AS PEDRAS QUE MOVIMENTAM: FEITIÇARIA ENTRE OS APURINÃ DO BAIXO PURUS
Festa apurinã - Frederico Magalhães, 2016.
Minha pesquisa [1] de mestrado em antropologia social foi realizada entre os Apurinã, um povo indígena de língua aruak que vive ao longo do rio Purus, no Sul do Estado do Amazonas. Morei em uma aldeia durante três meses, de abril a julho de 2016, onde realizei o trabalho de campo. A seguir, apresento o relato de uma experiência presenciada que guiou todas as minhas questões de pesquisa sobre os Apurinã. Por ser um tema delicado, optei por omitir o nome das pessoas envolvidas e da aldeia onde ocorreram os eventos apresentados.
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Estava há apenas dez dias em uma aldeia apurinã quando um dos moradores sentiu uma forte dor no braço direito. Ele não conseguia mais carregar seu filho pequeno no colo e nem subir na palmeira para colher açaí. Colocar a rede de pesca no rio, uma atividade simples para os Apurinã, também lhe causava uma dor incômoda. Remar até o roçado para arrancar mandioca se tornou uma tarefa quase impossível.
Em uma abafada manhã amazônica, daquelas que prenunciam um aguaceiro, encontrei ele próximo à sua casa. Por um descuido, entre os muitos que os antropólogos cometem durante o trabalho de campo, o cumprimentei com batidinhas em seu braço.
— Ai! Ai! , gritou ele, se contorcendo de dor.
Pedi desculpas pelo meu gesto atabalhoado e fiquei surpreso ao perceber que seu braço estava imobilizado, mesmo sem ele estar usando tipoia. O apurinã disse que já havia tomado alguns remédios dos brancos, como dorflex, mas que não estava adiantando nada, a dor no braço continuava forte. Perguntei o que tinha acontecido, se ele havia carregado muito peso ou se machucado em alguma atividade. Ele negou balançando a cabeça e, em seguida, sentenciou:
— Alguém jogou pedra em mim.
Se os remédios dos brancos não curam a dor, os Apurinã procuram um pajé para curá-los. Como não havia nenhum pajé curador na aldeia em que estávamos, pegamos no mesmo dia uma canoa motorizada, conhecida na região como “rabeta”, e, depois de três horas de viagem atravessando o Purus e florestas alagadas, chegamos à Tapauá, a cidade mais próxima. Estacionamos a canoa na casa flutuante de um pajé paumari [2], um homem conhecido na região por suas habilidades de cura. Ele apareceu na porta e, após os cumprimentos iniciais, examinou o braço do apurinã. Tocou-o levemente com as mãos, fechou os olhos e, por fim, disse que apareceria à noite para tratá-lo.
Havíamos acabado de jantar um delicioso peixe moqueado quando o pajé paumari entrou na casa em que estávamos. Deu boa noite a todos e começou a arrumar seus apetrechos em cima de uma mesa. Colocou álcool em um copo e o cobriu com um pano branco. Acendeu três velas: posicionou uma do lado direito do copo, outra do lado esquerdo e uma terceira vela atrás. Finalizou os preparativos pedindo que o apurinã se sentasse no chão. O silêncio que tomou conta do ambiente foi o prelúdio do ritual de cura.
O pajé paumari fechou os olhos, virou de costas para o público e se aproximou da porta de entrada da casa. Ficou alguns segundos parado com a cabeça baixa e, quando se virou de volta para nós, sua figura corporal já havia se modificado. Estava curvado, como se tivesse envelhecido alguns anos nesses poucos segundos. Começou a cantar uma música em uma língua incompreensível – provavelmente paumari – e a se movimentar em ritmo de dança. Parou e, como se estivesse cheirando um prato de comida, deu algumas fungadas no ar, caminhando em direção ao paciente.
Aproximou-se, e passou as mãos em sua cabeça; deslizou-as pelos cabelos, percorrendo o pescoço até chegar ao braço direito. Apalpou como se fosse iniciar uma massagem, mas logo a boca do pajé se aproximava da região dolorida. Colou os lábios no braço do apurinã e, com gesto um brusco, sugou o local. Ato contínuo, caiu para trás, batendo com as costas no chão. Levantou com dificuldade, fez um movimento de se espreguiçar e caminhou lentamente em direção à porta. Levou as mãos à boca, tossiu violentamente e expeliu algo em sua mão. Em seguida, voltou a cantar e a dançar como no início da cura. Parou, apoiou uma das mãos na mesa em que estavam as velas e a abriu lentamente. Todos nós nos aproximamos dele e com olhares apreensivos vimos que na palma de sua mão havia um prego enferrujado de, pelo menos, cinco centímetros.
