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Marcia Rangel Candido

FLORESTAN FERNANDES: UM CLÁSSICO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS


Parece fora de dúvidas que Florestan Fernandes (1920-1995) seja considerado um clássico das modernas ciências sociais brasileiras. A quantidade de teses e dissertações dedicadas à sua obra, a presença recorrente em ementas de cursos de graduação e pós-graduação e uma recente leva de republicação de seus livros por diferentes editoras atestam a vitalidade do interesse em seus textos, trajetória e até mesmo ação política[1].

Se o processo que torna um autor clássico de fato assegura que suas formulações continuem a circular pelos nichos especializados das ciências sociais, ele também traz um risco colateral que não deve ser subestimado: o clássico pode até ser visto como uma referência incontornável, mas corre igualmente o perigo de ser considerado distante das urgências do presente – afinal, o tempo de sua escrita e as questões em voga eram outras. Dito de outro modo, há sempre a ameaça de uma possível “domesticação” de suas contribuições[2].

No caso específico de Florestan, um dos perigos dessa “domesticação” passa paradoxalmente pelo reconhecimento de seu lugar central na modelagem das modernas ciências sociais no Brasil. Em rápido resumo, podemos dizer que Florestan assumiu como próprio o projeto de legitimação das ciências sociais enquanto ciências rigorosas e que reclamavam a atuação do especialista treinado, num contexto de ainda incerta afirmação pública dessas disciplinas (Arruda & Garcia, 2003). O primeiro livro do autor, A organização social dos Tupinambá, que ganhou o prêmio Fabio Prado da seção paulista da Associação Brasileira de Escritores referente ao ano de 1948, selou publicamente o começo do reconhecimento de seu nome como um dos principais, senão o principal, da nova geração de especialistas. Na década de 1950, além de participar, ao lado de Roger Bastide, da pesquisa da Unesco sobre as relações raciais em São Paulo, Florestan também conquistou a regência da Cadeira I de Sociologia na Universidade de São Paulo, onde fizera sua graduação, obtendo condições de formar um grupo de alunos e assistentes que construíram aquilo que se convencionou chamar mais tarde de “escola paulista de sociologia” (Bastos, 2002). Com esta trajetória exitosa, que se revela ainda mais espetacular tendo em vista suas origens sociais precárias, Florestan constituiu sem dúvidas um vetor decisivo – em combinação com vários outros, vale ressaltar – para os rumos assumidos pelas ciências sociais no país em um momento crucial de sua institucionalização (Miceli, 2012). O ponto que quero desenvolver nesse texto é que, sem desconsiderar a importância da trajetória de Florestan nas ciências sociais brasileiras, muito pelo contrário, suas contribuições não se esgotam nela. Mais especificamente, reputo que seu legado teórico, que continua a se fazer sentir em pesquisas contemporâneas, ainda tem muito a nos interpelar. Não que na obra de Florestan encontremos as respostas acabadas para os desafios teóricos (e políticos) do presente, mas certamente nela existem perguntas que não devem ser desconsideradas (Brasil Jr. & Botelho, 2017).

Nas próximas linhas, pretendo muito rapidamente mostrar como a questão que sempre orientou a reflexão sociológica de Florestan foi a questão democrática. Sem espaço para uma demonstração detida, limito-me a dizer que a pergunta pelas condições e obstáculos sociais de uma ordem social democrática no Brasil é uma espécie de fio condutor que atravessa o conjunto da produção intelectual do autor, a despeito de suas várias inflexões teóricas, metodológicas e mesmo políticas. Para tal, tomo como caso de análise sua pesquisa sobre as relações raciais em São Paulo[3].

