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Marcia Rangel Candido

PIONEIROS: GUERREIRO RAMOS - UMA SOCIOLOGIA PERIFÉRICA A SERVIÇO DO POVO


Guerreiro Ramos leciona curso em Belo Horizonte, em 1952.

Foto extraída da tese de doutorado de Ariston Azevedo (2006).

Nos primeiros anos de consolidação da sociologia brasileira, Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982), sociólogo baiano e militante do movimento negro, se destaca pelo viés crítico da compreensão dos fundamentos e funções das Ciências Sociais, pelo engajamento público no debate de interpretações e projetos de desenvolvimento nacionais e pela abordagem inovadora das relações raciais e do lugar do negro na constituição histórica do país. Esses temas, que se interpenetram em sua obra, refletem uma vida oscilante entre o serviço público, a academia e o ativismo político junto aos movimentos negros e às fileiras do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). A participação de Ramos no ambiente político-intelectual foi, em grande medida, interrompida em decorrência do regime ditatorial que se instaurou no Brasil, ocasionando seu exílio nos Estados Unidos em 1967, onde atuou como professor e pesquisador. Seu regresso ao país, planejado para meados dos anos 1980, nunca se concretizou devido a um câncer que o levou a óbito em 1982[1].

O estilo particular e a língua ferina contribuíram para que Guerreiro Ramos não se consolidasse de pronto na carreira acadêmica ou fosse associado a uma escola de pensamento que permitisse continuadores de seu trabalho. Ocupando as margens da história do pensamento social brasileiro por um longo período, o autor foi apropriado de forma fragmentária nos diversos debates intelectuais que o mobilizaram. O resgate recente do sociólogo nas Ciências Sociais brasileiras se deu por temáticas e não deu destaque a coesão do autor, ao longo de sua obra, que relaciona o entendimento do conhecimento social consciência crítica da sociedade que o produz, compromissada com seu desenvolvimento intelectual e político[2]. A partir deste fio condutor, apresentaremos a produção do autor em diferentes temas e fases de sua trajetória.

O intelectual negro e de família pobre começou os estudos na Bahia, onde trabalhou em jornais e no serviço público do estado, que lhe concedeu bolsa para estudar no Rio de Janeiro. Seus escritos desta época, de cunho jornalístico e literário, expunham a preocupação com o lugar do negro na sociedade brasileira, como no livro de poemas intitulado O drama de ser dois (1937)[3]. No Rio de Janeiro, se formou na primeira turma de Ciências Sociais da então Faculdade Nacional de Filosofia, em 1942 e, no ano seguinte, concluiu a faculdade de Direito que iniciara na Bahia, sendo empregado no Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), onde lecionou cursos de sociologia, e no Departamento Nacional da Criança, onde publicou alguns artigos sobre o tema. Em 1952, torna-se professor da Escola Brasileira de Administração Pública (EBAP) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) onde permaneceu até seu exílio nos Estados Unidos, em 1967.

Neste período, integrou também a assessoria do governo Vargas (1951-54), participando do grupo intelectual que fundou o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), em 1954. Concomitantemente, militava junto ao Teatro Experimental do Negro (TEN), no qual promoveu um setor de pesquisa social. Ainda que afastado do meio estritamente universitário, Ramos permaneceu ativo nos debates públicos sobre a sociologia e o desenvolvimento nacional que vigoravam, buscando espaços em que pudesse desenvolver a disciplina enquanto instrumento de conscientização das condições históricas nacionais.

As atividades combinadas no funcionalismo público e na docência lhe renderam uma produtividade variada, dispersa em artigos de periódicos, jornais e projetos de pesquisa nas instituições que compunha. Este legado intelectual foi sistematizado em livros publicados na década de 1950, como a obra Cartilha Brasileira do Aprendiz de Sociólogo (1954), depois republicada em A Introdução Crítica à Sociologia Brasileira (1957), em grande parte dedicada à análise das relações raciais no Brasil, e A Redução Sociológica (1958), o polêmico trabalho em que melhor condensa sua perspectiva da necessidade de reconfiguração da sociologia nacional para que esta cumprisse sua tarefa crítica no desenvolvimento histórico do Brasil.

