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Marcia Rangel Candido

LUZ NA DOCÊNCIA – DEZ ANOS DE UMA POLÍTICA PÚBLICA PARA O AUDIOVISUAL NA ESCOLA


Divulgação Programa de Alfabetização Audiovisual

Em 2018, o Programa de Alfabetização Audiovisual [1] completa uma década de atividades ininterruptas, tendo proporcionado a muitos estudantes e professores momentos únicos de experiências, encontros, invenções e descobertas com o cinema. Por ser voltado principalmente para professores e estudantes das redes públicas de ensino, com suas ações inteiramente gratuitas, o projeto se configura como uma política pública de democratização audiovisual, a partir da crença no caráter universal do acesso à arte, à cultura, à tecnologia e aos meios de produção do cinema e de suas áreas afins.

Segue abaixo o prefácio da publicação que nasce do objetivo de difundir as reflexões produzidas no 3º Seminário Internacional de Educação e Cinema: Luz na Docência, realizado no primeiro semestre de 2018, na Cinemateca Capitólio Petrobras. O Seminário reuniu pensadores das áreas de Cinema e Educação, educadores das redes públicas de ensino, profissionais que atuam em projetos da área e professores e estudantes universitários. Com o tema Luz na Docência, o evento objetivou valorizar o trabalho dos educadores que se engajam na função de manter vivo o lugar do cinema na escola, explorando seus atravessamentos na formação dos estudantes, na prática docente e na estrutura escolar.

Organizado por Maria Angélica dos Santos [2], Angelene Lazzareti [3] e Juliana Vieira Costa [4], o livro está sendo distribuído pelo Programa de Alfabetização Audiovisual (contato por alfabetizacaoaudiovisual@gmail.com) e em breve será disponibilizado em formato PDF no blog do projeto: http://alfabetizacaoaudiovisual.blogspot.com/

Dez anos-luz!

(A importância de completar um tempo e o convite à reflexão)

Maria Angélica dos Santos

Com dez anos de experiências na alfabetização audiovisual, a tarefa de escrever sobre o tema continua sendo um desafio vivo; em parte porque o Programa que hoje celebramos nunca foi arquitetado como um desígnio intelectual em si, traduzido em linguagem acadêmica. Minha vivência nele sempre foi conduzida pelo tato de quem desbrava território, atenta aos sinais que o caminho oferece. Conhecendo o caminho conforme os obstáculos o traçavam, avançamos sem a pretensão de desenhar um mapa. Por isso, agora com dez anos de percurso, segue sendo difícil imaginar o mapa, a fórmula, a palavra exata. A certeza é que havia uma direção para aonde ir, direção dada pelo desejo urgente de fazer, pela paixão pelos filmes e, sobretudo, pela crença na escola.

Como primeiro passo, recorro às imagens. Nossos arquivos dão conta de uma infinidade delas. Muitas semelhantes, outras nem tanto. Como já descreveu a literatura, os álbuns de fotografias nos convidam a (re) viver as memórias, não como imagem fidedigna do passado, mas como reconstrução presente do que foi vivido. O passeio por nossos arquivos de imagens nos apresenta alunos, professores, cineastas em cenários de salas de cinema e espaços escolares. Quase sempre grupos. Muitas vezes felizes.

Na memória, as imagens que temos são quase sempre de grupos: alunos, crianças, jovens, professoras. Foi um itinerário pontilhado pelos afetos, afetos que nos traduzem. São imagens de atenção, de descoberta e de alegria. Não é possível relembrar agora se assistiam à uma comédia, se estavam entre amigos, se comemoravam alguma coisa ou se entravam pela primeira vez em uma sala de cinema. Ou se estavam retornando depois de décadas. Mas viviam um momento especial e essas são as lembranças mais vivas desses dez anos, que juntamos pelo caminho e nos ajudam a refazê-lo na memória.

Embora fotográficos, esses registros sugerem uma profusão de movimento. Gente entrando e saindo do cinema, ônibus chegando da escola, movimento para cima e para baixo nas escadarias, a incessante circulação em espaços novos, que é sempre descoberta. Para nós, a alfabetização audiovisual fez criar movimento por trajetos até então desconectados, abrir um caminho entre espaços que se desconheciam. O mesmo vale para nós nesse processo: minha lembrança é de uma equipe em movimento, em criação, em que o enfrentamento de cada problema se tornou uma experiência genuína de construção de conhecimento. Não era, afinal, nosso movimento a mecânica repetição do procedimento que o preconceito imputa ao funcionalismo público. Em movimentos originais, às vezes imprudentes, às vezes desequilibrados, criamos cada vez mais recursos para poder avançar mais e melhor.

As imagens desse arquivo também têm seus sons. Alguns deles são difusos como a cacofonia de vozes infantis que subitamente invadiam a Usina do Gasômetro, anunciando a Sala P. F. Gastal cheia. Outras vezes, próximos, nítidos e, com algum encantamento, descobrindo a recém-restaurada Cinemateca Capitólio. Ou, ainda, o rumor festivo que invadia o CineBancários, reverberando pelo Centro Histórico a eterna descoberta do cinema. A clareza dos sons das perguntas pelo Campus Central da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que foram se tornando apropriação da Sala Redenção, muitas vezes acompanhadas daquela promessa certeira: “Eu vou estudar aqui!”.

A presença da escola é ruidosa, porque a educação é sonora, coletiva, falada, incontinente. Às vezes o que vem à memória é o som limpo e perfurante de uma pergunta surpreendente, dessas surpresas que nos arma a argúcia singela das crianças. O som das risadas em uníssono, o som da polêmica, o som do pacto, do susto, da surpresa. O silêncio do encantamento. Silêncio instante.

