NEOLIBERALISMO, CONSERVADORISMO E A LIBERDADE DAS MULHERES: NOTAS SOBRE A QUESTÃO DA PROSTITUIÇÃO
Uma onda conservadora parece recobrir o mundo neste período. Demonstrações de profunda intolerância e de reforço aos valores tradicionais ameaçam os pilares básicos dos ideais que fundamentaram as sociedades contemporâneas, representados pelo moderno contrato social, isto é, pelos princípios que legitimam as regras de organização do exercício do poder, da cidadania, a partir da convivência dos diferentes interesses.
Evidentemente, o pensamento conservador esteve fortemente representado nas disputas políticas em todos os períodos históricos. Se os mais otimistas acreditavam que a hegemonia do liberalismo como linguagem política varreria o obscurantismo do conservadorismo preconceituoso e hierárquico, o que assistimos hoje pode ser identificado como um alinhamento entre o liberalismo (ao menos em sua vertente clássica) e um neoconservadorismo. Karl Marx, em Manuscritos econômico-filosóficos, por exemplo, já apontava a falácia do discurso liberal como “anticonservador”. Em vez de trocar o mundo das trevas por um mundo iluminado, o capitalismo teria reposto as formas cruéis e desumanas de cativeiro, marcadas pela violência e desigualdade (Marx, 2004).
Como nos mostra Roberto Guerra (1998), há certa coalizão entre neoconservadorismo e neoliberalismo, cujo amálgama se dá entre os elementos tradicionais, como autoritarismo, família, ordem e religião, e os elementos do liberalismo clássico, tais como o individualismo, a competição econômica e o antiestatismo. Para o autor, esse modelo visa “libertar os cidadãos das garras do Estado e reduzir ou eliminar boa parte dos direitos, especialmente econômicos e sociais, conquistados no passado recente” (Guerra, 1998, p.74).
No entanto, a situação parece ser ainda mais complexa. Afinal, esse alinhamento é, de longe, constante. No contexto neoliberal, o mercado capitalista constitui um emaranhado de discursos no sentido de uma plena mercantilização das esferas da vida, fundamental para as formas de acumulação da atualidade. Sabemos que essa tarefa necessita manejar subjetividades, imaginações, desejos e discursos aparentemente libertadores, que se chocam frontalmente com o baluarte do conservadorismo.
O ideal liberal de liberdade como não interferência está em contradição, portanto, com a ideia de autoridade, tão fortemente reforçada pelo pensamento conservador. Esse desalinhamento é nítido quando analisamos o tema da prostituição, que é objeto deste ensaio. Desde o século XVIII, as culturas progressistas (feministas, socialistas, anarquistas, etc.) traçaram uma crítica à dupla moral sexual, isto é, de um lado, esperava-se das mulheres um comportamento sexual extremamente restrito, vinculado à castidade, reprodução e casamento, e do outro lado, permitia-se aos homens uma conduta sexual que extravasasse esses parâmetros, incluindo romances momentâneos e a compra de sexo no mercado.
Na cultura do feminismo, desde as primeiras manifestações do século XVIII até o século XX, a prostituição foi denunciada como um mecanismo fundamental para a sustentação da vivência de uma masculinidade calcada nessa dupla moral sexual. Havia certo consenso de que a prostituição era uma escolha individual, feita nas condições em que o sistema patriarcal gerava suas piores contradições: o limitado acesso à renda e trabalho pelas mulheres, especialmente das classes populares, o conservadorismo sexual, a imposição do casamento como norma, entre outras.
De lá para cá, com a debilidade da dupla moral sexual, a prostituição precisou de novos alicerces para se manter como um sistema. Aproveitando-se da emergência do neoliberalismo, ou mesmo como produto dele, a prostituição foi sendo recheada de um discurso tanto “anticonservador”, contrário à imposição do casamento, da castidade, da monogamia etc., quanto “mercantilizador”, em defesa de um modo de organizar as relações afetivas e sexuais extremamente vinculado a como o mercado molda as subjetividades. Portanto, a prostituição passou a ser vendida como uma atividade calcada na autonomia das mulheres, de fazer do seu corpo um negócio.
O pensamento conservador, por outro lado, cada vez mais vivo e ressoante, continua a operar a partir de uma moral sexual extremamente violenta, que constrói o corpo e a vida das mulheres e da população LGBT como um pecado, e as prostitutas como o exemplo concreto da “perdição das mulheres”. A batalha em torno da chamada “ideologia de gênero” ilustra bem esse discurso.
Um dos elementos fundamentais que parece estar em jogo nessas disputas é a concepção de liberdade sexual. A polêmica em torno do corpo nu e de imagens sexualizadas na arte contemporânea, a “queima da bruxa” na passagem de Judith Butler no Brasil e o discurso sobre as mulheres no governo Bolsonaro são evidências de episódios de conflitos recentes. Nesse sentido, o feminismo como pensamento político, forjado na prática social, é provocado a construir uma narrativa própria, que reforce a liberdade dos sujeitos, repense o significado da sexualidade e retome sua crítica ao neoliberalismo e ao conservadorismo.