Em A Introdução Crítica à Sociologia Brasileira, Ramos contesta a atitude sociológica de situar o negro enquanto “questão” ou “problema”, pois isso o delimitaria enquanto objeto e não como sujeito histórico da formação nacional, como se não fosse o negro componente de grande parte da população brasileira, mas um grupo ainda a ser incorporado. Esta concepção, segundo o autor, tinha raízes num intelectualismo exógeno, mal adaptado, manifesto também na mentalidade da população. O racismo aparece no referido trabalho como uma patologia do branco, caracterizada por um complexo de inferioridade que negaria a própria realidade nacional, da qual o negro fazia parte enquanto contingente demográfico fundamental, separando em discurso o que era indissociável historicamente. Neste contexto, o negro que ascende socialmente, a elite negra, formaria uma vanguarda potencialmente minimizadora do racismo, aproximando-se do que hoje entendemos como a importância da representatividade. Suas conclusões eram informadas também por sua pesquisa militante inovadora no âmbito do TEN, onde realizava “grupo-terapias” para compartilhar e superar coletivamente experiências de opressão[4].

Em A Redução Sociológica, livro produzido no âmbito das discussões do ISEB de projetar intelectualmente o desenvolvimento brasileiro, Guerreiro considerava que a intelectualidade nacional estava tomada por uma recepção acrítica do pensamento estrangeiro, que perdurava desde as linhagens pioneiras enraizadas na colonização. Para superá-la, o autor operava um procedimento metodológico que tinha como objetivo sistematizar a assimilação crítica do patrimônio sociológico estrangeiro, referenciado numa experiência social e histórica específica e eurocentrada, cuja origem é acobertada quando transportada para a realidade de cientistas sociais em contextos periféricos[5]. A redução sociológica, entendida como esta atitude crítico-assimilativa, não seria somente um exercício conceitual, mas uma ferramenta essencial para a construção de uma ciência social mais autônoma e menos alienada. Coletivamente, a consciência crítica emerge quando uma sociedade aspira seu lugar de sujeito histórico, tornando-se centro de suas referências intelectuais e culturais ao repensar a cultura universal na perspectiva de sua autoafirmação, dissipando paulatinamente as características coloniais. A luta contra o colonialismo em sua forma sistêmica, parte desta aspiração dos colonizados quando “pretendem ser, eles também, sujeitos de um destino próprio” (RAMOS, 1965 [1958] p. 49).

Guerreiro afastou-se do ISEB em 1958, por conflitos internos com seus membros, mas manteve-se ativo nos debates dos rumos nacionais em ambiente de efervescência política. Assim, publicou O Problema Nacional do Brasil (1960), A Crise do Poder no Brasil (1961) e, finalmente, Mito e Verdade na Revolução Brasileira (1963). Pretendendo projetar-se enquanto ideólogo do projeto do PTB, foi eleito suplente de deputado pelo então Estado da Guanabara, condensando neste livro suas críticas em relação às vias, ideias e grupos políticos, tanto liberais, quanto vinculados ao Partido Comunista Brasileiro. O sociólogo descrevia ambas as vias como reprodutoras da recepção acrítica de modelos nacionais exógenos, advogando em prol da esquerda trabalhista que emergiria da própria realidade nacional.

Cassado do seu cargo político como deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) após o golpe de 1964, Guerreiro Ramos continuou na EBAPE, onde produziu ainda Administração e Estratégia do Desenvolvimento (1966), em que seguia sua conciliação entre a sociologia e a prática administrativa, gerencial e organizacional, tema que marca sua produção posterior. A pressão da ditadura forçou seu exílio: o intelectual ocupava um lugar incômodo e ambivalente, pois era um comunista aos olhos dos conservadores e um anticomunista aos olhos dos comunistas.

O Brasil lhe dera essa característica amorfa para resistir à identificação com categorias e lugares sociais particulares; o exílio de Ramos aguçou o senso de liminaridade, de outsider, a postura do homem parentético[6], um afastamento que permitia um olhar crítico, que ele julgava necessário para a prática do cientista social ou do administrador. No período em que vinculou-se à Escola de Administração Pública da University of Southern California (USC), em Los Angeles, o sociólogo produziu aquilo que seria o conteúdo mais negligenciado na retomada recente de sua trajetória. Relegados a “sua produção na administração”, os textos menos visitados são, ironicamente, seus textos mais elaborados em termos teóricos.

