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Marcia Rangel Candido

A IMAGEM POR TRÁS DA IMAGEM


Para falar sobre as várias camadas que existem na evolução e na maturidade alcançada pela nova obra da dupla Glenda Nicácio e Ary Rosa, o longa-metragem Ilha, que estreia em competição no 51° Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, é preciso pensá-lo como uma pintura, resultado de inúmeras camadas de tintas sobrepostas, mas que parece muito simples na imagem revelada a olho nu. Para compreendê-lo, precisaremos mobilizar elementos presentes no campo extra fílmico até sermos resgatados de volta para dentro da obra.

Atualmente, o cinema contemporâneo é dominado por várias disputas de narrativas: por um lado, o eterno conflito entre cinema hegemônico - que conquista enormes financiamentos e atinge grande público - e autoralidade independente de resistência e guerrilha, que perpassa as micropolíticas do fazer cinema e as questões afirmativas de inclusão e representatividade; por outro, o confronto à invisibilidade que a Ancine recentemente supôs realizar, enquanto, na realidade, desenhava um novo quadro de incentivo extremamente restritivo e excludente, no qual ainda menos cineastas conseguem acessar o privilégio de fazer cinema com respaldo de investimento público. Lembremos: este respaldo é um direito constitucional de fomento à cultura. O que muita gente confunde com "favor", é, na verdade, uma obrigação legal, tanto em relação à cultura quanto à educação.

Pois vários momentos do filme Ilha, Glenda Nicácio e Ary Rosa aludem diretamente a essa dicotomia e assumem se inserir num contexto que aquiesce a essas disputas em seu modo de produção, e igualmente dentro da história, de maneira metalinguística. O fazer cinema e suas dificuldades inerentes estão representados a partir de uma premissa bastante simples, quase como numa relação hipossuficiente entre os cineastas e a Ancine ou o Ministério da Cultura. A sinopse do filme reforça o recurso desta metáfora, falando sobre um jovem misterioso que sequestra um cineasta famoso para filmar a história de sua vida – algo próximo à premissa de “Cecil Bem Demente” de John Waters ou “Louca Obsessão” de Rob Reiner. Mas só numa primeira olhada, pois a trama não aceita facilmente uma roupagem de gênero e envereda por vários tons muito mais abertos e lúdicos. Afinal, o que a história deste rapaz teria de tão importante para forçar um famoso diretor a filmá-lo contra a sua vontade? Por que logo este cineasta é escolhido para o trabalho?

O cineasta sequestrado é o personagem de Henrique - firmemente interpretado pelo ator e dramaturgo Aldri Anunciação, que dá ritmo e maturação à cena -, um homem negro famoso, originário da Bahia e laureado no mundo inteiro por um cinema que se acomodou aos padrões comerciais, sucessos rasos em detrimento da arte revolucionária com a qual começou sua carreira. Por si só, isto já é uma declaração irônica, pois infelizmente o Brasil não possui muitos representantes negros contemplados no sistema hegemônico e, por isso mesmo, deixa de conceder o devido reconhecimento a esse recorte social, conforme os dados da APAN (Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro) evidenciam.

Este paradoxo entre o que é reconhecido e o que não é, mas cuja verdade não pode ser negada, se apresenta no filme com a citação explícita ao saudoso cineasta, pai do cinema marginal, Rogerio Sganzerla, situado à margem do cinema tido como comercial: “somos um cinema de subdesenvolvimento, por natureza e convicção” – frase narrada pelo outro protagonista de Ilha, o sequestrador Emerson (um artesão cênico e corporal representado pelo ator Renan Motta, atualmente também na novela “Segundo Sol”). Vários outros momentos brincam de questionar o que é considerado “cinema” pelos cânones, e o que é tática de sobrevivência da imagem e manifesto da mesma identidade que costuma ser roubada pelo mercado homogêneo. Ou seja, não há separação entre a regra e a exceção, pois tudo é exercício necessário para se chegar na resultante artística do que vemos na telona. Podemos ver isto representado a partir do momento em que o real diretor de fotografia do filme, Thacle de Souza, também é inserido na trama como operador de câmera do jovem Emerson, que passa a ser dirigido pelo personagem sequestrado de Henrique. Uma grande metalinguagem se retroalimentando da narrativa.

Os movimentos de câmera passam a se digladiar entre as vontades fictícias dos personagens e a vontade real do roteiro e de seus diretores - Glenda Nicácio e Ary Rosa –, num intercâmbio entre ângulos inusitados e técnicas experimentais que dialogam com os desejos de romper com o previsível e arriscar. Isto gera reações contraditórias para quem aceita o risco como parte da história e para quem acredita que os diretores possam ter perdido as rédeas de seus personagens. Mas esta parece ter sido exatamente a intenção: provocar tal estado de confusão, que levam a resultados ímpares.