Elaborada em diálogo intenso – embora não desprovida de tensões – com as principais lideranças do movimento negro da capital paulistana (Silva, 2018), a contribuição mais importante da obra A integração do negro na sociedade de classes (1965) não está na denúncia ao mito da democracia racial, que já vinha sendo feita na imprensa negra há anos (Bastos, 2009). Mas numa abordagem complexa do processo de mudança social no país, capaz de conjugar vários planos de análise, tal como os efeitos da urbanização e da industrialização na alteração do padrão de estratificação de classes, as assimetrias nos canais de ascensão social entre populações brancas e negras, os distintos regimes de socialização presentes entre imigrantes europeus e os egressos da escravidão e os diferentes ritmos da mudança cultural. Assim, o estudo da população negra na cidade de São Paulo assumiria um caráter heurístico, pois permitia avaliar o sentido mais geral manifesto pela mudança social, que passaria por um teste-limite: a integração social do grupo com o pior ponto de partida no pós-abolição.

O livro, ao contrário do que assinala seu título, enumera diversos fatores que impediram a plena integração da população negra em uma ordem social fundada em direitos e garantias sociais mínimas. Dentre eles, o principal seria a combinação tóxica de anomia e pauperização que alcançou grandes parcelas deste segmento durante o processo de urbanização acelerada da cidade, dificultando o acesso a recursos materiais e de solidariedade cruciais para a competição na nova ordem social. Essa combinação dificultaria, ademais, uma adequada ressocialização para o que Florestan chamava de “ordem social competitiva”, conceito que condensa as condições sócio-estruturais e psicossociais necessárias ao capitalismo moderno. Mesmo assim, no começo do segundo volume de A integração do negro, Florestan assinala que emergiu, a despeito das condições adversas, uma importante mobilização social da população negra da cidade de São Paulo nas primeiras décadas do século XX, cuja agenda de reivindicações visava justamente a abertura da “ordem social competitiva”, isto é, sua efetiva universalização para além da população branca. E, indo mais além, no bojo dessa mobilização ainda teria sido forjada uma compreensão muito mais avançada do problema, pois as principais lideranças negras já assinalavam que, no Brasil, preconceito e discriminação racial caminhavam juntos (Bastos, 2015).

Combinando, no mesmo andamento, as dimensões macroestruturais da mudança social e o plano da agência coletiva dos sujeitos negros, Florestan procura mostrar que as reivindicações dos movimentos negros foram condenadas à quase indiferença por parte da sociedade inclusiva, revelando o caráter conservador da modernização da sociedade brasileira. O mito da democracia racial operaria sua função primordial aí, pois ao fazer crer que a “ordem social competitiva” era aberta indistintamente a brancos e negros, essa crença simultaneamente deslegitimava o protesto racial e favorecia soluções individualizadas aos problemas coletivos da população negra. No mesmo passo, este mito tornaria nítido o caráter autocrático do poder e da cultura política na sociedade brasileira, posto que seria incapaz de tolerar o conflito como eixo estruturante de uma ordem democrática. Basta pensar que até hoje a legitimidade das demandas articuladas pelos movimentos negros não tem seu pleno reconhecimento no debate público[4].

Embora a defesa da tese de cátedra que deu origem ao livro A integração do negro na sociedade de classes tenha ocorrido poucos dias depois do golpe militar de 1964, os argumentos que o embasam foram sendo construídos ao longo do período democrático dos anos 1950-60 – democracia cujos limites, por óbvio, são hoje bastante evidentes. Distante de uma visão eufórica, comum à sua geração, de que o processo de modernização caminhava para uma efetiva democratização da sociedade brasileira, Florestan já percebia muito claramente, em sua pesquisa sobre a questão racial em São Paulo, que o controle conservador da mudança social impediria a plena realização de uma ordem social democrática.

Depois do golpe militar, quando a ditadura impõe a Florestan e a seus discípulos mais diretos a aposentadoria compulsória, a nitidez quanto ao estilo autocrático de revolução burguesa exigiria do autor formulações mais abrangentes – eis a matéria de A revolução burguesa no Brasil (1975), que localiza o padrão de modernização da sociedade brasileira à luz do processo global de reprodução do capitalismo dependente na periferia. No entanto, gostaria de frisar que o tema dos limites à democratização já se encontrava por inteiro em suas formulações anteriores ao golpe, como minha rápida reconstrução de A integração do negro na sociedade de classes buscou ressaltar[5].