O tema do “não pertencimento” presente em seu livro de poemas, O Drama de Ser Dois (1937), metaforizando sua situação racial e de classe no Brasil, como um homem negro educado entre os brancos intelectuais, é reatualizado em seu exílio nos Estados Unidos. Suspenso, dividido entre lugares e identidades, havia vivido duas culturas distintas e sentia que ele não pertencia à nenhuma das duas[7]. Seu último livro, The New Science of Organizations (1981) era para ele uma das suas obras mais completas, e certamente um dos investimentos teóricos mais densos dedicados à atitude redutora, aguçada neste ambiente. Conta Guerreiro que em sua viagem de 1981 ao Brasil, um ex-aluno o visitou com um exemplar do livro recém-lançado e comentou:

Você também não pertence à comunidade americana. Este livro é um livro escrito em inglês por um acadêmico brasileiro.

Ao qual Guerreiro Ramos respondeu:

É exatamente isso. Eu não pertenço a coisa nenhuma. Eu não sou um acadêmico americano. […] esse livro não tem nada a ver, é contra toda a ciência americana. Mas isso eu devo ao Brasil, porque o Brasil me deu essa amorfia, esse caráter amorfo. Eu não estou em nada, em coisa nenhuma, não pertenço a coisa nenhuma. Eu sou eu. Eu estou onde o meu interesse está. Onde não está, não existe. (Guerreiro Ramos in: LIPPI, 1995, p. 159).

NOTAS

[1] Para detalhes de sua trajetória aqui apresentada, ver Oliveira (1995), Azevedo (2010) e o Anexo A de Bariani (2008).

[2] Argumento reiterado em Oliveira (2006), Rezende (2006) e Bariani (2008). Sobre este resgate, ver o Dossiê sobre o autor publicado no Caderno CRH, v. 28, n. 73, em que os diversos artigos mostram a apropriação do autor em variados temas. Conferir em especial a introdução de Bringel, Lynch e Maio (2015), que apresenta o balanço do dossiê e da produção recente.

[3] Para uma lista extensa das obras de Guerreiro Ramos, embora não definitiva, consultar o Anexo B da tese de Bariani (2008).

[4] Os resultados destas atividades eram publicadas junto ao TEN, como em Uma experiência de grupoterapia (1950). Sobre a militância e o pensamento de Guerreiro sobre raças, ver Ramos (2015) e Maio (2015), para detalhes de sua sociologia do conhecimento, ver Costa (2006).

[5] Os trabalhos de Filgueiras (2012), Maia (2015) e Cavalcanti (2016) analisam o resgate do autor na perspectiva pós-colonial, situando-o como um precursor de várias críticas colocadas posteriormente por esta corrente.

[6] Aquele que examina a vida social como espectador, procurando abster-se de julgamentos, permanecendo além das circunstâncias internas e externas, a fim de melhorar entender seu meio social (Almeida, 2014, p. 77-78).

[7] Sobre este período de sua trajetória e o argumento da liminaridade de Guerreiro ver Brown (2016).

O que ler para conhecer:

ALMEIDA, Adilson de. (2014). "Interview". In: CAVALCANTI, B. et al. (Ed.). Guerreiro Ramos: Coletânea de Depoimentos/Collection of Testimonials. Rio de Janeiro: Editora FGV.

AZEVEDO, Ariston. (2006). A sociologia antropocêntrica de Guerreiro Ramos. Diss. Tese de doutorado. Florianópolis, UFSC.

AZEVEDO, Ariston. (2010). "Trajetória intelectual de Guerreiro Ramos". Revista de Administração, n. 3.

BARIANI JR, Edson. (2008). Guerreiro Ramos e a redenção sociológica: capitalismo e sociologia no Brasil. Tese de Doutorado. Universidade Estadual Paulista, Araraquara.

BRINGEL, Breno. LYNCH, Christian. MAIO, Marcos Chor. (2015). "Sociologia periférica e questão racial: revisitando Guerreiro Ramos". Caderno CRH, v.28, n.73, p.9-13.

BROWN, Diana. (2016). "Guerreiro Ramos in the United States: his life through the lens of political exile". ILHA v. 18, n. 1, p. 205-227.