O pajé levantou o pano branco e mergulhou o prego no copo com álcool. Fez um gesto para que o enfermo se aproximasse. Este se levantou, caminhou em direção ao copo, olhou o conteúdo e perguntou em português:
— Quem jogou pedra em mim foi um parente da aldeia? — perguntou o apurinã.
O pajé balançou a cabeça em sinal de confirmação.
— Como ele é? — indagou novamente.
— É alto e misturado: apurinã com branco — respondeu o pajé, e com um gesto indicou que, para saber quem era o feiticeiro, ele deveria olhar novamente o copo.
Durante alguns segundos o apurinã ficou observando o prego imerso em álcool. As chamas das velas balançavam e, por estarem próximas ao copo, coloriam de vermelho o líquido transparente.
De súbito, ele disse:
— Já sei quem foi que fez isso!
Ele havia reconhecido o culpado por sua imagem corporal estar refletida no copo.
Na manhã seguinte o apurinã já apresentava uma melhora significativa e estava praticamente curado: seu braço já quase não doía e ele não reclamava mais da dor. Prova disso é que, ao contrário da viagem de ida para Tapauá, em que pediu ao seu filho mais velho para conduzir a canoa motorizada, na viagem de volta, ele mesmo utilizou seu braço para comandar o motor e nos levar de volta à aldeia.
Pouco tempo depois que chegamos, ele e sua mulher percorreram todas as dez casas da aldeia para informar aos outros moradores o que havia ocorrido em Tapauá. De família em família, eles relataram que o pajé paumari havia tirado um prego de seu braço e informaram que o pajé feiticeiro responsável pelo ataque morava na própria aldeia. Eles fizeram a acusação de maneira privada, mas objetivavam que sua repercussão fosse pública. Para a minha surpresa, após passar por nove das dez casas, eles também caminharam em direção à última casa que restava, justamente a residência de quem eles acusavam de ser o autor do ataque de feitiçaria.
Após a saudação inicial entre a vítima e suposto feiticeiro, o primeiro perguntou:
— Foi você que jogou pedra em mim, não foi?
Antes que o acusado pudesse responder, a mulher emendou:
— E não joga pedra em mim! Eu sei que foi você [que enfeitiçou meu marido]!
O acusado deu uma risada constrangida, negou que fosse feiticeiro, disse que não sabia nada sobre pedras e que, por isso, não tinha nenhuma responsabilidade pela agressão.
Foram esses acontecimentos que me levaram a tentar compreender a dinâmica da feitiçaria entre os Apurinã e as implicações políticas dessas agressões na relação entre os membros dessa população indígena. Como apresento na dissertação, os pajés apurinã, tal como em outros povos indígenas da região do Purus (como os Paumari, Deni ou Jarawara), diferenciam-se das pessoas comuns por possuírem pedras no corpo, que são chamadas na língua apurinã de arabani. Apesar de eu nunca as ter visto, pois apenas os pajés conseguem vê-las, elas não são pedras de fato, no sentido de rochas minerais, mas sim pedras mágicas. Os Apurinã traduzem arabani por pedra, pois, segundo eles, elas são pequenas, brilhantes e de formato esférico. Desse modo, “jogar pedra” é a expressão que os Apurinã utilizam para se referir a essas pedras mágicas enviadas por um pajé feiticeiro contra o corpo de outra pessoa.
Todas as capacidades dos pajés advêm ou da potência das pedras mágicas, ou são elas mesmas a matéria utilizada em suas ações. Aqueles que passam pelo processo ritual de iniciação recebem as pedras de um pajé (avô, pai, ou alguém que tenha relações próximas com a família do neófito). Com as pedras recebidas, o iniciante torna-se pajé e se habilita para efetuar determinadas ações.
