UMA TESE DE DOUTORADO É UMA PERFORMANCE: SENTIDOS DA PRODUÇÃO CIENTÍFICA SOBRE O ESTADO[1]
Quando eu ainda estava na metade do doutorado em Ciências Sociais, diante dos desafios colocados pelo objeto da minha pesquisa – uma organização internacional interestatal com sede no Brasil, voltada à coordenação de políticas internacionais para a região amazônica – uma professora comentou: “Daniela, você é mesmo insistente!”. Devo dizer que, no processo de concluir a escrita da tese, percebi a pertinência deste comentário. Como eu poderia dizer que não fui insistente? Insistentemente, me debrucei sobre questões, as confrontei, as refiz. Insistentemente, segui pesquisando um objeto espinhoso, escorregadio, gigantesco, e, em grande medida, quase invisível. Insistentemente, busquei compreender minhas próprias contradições e contornar os meus equívocos nesse processo. Insisti em realizar um trabalho de campo em outros países, transitando por lugares dos quais eu apenas remotamente havia ouvido falar. Insisti em pesquisar um assunto que era totalmente desconhecido para mim até que eu decidisse pesquisá-lo. Insisti em escrever uma tese em meio à pior crise da minha universidade, em meio à pior crise política que vivenciei no meu país, e que, até hoje, segue se agravando, adquirindo novos contornos. Sim, foi pura insistência.
Não penso, contudo, tratar-se de uma característica individual. Não seria a insistência algo que, em grande medida, tem marcado nossas trajetórias acadêmicas? A nossa atuação dentro de um campo excludente, hierárquico, especialmente quando nos propomos a disputar suas narrativas fundamentais? Não estariam as nossas ambições intelectuais atravessadas pela obstinação, quando as indagações que elegemos como questões de trabalho insistem em não caber em campos disciplinares fechados, conceitos acabados, numa dada estrutura burocrática; estrutura esta que, em grande medida, tem (im)possibilitado as nossas próprias trajetórias como professoras e pesquisadoras? Como traço compartilhado, tamanha insistência pode ser situada como um fenômeno social e entendida nas fronteiras entre a sujeição e a resistência, ao forçarmos a nossa própria entrada dentro de uma estrutura disciplinadora e no desejo produzir para além de tal estrutura, simultaneamente por e contra ela, ou seja, no ímpeto de tornar-se sujeito não subordinado dentro de um campo instituído.
Insisti, portanto, em continuar pesquisando, e depois em continuar escrevendo, e o fiz a despeito de uma série de interrupções, algumas bastante abruptas, outras mais rotineiras, relacionadas ou não ao trabalho acadêmico propriamente dito. Interrupções às quais qualquer trajetória de vida está sujeita, mas que permanecem excluídas do nosso próprio pensar enquanto acadêmicas, como se fossem algo do que a substância do trabalho científico precisaria ser depurada. A todo momento me pergunto se a insistência em inscrevê-las teria a ver com a necessidade de enaltecimento por tê-las superado ou com a percepção de si mesma como vítima das circunstâncias, mas acabo admitindo que incorrer em um ou outro vício é o custo de torná-las nítidas. Afinal, não considero uma opção silenciá-las.
A tese que apresentei como requisito para obtenção do título de doutora foi escrita com as minhas entranhas. Ela emula os processos de vida por que passei em todo o percurso do doutorado, durante pouco mais de cinco anos que mudaram radicalmente a minha vida. Processos que envolveram contestar autoridades, produzir contranarrativas, assumir autoria, implicar-se. E que foram marcados por intensas mudanças e travessias: de espaço físico, de status social. Nesse documento chamado tese estes processos precisaram ser inscritos com o rigor da teoria, dos dados, da forma. Algo que insisti em profanar produzindo este texto, esta brecha. O que pode chegar a ser inscrito numa tese? O que é preciso ocultar para que o nosso discurso seja considerado válido, cientificamente apropriado?