Ainda que a sociedade brasileira tenha se transformado enormemente desde então, a crise democrática contemporânea torna patente que as perguntas levantadas por Florestan não perderam sua atualidade. Afinal, nunca foi tão urgente pesquisar os mecanismos pelos quais atua o controle conservador da mudança, em seus vários níveis, e a consequente naturalização da “autocracia burguesa”, para usarmos uma de suas categorias. Isso significa que o lugar de Florestan não pode ficar congelado no passado, pois sua sociologia é capaz de tocar no cerne dos problemas do presente. Ou, para recuperarmos a advertência de Italo Calvino (2007): “Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos.”

NOTAS

[1] Para uma lista dos trabalhos sobre Florestan Fernandes publicados entre 1969 e 2006, cf. Mariosa (2007).

[2] Na edição nº 1 de 2018 da revista Sociologia & Antropologia, editei, junto a André Botelho e Maurício Hoelz, um dossiê dedicado a Florestan Fernandes e que teve como objetivo principal reabrir suas contribuições para as discussões teóricas do presente. Disponível em: http://www.sociologiaeantropologia.com.br/v08n01/

[3] Para uma análise mais detalhada das pesquisas feitas por Florestan Fernandes a respeito da questão racial no país, cf. Bastos (2015) e Cohn (2015).

[4] Para uma análise comparada da sociologia política de Florestan Fernandes, cf. Brasil Jr. & Botelho (2016).

[5] Para uma abordagem comparada das principais inovações teóricas de Florestan Fernandes, cf. Brasil Jr. (2013).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARRUDA, Maria Arminda Nascimento. GARCIA, Sylvia Gemignani. (2003). Florestan Fernandes, mestre da sociologia moderna. Brasília: Paralelo 15.

BASTOS, Elide Rugai. (2002). “Pensamento social da escola sociológica paulista”. In: MICELI, S. (Ed.). O que ler na ciência social brasileira. São Paulo: Sumaré, p. 183–230.

__________________. (2009). “Comentário a Roberto Motta”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 24, n. 69, p. 163–170.

__________________. (2015). “Sessenta anos da publicação de um relatório exemplar”. Sinais Sociais, v. 10, n. 28, p. 29–54.

BRASIL JR, Antonio. (2013) Passagens para a teoria sociológica: Florestan Fernandes e Gino Germani. São Paulo; Buenos Aires: Hucitec; Clacso. Disponível aqui.

BRASIL JR, Antonio.; BOTELHO, André. (2016). “Passagens do rural ao urbano e participação social: a sociologia política brasileira dos anos 60”. Cadernos CRH, v. 29, n. 77, p. 209–227.

BRASIL JR, Antonio.; BOTELHO, André. (2017). “Florestan Fernandes para dimensionar a força do presente”. In: BOTELHO, A.; STARLING, HELOISA (Eds.). República e democracia: impasses do Brasil contemporâneo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, p. 205–221.

CALVINO, Italo. (2007). Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras.

COHN, Gabriel. (2015). “A margem e o centro: travessias de Florestan Fernandes”. Sinais Sociais, v. 10, n. 28, p. 11–28.

MARIOSA, Duarcides Ferreira. (2007). Florestan Fernandes e a sociologia como crítica dos processos sociais. Tese de doutorado: Campinas: Unicamp.

MICELI, Sérgio. (2012). Vanguardas em retrocesso: ensaios de história social e intelectual do modernismo latino-americano. São Paulo: Companhia das Letras.

SILVA, Mário Augusto Medeiros da. (2018). “Órbitas sincrônicas: sociólogos e intelectuais negros em São Paulo, anos 1950-1970”. Sociologia & Antropologia, v. 8, n. 1, p. 109–131.

Antonio Brasil Jr. é professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É autor do livro Passagens para a teoria sociológica (Hucitec; Clacso, 2013). Disponível aqui.

 

Editora responsável: Marcia Rangel Candido

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