CAMPOS, Luiz Augusto. (2015). "“O NEGRO É POVO NO BRASIL”: afirmação da negritude e democracia racial em Alberto Guerreiro Ramos (1948-1955)". Caderno CRH, v. 28, n. 73.

CAVALCANTI, Maria Fernanda Rios; ALCADIPANI, Rafael. (2016). "International Development in the Brazilian Context in the 1950s and 1960s: A postcolonial reading of Guerreiro Ramos". Cadernos EBAPE, v. 14, n. 1, p. 12-23.

DA COSTA, João Vicente Ribeiro Barroso et al. (2006). "A Sociologia do Conhecimento de Guerreiro Ramos". Revista Sociais e Humanas, v. 19, n. 1, p. 21-29.

FERES JUNIOR, João. (2015). "A atualidade do pensamento de Guerreiro Ramos: branquidade e nação". Cad. CRH. vol.28, n.73, p.111-125.

FILGUEIRAS, Fernando. (2012). Guerreiro Ramos, a redução sociológica e o imaginário pós-colonial. Caderno CRH, v. 25, n. 65.

LYNCH, Christian Edward Cyril. (2015). "Teoria pós-colonial e pensamento brasileiro na obra de Guerreiro Ramos: o pensamento sociológico (1953-1955)". Caderno CRH, 28(73), 27-45.

MAIA, João Marcelo Ehlert. (2015). "A sociologia periférica de Guerreiro Ramos". Caderno CRH, v. 28, n. 73.

MAIO, Marcos Chor. (2015). "Cor, intelectuais e nação na sociologia de Guerreiro Ramos". Cadernos EBAPE, v. 13.

OLIVEIRA, Lucia Lippi. (2006). "O olhar sociológico de Guerreiro Ramos". Mnemosine, v. 2, n.2.

OLIVEIRA, Lúcia Lippi. (1995). A sociologia do Guerreiro. Editora UFRJ.

REZENDE, Maria José de. (2006). "Guerreiro ramos e a sociologia em" mangas de camisa": uma proposta de intervenção nos processos de mudança social". Cadernos CERU, n. 17, p. 33-51.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GUERREIRO RAMOS, Alberto. (1937). O drama de ser dois. Salvador: [s.n.].

______. "Uma experiência de grupoterapia". (1950). In: NASCIMENTO, Abdias et al (org.) Relações de raça no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Quilombo, p. 21-26.

______. (1953). O processo da sociologia no Brasil: esquema de uma história das ideias. Rio de Janeiro.

______. (1954). Cartilha brasileira do aprendiz de sociólogo: prefácio a uma sociologia nacional. Editorial Andes.

______. (1957). Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro: Editorial Andes Ltda.

______. (1963). Mito e verdade da revolução brasileira. Rio de Janeiro: Zahar.

______. (1958). A redução sociológica. Introdução ao estudo da razão sociológica. 2 ed. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro Ltda.

______. (1966). Administração e Estratégia do Desenvolvimento: Elementos de uma Sociologia Especial da Administração. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas.

______. (1981). A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas.

Felipe Macedo é bacharel em Ciências Sociais e Licenciado em História pela Fundação Getúlio Vargas, mestre e, atualmente, doutorando em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisa história das Ciências Sociais e sociologia do conhecimento, com interesse particular em regiões periféricas como África e América Latina.

Contato: fbm.macedo@gmail.com

Gabriela Caruso é doutoranda em Sociologia no IESP-UERJ sob a orientacao do Prof. Dr. José Maurício Domingues, ligada ao Núcleo de Estudos de Teoria Social e América Latina (NETSAL), onde desenvolve pesquisas sobre trajetorias intelectuais, sociologia do conhecimento e sociologia da sociologia. Atualmente é pesquisadora visitante na Universidade de Syracuse junto ao departamento de Women and Gender Studies, onde desenvolve sua tese sobre a institucionalização dos estudos feministas, de gênero e de mulheres nas Ciencias Sociais brasileiras sob a co-orientacao da Profa. Dra. Chandra Talpede Mohanty.

Contato: caruso.all@gmail.com

 

Editora responsável: Marcia Rangel Candido

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