Eles tornam-se capazes de enviar feitiços contra os seres humanos e ainda curar aqueles que foram enfeitiçados. Quando os pajés pretendem enfeitiçar alguém, eles devem adquirir algum objeto pequeno e pontiagudo, para só então, mobilizar as pedras que estão em seu corpo. A força das pedras interiores anima o objeto exterior, transformando-o em uma substância patogênica. Ambos são jogados juntos, como se estivessem atrelados, até penetrarem no corpo da vítima. O objeto em questão é escolhido pelo próprio pajé feiticeiro e só irá se materializar quando for extraído por um pajé curador.
No caso relatado no início deste texto, vimos um exemplo disso: através da sucção, o pajé paumari extraiu um prego do braço do apurinã. Só quando a pedra feitiço foi removida do corpo do doente é que todos puderam vê-la em sua forma física, como um prego enferrujado. Os Apurinã também mencionaram outros objetos que já viram ser removidos do corpo de uma pessoa enfeitiçada: lascas de madeira, espinhas de peixes, pedaços pontiagudos de plástico etc. Esses são alguns entre muitos artefatos diminutos e perfurantes que podem ser enviados por um pajé.
Além de enfeitiçar, eles também conseguem estabelecer a interlocução com seres não-humanos (espíritos e animais, basicamente), fato que pode ocasionar agressões desses seres contra os humanos ou mesmo garantir a proteção e a cura. Sendo assim, para os Apurinã todo o pajé tem o que eles chamam de um “lado ruim” e um “lado bom”: o primeiro está relacionado à predação/agressão, e o segundo está relacionado a evitar que a predação/agressão se concretize. Se as pedras forem utilizadas para realizar uma ação considerada positiva, ele será visto pelos seus vizinhos como um pajé bom; caso contrário, se fizer algo tido como negativo, ele será reputado como um pajé mau. No entanto, essas qualificações não são fixas: classificar um pajé de bom ou mau depende do ponto de vista que uma pessoa ou uma parentela tem sobre ele e/ou determinado acontecimento.
Quando ocorre uma fatalidade ou enfermidade com alguém, como no relato apresentado, as famílias apurinã se mobilizam politicamente para convencer umas às outras de quem foi o pajé responsável pelo ataque de feitiçaria. Quando uma família consegue convencer as outras de que sua perspectiva é a verdadeira, o pajé tido como culpado é expulso da aldeia com sua família. Essas e outras desavenças, tanto passadas quanto atuais, provocam fissões nas aldeias e ocasionam, ainda hoje, emigrações de apurinã do Purus para partes cada vez mais a jusante desse rio.
No momento em que fui embora da aldeia já havia consenso sobre quem era o culpado pelo envio de pedras feitiço. Depois que a vítima e sua mulher circularam por todas as casas contando o que havia ocorrido em Tapauá, o morador considerado culpado foi exatamente aquele acusado inicialmente pela vítima do feitiço. A vítima e sua mulher conseguiram convencer a maioria de seus vizinhos de que ele era realmente um pajé mau feiticeiro, mesmo o acusado se dizendo inocente. Segundo o que eles me disseram, o culpado e sua família estavam prestes a ser expulsos, dando continuidade às fissões que nunca cessam.
O que procurei demonstrar em minha dissertação, e que aqui aparece como um fragmento, é que a feitiçaria advinda do poder das pedras que os pajés possuem no corpo atravessam a relações entre os Apurinã, tanto passadas quanto atuais, provocando o movimento migratório dessa população indígena pelo rio Purus.
NOTAS
[1] MAGALHÃES, Frederico Amorim. As pedras que movimentam: relações políticas entre os Apurinã do baixo Purus. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2018.
[2] Os Paumari são um povo indígena de língua arawá que habitam a mesma região dos Apurinã.
Frederico Magalhães é Mestre em Antropologia Social (PPGAS/MN/UFRJ) e bacharel em Ciências Sociais (IFCS/UFRJ). Tem como interesse de pesquisa etnologia, com foco nas populações indígenas das terras baixas da América do Sul. Desde 2016 desenvolve pesquisa sobre a cosmologia, a história, as relações políticas e migração dos Apurinã, um povo indígena de língua aruak que vive ao longo do rio Purus (Amazonas/Brasil).
Contato: fred-amorim@hotmail.com
Editora responsável: Luna Ribeiro Campos