Uma tese de doutorado é uma performance. É a construção de uma narrativa mais ou menos linear e coerente, inscrita em um registro escrito, portanto, fixo, para tentar dar conta de um processo de pesquisa e de vida que é, essencialmente, parcial, contraditório, diverso, confuso e variável, dando-lhe a aparência de uma totalidade linear que só pode chegar a ser visualizada a posteriori. Desse conjunto inconcluso, descontínuo, certos episódios, apenas, são destacados. Cortes e conexões retóricas são operadas sobre cortes e conexões vivenciadas. Padecemos e amadurecemos a partir de cada um deles. A tese, em sua materialidade de texto escrito conforme normas prescritas, é um documento burocrático para pleitear um título formal. Mas é também, para além disso, o condensado de uma vida, o signo privilegiado de trajetórias dedicadas a buscas e descobertas no universo do conhecimento; buscas que são sensivelmente marcadas por erros, revisões, retomadas e reinvenções.
Apesar de ter escolhido a performance como categoria de análise para pensar o estado, demorei a perceber a performatividade do meu próprio discurso. Ao longo de todo o processo de escrita, me preocupei com a pertinência e mesmo com a utilidade de apresentar uma análise que não se acanha em demonstrar as arbitrariedades, as imprecisões e as ilusões do “Estado”. Foi por vezes difícil expressar ou formular pensamentos nesse sentido, ao mesmo tempo em que me parecia, também, inadiável. Em vários momentos, me vi paralisada, esperando que algo externo me dissesse para seguir adiante, quando voltar atrás seria inimaginável. Foi preciso assumir a autoria, assumir a responsabilidade de afirmar [2].
Demorei a compreender o quanto a minha narrativa é produto de um determinado momento histórico. Ao explicitá-la como um discurso não apenas socialmente localizado, mas marcado por emoções e afetos, quero refletir sobre os seus significados. O tom com que escrevo é o tom com que sinto o momento. Se o texto soa descrente e desalentado, é porque tem sido muito difícil acreditar na legitimidade do poder do estado e de uma forma pretensamente democrática após os sucessivos golpes que o Brasil vem passando nos últimos anos. Qual o sentido do desgosto compartilhado, da falta de força e fé que parece se alastrar entre os meus diante de uma suposta “falência” de um modelo ? [3]
Ao final da tese, no entanto, entendi que era preciso superar o medo de imprimir no texto esse sentimento, em vez de escondê-lo numa suposição de que isso tornaria a análise mais “objetiva”, menos implicada. Optei por deixar essa subjetividade aflorar e lidar com ela explicitando-a, dizendo o quanto ela incomoda, me parece inadequada, quando, em verdade, nada nela é despropositado. É precisamente o descontentamento o que me torna cética diante de certos acontecimentos e processos, de certos padrões aos quais se entende (e se quer fazer entender) que a realidade deveria corresponder.
O mais complicado na produção de um texto sob o signo do descontentamento foi mostrar, justamente, como o “Estado” não falhou, mas, ao contrário, tem sido bem-sucedido em produzir o próprio poder, a despeito de (ou precisamente porque) suas instituições nem sempre cumprem com efetividade os enunciados morais sobre os quais se assenta a sua legitimidade. Não estou sozinha em afirmar o não cumprimento de seus enunciados, e tampouco é fortuita a quantidade de análises avaliativas que o denunciam, em muitos campos disciplinares. Além do mais, é crescente o descrédito em relação às instituições estatais por parte da população, de forma mais ampla. Decerto é necessário criticá-lo, mas como fazê-lo? Quais as consequências políticas da ideia de que um determinado país “falhou” como estado ? [4]
Ensaiei, portanto, no desenvolvimento da minha pesquisa, uma outra leitura, estimulada pela ânsia de conhecer e fazer conhecer seus aparatos e procedimentos. Vendo o estado como uma composição de instrumentos a serviço do exercício de poder, sobre os quais certas elites mantêm um oligopólio, acredito que tais objetos são possíveis e passíveis de serem disputados, entendendo que, para tanto, é preciso conhecê-los, produzir conhecimento a seu respeito. Entendo que o “Estado”, com E maiúsculo e contornos de entidade, por ter servido a séculos de dominação, nos parece algo praticamente inelutável. Desmistificá-lo, vendo-o como um conjunto de práticas articuladas através de uma sobreposição de camadas de institucionalidade, serve, a meu ver, para entendê-lo como algo mais mundano, cotidiano e alcançável, que, no entanto, não foi construído nem será destituído de seus papéis de dominação de uma só vez ou de uma vez por todas.