E muitos foram os aplausos que soaram: aos convidados, aos oficineiros, aos filmes, à filmagem concluída, aos colaboradores, às professoras. Penso nesses aplausos com um sentido forte, como trilha sonora dos reconhecimentos recíprocos sem os quais não se manteria o desejo de fazer. Do desejo ao aplauso o Programa foi crescendo, pois é como se cada onda de aplausos disparasse o desejo de fazer melhor. E cada novo projeto, cada nova frente de trabalho exigia mais e agregava mais gente, com outros saberes, com novos olhares que o desejo de fazer colocava em movimento trazendo outros desafios, dificuldades e lições.

E conosco, os filmes. Cada um abriu uma janela nessa história, levou-a para fora de si. Porque quando o filme começa, todo o resto fica em suspenso. Naquele momento ele preside um universo próprio de pensamentos, revelações, inquietações e conhecimento. Cada filme é uma história, e nossos dez anos são feitos delas.

São os filmes testemunhos de tempos e de situações que estão dentro e fora da escola, de lugares, pessoas, possibilidades ora remotas, ora imediatas. Algo que aprendemos nessa trajetória é que não há como explicar os filmes para quem esteve dentro da sala de cinema. Se de explicação se tratasse, ainda que trabalhosa, a educação para o audiovisual seria muito mais simples. O sentido real da obra se descortina de formas distintas conforme movimenta subjetividades; o filme converte-se, então, em matéria-prima para a construção de impressões, detalhes, analogias, relações de si com a história. O cinema transborda o conteúdo programático. Ao viver no cinema uma história que tangencia a sua própria, cada um descobre sentidos próprios, do lúdico ao intrigante, da memória à imaginação. É preciso colocar algo de si no filme para que esses sentidos aflorem. Nosso desafio sempre foi alimentar a sensibilidade e as oportunidades para que esses encontros acontecessem. Pois os filmes, quando circulam na escola, são experiência que resulta em conversa, em texto, em encontros e principalmente em novos filmes. Aproximar os filmes da escola sempre foi o que nos mobilizou como equipe, o que nos guiou na falta de um mapa.

Também nos moveu a crença no poder de contar uma história, de passar de espectador a narrador, de sair do indivíduo que assiste para o grupo que se organiza para produzir uma história. Por isso, as oficinas de criação nunca tiveram o propósito de definir competências como quem treina força de trabalho. Ter a possibilidade de contar uma história com uma câmera significa, em alguma medida, conhecer como as histórias são feitas nessa linguagem. Ou seja, deparar-se com as escolhas, os meios, as formas, os momentos que constituem o que na sala escura do cinema aparece já fechado, pronto, imediato, real. Nesse sentido, a experiência de estar na criação do filme dispara uma apropriação mais profunda da linguagem, e, com ela, da capacidade crítica em um mundo hoje atravessado por imagens e telas.

Se há uma mensagem que trazemos desse percurso é que a alfabetização audiovisual já não cabe nos limites do nosso projeto, nem em qualquer outro dos muitos, em si corajosos e desbravadores, que têm surgido pelo país. Dessas iniciativas concretas constituímos uma plataforma para elaborar, do ponto de vista político e pedagógico, uma política pública consistente e continuada, inserida na teia cotidiana da escola. Pensar a alfabetização audiovisual em um horizonte de universalização cidadã é um desafio posto, e talvez cada vez mais incontornável. Parece urgente transbordar as experiências concretas e locais para um debate sistemático, incluindo novas vozes e novas especialidades, sobre o planejamento e a consecução de uma política abrangente de alfabetização audiovisual. É justamente quando os olhares sobre a educação parecem cada vez mais estreitos, imediatos e contábeis que precisamos de uma perspectiva criativa, crítica e apontada para o futuro. Porque é pelo cinema que aprendemos a trabalhar a educação como formação de sujeitos de sua história.

Nossa trajetória foi um encontro com tantos e tantas que nos mostraram a força da rede, de contar com os apoios, que comungavam o fascínio pela presença desconcertante do cinema, a invasão irreversível da arte, e o nosso sonho de transbordar essa experiência para uma política pública consistente e continuada.

NOTAS

[1] Projeto realizado em parceria pela Coordenação de Cinema, Vídeo e Fotografia, da Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre e a Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, atualmente financiado pelo Ministério da Cultura do Governo Federal.

[2] Maria Angélica dos Santos é socióloga e especialista em Projetos Sociais e Culturais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Trabalha na Prefeitura de Porto Alegre, Secretaria da Cultura, Cinemateca Capitólio, na coordenação do Programa de Alfabetização Audiovisual. É associada da Rede Kino-Rede Latino Americana de Educação, Cinema e Audiovisual e da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual.

[3] Angelene Lazzareti é doutoranda em Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Mestre em Artes Cênicas pela mesma universidade e formada em Artes pela FURB. É pesquisadora, artista e produtora cultural. Compõe a equipe do Programa de Alfabetização Audiovisual desde 2013. Em 2018, produziu o 3º Seminário Internacional de Educação e Cinema: Luz na Docência.

[4] Juliana Vieira Costa é mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, graduada em licenciatura em Artes Visuais pela mesma Universidade, Produtora do programa de Alfabetização Audiovisual desde 2012 e associada da Rede Kino-Rede Latino Americana de Educação, Cinema e Audiovisual e da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual.

 

Editora responsável: Luna Ribeiro Campos

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