Para ilustrar, há uma cena de sexo em que o diretor de fotografia abandona a câmera no chão, saindo do quadro; ou o momento em que Emerson e Thacle debatem sobre a luz estourada e, enquanto trocam de filtro na lente da câmera, deixam “sem querer” o personagem do cineasta sequestrado escapar momentaneamente – a cena quer dizer muita coisa, pois debate a técnica e o modo alternativo de abordar a imagem justamente quando o personagem do diretor, famoso por ter aberto concessões para o cinema hegemônico, foge da cena, porque a experimentação não pode ser ditada por um agente de mercado. Da mesma forma, a sequência onde eles escalam supostos atores não-profissionais entre os cidadãos da Ilha brinca com a improvisação e a diferença entre uma péssima atuação (que está sendo “atuada” por um ator de verdade) e atores dentro da tela interpretando atores a julgar a canastrice alheia. Todas são decisões que caminham num tênue limiar entre aceitar a autocrítica e fazer uma crítica ao olhar quem lhe julga de fora – como uma resposta ao olhar crítico do padrão imposto.

Mas esse tensionamento sobre a legitimidade da estética perante a ética das subjetividades de escolha não é estranho aos cineastas Glenda e Ary por já terem concorrido e sido multipremiados ano passado com seu trabalho vanguardista e transgressor Café com Canela, na 50ª edição do Festival de Brasília. Na ocasião, haviam ficado no epicentro de um conflito pelo qual não pediram, mas que ao mesmo tempo se tornava inevitável. Seu cinema anti-hegemônico e de ocupação territorial de espaços não abarcados pelo imaginário do senso comum, gerou uma polarização da crítica e de público como há muito não se via no Festival. De um lado, a demanda reprimida de inúmeras narrativas contidas num filme multifacetado, que não conseguia nem queria prestar contas de caber em uma única obra. Do outro lado, uma tradição de modelos pré-estabelecidos que não sabiam necessariamente como lidar com aquela transgressão.

Tudo isto foi algo muito próximo ao rompimento que o Cinema Marginal provocou no Cinema Novo na virada da década de 1960 para 1970, de modo que é bastante acertada a deferência de Ilha ao cinema de Sganzerla que, se estivesse vivo, provavelmente legitimaria a transgressão. São muitas as histórias que precisam ser contadas e desejam transbordar feito cachoeira numa indústria que renega sua existência. Um cinema como o realizado pela Rosza Produções, por mulheres negras como Thamires Vieira e Larissa Fulana de Tal, em pleno Recôncavo Baiano, que respeita as origens predominantemente afrodescendentes da região e respira uma desconstrução positiva de como as pessoas enxergam o outro. A imagem por trás da imagem..., ou melhor, uma ilha, que é justamente uma formação terrena que existe em dois mundos: o submerso e o que emerge a olho nu. As raízes banhadas pelo mar que fincam a origem da vida, e os frutos e flores das árvores que brotam do alto de suas montanhas ante o nascer do sol a cada novo dia.

Sobre o final do filme Ilha, em sua maior reviravolta, que não iremos adiantar aqui para evitar spoiler, basta dizer que é dedicado às crianças, ao seu maior público alvo, ou seja, às futuras gerações, que recepcionarão e realizarão o futuro da sétima arte. – Crianças estas que podem estar perigando perder o acesso à cultura por causa de novas políticas públicas de conservadorismo e retração, como se a arte também não fosse um direito fundamental do qual precisamos para a alma, assim como do ar para os pulmões. A disputa de narrativas, que hoje coloca o cinema num tribunal inquisitório pelas próximas eleições, se torna personagem principal da história. O que decerto é irônico.

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ILHA

Direção: Ary Rosa e Glenda Nicácio Ficção, 94 min, 2018, BA, 16 anos Elenco: Arlete Dias, Aldri Anunciação, Renan Motta, Valdinéia Soriano, Aline Brune, Sérgio Laurentino, Thacle de Souza e Ridson Reis.

Filippo Pitanga é advogado, jornalista e atua como crítico, curador e professor de cinema. É Membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro - ACCRJ; Professor na Academia Internacional de Cinema - AIC; Curador do Festival Internacional Colaborativo Audiovisual - FICA.VC. e de Cineclubes no Estação Net de Cinema; Editor-chefe do Almanaque Virtual, colunista da Justificando da Carta Capital e membro do Podcast Cinema em Série.

Contato: filippopit@yahoo.com.br

 

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