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Marcia Rangel Candido

ASCENSÃO E QUEDA DO (P)MDB: DIÁRIO DE UMA PESQUISA


Foto: Natalia Maciel Block

A eleição deste ano é um divisor de águas para a política brasileira. O fim da polarização entre Partido dos Trabalhadores (PT) e Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) na eleição presidencial, o crescimento meteórico do antes nanico Partido Social Liberal (PSL) e a maior renovação do Congresso já vista desde a redemocratização são algumas das novidades na política nacional que vão render muitos debates.

Nos últimos tempos, a profissão de cientista político no Brasil se transformou em tarefa árdua. Além de ver os investimentos em Ciência e Tecnologia caírem ladeira abaixo, os pesquisadores(as) da área precisam lidar diariamente com o surgimento de um novo sobressalto, fenômeno, variável ou outlier que exige rever agendas de trabalho ou começar outras. Não tem sido diferente comigo. Assim como a curva do gráfico do orçamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o objeto de estudo que dediquei cinco dos meus dez anos de carreira acadêmica está em trajetória descendente. Refiro-me à acachapante derrota do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) nas urnas.

Em 2010 ingressei no doutorado em Ciência Política com o objetivo de desenvolver uma pesquisa sobre partidos no Brasil. Existia um extenso debate sobre o papel dos partidos na formação de coalizões de governo. Segundo a literatura, na arena legislativa os partidos que fazem parte da coalizão dão base de apoio para o presidente passar sua agenda no Congresso em troca de participação no governo (Meneguello, 1998). Os líderes partidários cumprem papel fundamental ao indicarem o voto de sua bancada e garantirem a disciplina de seus correligionários (Figueiredo & Limongi, 1999, 2008; Figueiredo, 2007).

Esta agenda de pesquisa já estava estabelecida e eu não via como poderia fazer uma nova contribuição para a área. No entanto, percebi que existia carência de trabalhos sobre as organizações partidárias em si. Pouco estudávamos sobre a estrutura interna dos partidos e como decisões são tomadas do lado de fora das casas legislativas e dentro das presidências das siglas. Ora, a decisão de participar de um governo, de apoiar ou não a agenda do presidente, bem como a cobrança por disciplina, são estágios da política anteriores à atividade no parlamento. Compreender como se estruturam internamente os partidos lançaria luz a outras variáveis importantes do processo político que praticamente não abordávamos.

No período democrático recente a escassez de literatura sobre o tema é evidente: temos obras clássicas que abordaram partidos na República de 46 e durante o regime militar, e alguns poucos trabalhos sobre o PSDB e o antigo Partido da Frente Liberal (PFL) (para mais detalhes sobre essa literatura veja este texto impecável de Talita Tanscheit). Contudo, nunca na história deste país um partido foi tão estudado quanto o PT. A primeira onda de publicações se dedicou a investigar as particularidades do único partido de nosso sistema partidário criado a partir das massas. A segunda onda tentou entender as mudanças que o PT sofreu ao conquistar o poder, principalmente depois do escândalo do mensalão.

Como o PT tinha se convertido no objeto de desejo dos estudiosos por sua excepcional raiz popular e ideologia claramente de esquerda, resolvi me entregar ao lado oposto da força e me dedicar a entender o seu extremo oposto: o PMDB. Sim, o PMDB é o extremo oposto do PT. É um partido que foi criado à força endogenamente e sem nem um traço ideológico. Surgiu em consequência do golpe de 1964 a partir de quadros políticos já estabelecidos. Uniu todas as forças de oposição ao regime militar, de moderados a comunistas. Era uma frente com um objetivo único: o retorno à democracia. Não existia um programa comum, a oposição ao regime era o que mantinha membros tão diversos sob a mesma sigla.

Minha decisão por estudar o PMDB criava sentimentos conflituosos nas pessoas. Ouvi comentários diversos, desde “mas por que alguém se interessaria por um partido tão irrelevante, que se coliga com qualquer um? ” até “nossa, excelente ideia! A gente precisa entender esse ator fundamental que faz parte de todas as coalizões de governo”. Uma dúvida era comum a todos: por que o PMDB, criado para ser oposição ao regime militar, se tornou um partido governista? O objetivo da minha pesquisa era responder esta questão. Mas antes disso eu precisava demonstrar porque ele era um objeto de estudo importante e, acima de tudo, em ator imprescindível para se entender a política no Brasil.