A impressão que tem prevalecido diante dos ataques recentes aos direitos sociais, à educação e ao pensamento crítico, dentro e fora dos aparatos do estado, no entanto, é a de que se é com muita energia e custo que se resiste a esta figura dogmática e se força as suas brechas, procurando ocupar, no interior de suas instituições, posições que foram por muito tempo inalcançáveis para certos sujeitos políticos, e reinventá-las nesse processo, é com maior intensidade que se é arrancado, despojado desses lugares. Evidencia-se a continuidade da concentração de formas de produção de poder e violência, em paralelo a estratégias marginais e marginalizadas de resistência. Nesse sentido, tal como observa Deborah Poole (2009), é importante não apenas insistir que os responsáveis pela definição e execução de políticas públicas atendam às demandas das organizações sociais de base e respeitem seus direitos culturais e territoriais, mas também, o que é ainda mais difícil, buscar formas que os façam compreender que estes movimentos não são apenas um agregado de “interesses especiais” que devem ser atendidos de forma complementar à política mais ampla, mas são formados por pessoas que estão ativamente redefinindo o cenário tanto das políticas públicas, quanto da própria política, no seu sentido mais abrangente.
É nesse sentido que vejo a importância de decupar as práticas da administração pública, de compreender os seus procedimentos inseridos em um contexto mais amplo de produção de um poder que atende a interesses específicos, apesar de nomeados como de todos. É necessário seguir desvendando, desmistificando, profanando. Conhecer e difundir a complexa e contraditória história do estado é fundamental para compreender o quanto as formas hegemônicas de entender e fazer política no mundo inteiro são etnocêntricas e excludentes e produzir o desejo de buscar novas alternativas.
Acredito que, para aspirar a essas mudanças, é preciso, no momento atual, aspirar aos lugares de poder que instituem essas práticas, que as concebem como técnica e tecnologia, e que lhes conferem fundamentação a partir da produção ideológica e material de um aparato jurídico e científico, uma vez que elas continuam se produzindo e se reproduzindo, inclusive dentro da própria academia. Acredito que é preciso disputar as próprias narrativas que as fundam.
NOTAS:
[1] Texto adaptado para a revista Horizontes ao Sul, originalmente publicado como epílogo da tese de doutorado intitulada “Circuitos de uma organização internacional: enunciados e performance de estado na Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA)”, do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (PPCIS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
[2] Nesse sentido, me fortaleceram as leituras que fiz de autoras como Silvia Federici (2018), Gloria Anzaldua e Virginia Woolf, nenhuma delas explicitamente relacionadas ao meu objeto de análise.
[3] É preciso observar que falo a partir de uma classe, de uma cidade, de dentro de instituições estatais de produção do conhecimento, e que a forma como o meu descontentamento se manifesta está intimamente relacionada à forma com a qual eu chego a me relacionar com as práticas e instituições do Estado. Não suponho que as populações ou agentes institucionais sobre as quais falei na tese compartilhem exatamente a mesma percepção.
[4] Cristiano Mendes e Áureo Gomes (2017) apontam para esta questão no âmbito interestatal ao discutirem a construção discursiva dos “estados falidos” na política externa estadounidense. Simone Gomes e Igor Palhares Acácio (2016), por sua vez, em uma análise sobre a aplicação do conceito de “estado falido” ao México, observam sensíveis diferenças nos usos políticos do termo por diferentes grupos, com interesses diversos e mesmo contraditórios, questionando, a partir de uma perspectiva weberiana, a inclusão de estados com estruturas burocráticas e de aplicação de violência relativamente consolidadas na categoria. Os autores destacam como seu uso está majoritariamente associado à legitimação intelectual de intervenções externas e mesmo de mecanismos que perpetuam a espiral de violência perpetrada através do estado, refletindo ainda sobre a descrença da população mexicana diante de instituições estatais como parte de um complexo e histórico processo de produção do descrédito, o que somente aparenta fazer coincidir seus distintos usos políticos.
Daniela Caruza é doutora em Ciências Sociais pelo PPCIS - UERJ e professora do IFPI, Campus São Raimundo Nonato.
Contato: danielacaruza@gmail.com
Editora responsável: Simone da Silva Ribeiro Gomes