: Cosacnaify, 2003.
Anthony Rodrigues é Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/UFRJ). Licenciado em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ). Atualmente pesquisa artistas visuais e cineastas negros/as. E-mail: rodriguesanthonysilva@gmail.com.
Editor responsável: Guilherme Marcondes