Não vou me estender com detalhes sobre o seu protagonismo na luta pelo retorno à democracia, na Assembleia Constituinte e no impeachment de Collor. Esta parte da história do PMDB é conhecida e não se pode negá-la. Vou focar aqui nos seus anos de governismo. Ao contrário de muitos colegas e jornalistas com quem conversei ao longo da pesquisa, sempre estive convencida de que o PMDB das décadas de 1990 e 2000 não era um ator coadjuvante, que abriu mão de seu protagonismo para ser apenas um carona.

A primeira vez que apresentei meu projeto em uma disciplina de seminário de tese[1] fui pega de surpresa por uma pergunta inusitada do professor Marcus Figueiredo. “Você sabe o que é um mamute? ”. Demorei uns segundos para responder, sabendo que estava prestes a cair em uma pegadinha. “Sim”, respondi. “Um mamute é um elefante? ”. “Não”, respondi reticente. “O PMDB é um partido? ”. Desta vez ele mesmo respondeu: “o que sabemos a partir da teoria é que partidos buscam poder. Como pode um partido que não busca poder ser um partido? Igual o mamute: ele não é um elefante, mas parece um. Mas o que é um mamute, se não é um elefante? O PMDB parece um partido, mas é realmente um partido? Isso é o que você deverá desvendar na sua tese: o mamute PMDB”.

Infelizmente não tive oportunidade de respondê-lo. Se tivesse, também apelaria para a zoologia e diria que, na verdade, o PMDB, ao menos até 2014, agia como um avestruz. O avestruz coloca a cabeça na terra para escutar melhor a chegada do inimigo. Ele esconde a cabeça mas exibe as penas, que funcionam como uma forma de camuflagem. Existem diferentes meios de buscar o poder na política nacional: mostrar a cara e disputar eleições presidenciais é uma delas. O PMDB escondeu a cabeça mas exibiu as penas: sua força nas eleições legislativas e na política local o tornou um ator indispensável na coalizão de governo. Com bancadas gigantes e sem nenhuma ideologia, o partido gozou de amplo poder de barganha. Tinha poder sim, era determinante para que presidentes aprovassem sua agenda legislativa. E, em troca, recebia participação no governo... Muita... E por muito tempo não precisou apresentar a cara à tapa.

Na tese destaquei duas características que tornavam o PMDB um parceiro indispensável para os governos: a “centralidade” e o “peso”. A “centralidade” diz respeito à sua posição de centro no espectro ideológico. Segundo a teoria, o centro representa a moderação dos extremos e por isso o ator que aí se posiciona seria mais flexível com relação a políticas e, consequentemente, um parceiro preferencial na coalizão (Axelrod, 1970; Einy, 1985). Porém, precisei fazer uma problematização com relação ao PMDB: a literatura é unânime ao classificá-lo como centro, mas este centro não é a moderação aos extremos ideológicos e sim a total falta de ideologia. Convenhamos que é bem mais fácil barganhar sobre políticas com um parceiro que não tem preferência nenhuma, certo?

O “peso”, por sua vez, se refere ao tamanho do partido, mais especificamente quanto ao número de assentos que detêm no Congresso. Segundo algumas teorias de formação de coalizões, o formador do governo, no nosso caso o presidente, preferiria chamar para seu gabinete o partido com maior bancada e que lhe garantisse número suficiente de votos no legislativo. O ideal seria constituir o governo com uma quantidade reduzida de partidos que tivessem grande número de cadeiras no parlamento. Quanto menor o número de parceiros, menor é o custo da barganha política (Peleg,1980; Roozendaal, 1990).

Desta forma, o PMDB reunia características que o tornava indispensável para qualquer coalizão de governo. Seu poder de barganha era tremendo e se enganava quem dizia que ele era coadjuvante. Boa parte da minha pesquisa foi dedicada a explicar como essas características foram desenvolvidas pelo partido ao longo do tempo. Isso renderia um segundo artigo. Mas cabe explicar que o retorno à democracia e o falecimento de Ulysses Guimarães foram os gatilhos para uma mudança da organização interna do partido, a qual denominei “conversão institucional”. Fazendo bom uso de suas características de “centralidade” e “peso”, as novas lideranças peemedebistas começaram a enxergar a janela de possibilidades que se abria ao fazer parte do governo. Essa guinada ocorreu principalmente com a chegada de Michel Temer à presidência do partido e à sua atuação como presidente da Câmara dos Deputados. A aproximação da sigla ao governo Fernando Henrique aconteceu, em grande medida, através de Temer. No segundo governo FHC e nos governos de Lula foi possível observar um processo de reforço da lógica governista.

Quando defendi a tese em 2014 o PMDB estava em seu auge. Detinha uma das maiores bancadas no Congresso, a vice-presidência e o maior número de ministérios no governo Dilma. Mas um ano depois o avestruz resolveu colocar a cabeça para fora da terra. O que aconteceu é história conhecida por todos. A partir daqui começo a levantar novas hipóteses, desenvolver outros argumentos e imaginar possíveis caminhos, algo que nós, cientistas políticos brasileiros, mais temos feito ultimamente.

Obviamente devemos considerar o crescimento da fragmentação partidária como um dos fatores para a queda da representação do PMDB no Congresso. Todavia, a redução pela metade da bancada peemedebista não é explicada somente pela fragmentação. Apenas números não são capazes de estimar a derrota que o partido sofreu. Seus principais quadros não foram reeleitos: o ex-presidente da sigla Valdir Raupp, o atual Romero Jucá, o presidente do Senado Eunício Oliveira, os ex-ministros Edison Lobão e Leonardo Picciani são apenas alguns nomes. O presidente Michel Temer deixará o governo com a menor popularidade de todos os tempos.

Ao colocar a cabeça para fora da terra o PMDB cometeu um erro estratégico que pode ser mortal. Viu a oportunidade de chegar à Presidência sem a necessidade de pagar os custos políticos de concorrer em uma eleição presidencial, entretanto, passou a se expor como nunca antes. Voltou os holofotes para si e entrou na mira das investigações da Lava-Jato. Nunca esteve preparado para ocupar o mais alto cargo da República. Em um contexto de crise política e econômica só conseguiu enxergar através das lentes da ganância de seu governismo e sede por cargos. Agora está pagando o preço.

Em entrevista coletiva Romero Jucá divulgou que o PMDB não fará parte do próximo governo. Apesar de achar o anúncio prematuro, acredito que independente de qual seja o presidente em 2019, a participação do PMDB na coalizão não é mais certa. O partido perdeu muito do seu poder de barganha no governo Temer e com o pífio resultado deste pleito. Suas características essenciais estão fragilizadas. O PMDB se tornou apenas mais um no conglomerado centrão.

A eventual participação em um governo Haddad só ocorrerá se o PT conseguir superar a traição. Mas traição dói. Porém, tendo em vista a polarização política e social que estamos vendo nessas eleições, e a guinada à direita das bancadas no Congresso, não elimino a possibilidade de uma futura parceira entre PT e PMDB, já que toda base de apoio será bem-vinda. Por outro lado, no caso de uma vitória de Bolsonaro, a vida do PMDB será ainda mais difícil; com seu peso reduzido e um Congresso tendendo à direita provavelmente o governo terá maior inclinação a montar uma coalizão dispensando o PMDB.

Mas isso tudo é leitura de bola de cristal. Nunca se sabe o que irá acontecer no dia de amanhã na política brasileira. Lanço aqui algumas sugestões de agenda de pesquisa para os próximos aventureiros. Mas já adianto, não é trabalho para amadores.

NOTAS

[1] As disciplinas de seminário de tese são parte fundamental da vida de uma estudante de doutorado. Nesta fase, a pesquisadora tem o seu projeto de pesquisa avaliado e discutido, tanto pelos colegas de formação, quanto por professores com carreira consolidada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AXELROD, Robert. (1970). Conflict of Interest. Chicago: Markham.

EINY, Ezra. (1985). “On Connected Coalitions in Dominated Simple Games”. International Journal of Game Theory , v.2, pp. 103-25.

FIGUEIREDO, Argelina. (2007). “Government Coalitions in Brazilian democracy”. Brazilian Political Science Review, 1(2), 182–216.

FIGUEIREDO, Argelina. LIMONGI, Fernando. (1999). Executivo e Legislativo na Nova Ordem Constitucional (2° ed.). Rio de Janeiro: Editora FGV.

________________________ (2008). Política Orçamentária Presidencialismo de Coalizão. Rio de Janeiro: FGV Editora.

MENEGUELLO, Rachel. (1998). Partidos e Governos no Brasil Contemporâneo (1985 - 1997). Rio de Janeiro: Paz e Terra.

PELEG, Bezalel. (1980). “Coalition Formation in Simple Games with Dominant Players”. International Journal of Game Theory, v.1, pp. 11- 33.

ROOZENDAAL, Peter Van. (1990). “Centre Parties and coalition cabinet formation: a game theoretic approach”. European Journal of Political Research, 18(3), 325–348.

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Para ler mais:

Natalia Maciel Block defendeu a tese de doutorado Velhas Raposas, Novos Governistas: o PMDB e a Democracia Brasileira em 2014 no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Para acessar o conteúdo completo do estudo clique aqui.

Natalia Maciel Block realizou pós-doutorado em Ciência Política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde atualmente é pesquisadora associada do Doxa.

 

Editora responsável: Marcia Rangel Candido

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