Para reafirmar a relação entre liberdade e sexualidade, nada mais apropriado do que reavivar a obra septuagenária, mas ainda fundamental, de Simone de Beauvoir, O segundo sexo (2016). A autora aprofundou o conceito de liberdade como autonomia, reconhecendo seu traço fundamentalmente relacional, dependente do contexto social, político, econômico. Assim, ainda que as mulheres tenham vidas independentes, elas não serão livres se estiverem envoltas em um contexto marcado pela exploração do trabalho e falta de autonomia nas relações afetivas.
Como nos mostra Beauvoir, a sexualidade é fundamentalmente uma relação ambígua entre ser sujeito e objeto. Essa ambiguidade só deixa de afrontar a integridade humana quando a sexualidade é exercida num contexto antipatriarcal, em que liberdade e igualdade são pré-requisitos. Mesmo que fundamentada na ambiguidade, a sexualidade é potencialmente o lugar do encontro ético. As práticas sexuais dos marcos conservadores interditam esse potencial quando despojam as mulheres do direito de gozo. As opções sexuais oferecidas e permeadas pelo mercado são tão problemáticas quanto, pois fixam a relação sujeito/objeto como relação homem/mulher e liberdade/sujeição.
A cultura conservadora, que ajudou a cristalizar um lugar subordinado às mulheres na sociedade, foi combatida pelo feminismo desde os seus primórdios, mas teve seu momento ápice de reação na segunda metade do século XX, quando o movimento abalou os alicerces da dupla moral restritiva. A luta por uma vivência livre da sexualidade, fora dos padrões heteronormativos e patriarcais, a militância pela legalização do aborto, o questionamento à maternidade como destino obrigatório, a aceitação de múltiplos arranjos afetivos e sexuais, confrontaram profundamente o pensamento conservador.
Defendi em minha tese de doutorado que, no interior do campo feminista, em torno dos anos 80, houve, no entanto, a formação de uma “cacofonia desconstrutiva” (Paradis, 2016) sobre o tema da prostituição, fruto das contradições e ambiguidades enfrentadas na relação com o mercado capitalista e no combate ao conservadorismo. Tal processo acompanhou a expansão das pautas de reconhecimento em detrimento das questões de redistribuição - como discute Nancy Fraser (2007).
Em outras palavras, o debate sobre a sexualidade deixou de ter ligações fortes com os problemas de desigualdade econômica, legitimando, assim, uma posição anticonservadora sobre autonomia do corpo das mulheres, sem uma proteção ao discurso mercantilizador do neoliberalismo. Dessa forma, qualquer visão crítica sobre o mercado do sexo começou a ser interpretada como uma posição moralista, gerando polêmicas quase intransponíveis nas reflexões sobre a sexualidade no campo do feminismo.
Essa "cacofonia" só foi possível com o relativo abandono de uma visão política sobre a sexualidade fortemente centrada na liberdade como autonomia, ou seja, uma liberdade fortemente vinculada à igualdade, que conecta autonomia pessoal e liberdade coletiva (vide Beauvoir), para uma separação e redução da esfera sexual como sendo o lócus último das disputas patriarcais.
A superação dessa "cacofonia" depende da identificação das diferenças entre o discurso mercantilista neoliberal, o discurso conservador puritano e o discurso libertário do feminismo. O debate sobre a prostituição torna-se especialmente importante, ao escancarar confluências e contradições entre neoliberalismo e conservadorismo, conectar a política do público ao privado e interpelar um posicionamento feminista anticapitalista sobre essas questões.
Nesse sentido, é tarefa do campo do feminismo, ainda que na sua diversidade, resgatar a luta que se travou desde o século XVIII para propagar uma outra visão sobre a sexualidade, nem conservadora e nem mercantil, reconhecendo que as mulheres têm o direito de viver suas vidas da maneira como escolheram, dentro de um quadro de leis e normas sociais que possibilitem, a todas, liberdade e igualdade.
Quanto mais o mercado nos cristaliza como mercadoria, menos liberdade temos coletivamente. Lutar contra a violência é uma tarefa que nos une, assim como lutar contra o abuso policial, contra a ação proxeneta dos Estados e contra a discriminação das mulheres na indústria sexual. Quando, no discurso político, neoliberalismo e conservadorismo são a ordem do dia, o campo do feminismo deve ser capaz de encontrar um espaço de ação próprio, de modo subversivo e libertário.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BEAUVOIR, Simone. (2016). O segundo sexo: a experiência vivida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
FRASER, Nancy. (2007). "Mapeando a imaginação feminista: da redistribuição ao reconhecimento e à representação". Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.15, n.2, p.291-308.
GUERRA, Roberto R. (1998). El liberalismo conservador contemporáneo. Santa Cruz de Tenerife: Universidad de Laguia.
MARX, Karl. (2004). Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo,
PARADIS, Clarisse. Feminismo, liberdade e prostituição: para além do dissenso democrático. (Doutorado em Ciência Política). Tese de doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais, 2016. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/BUBD-AQKGWZ
Clarisse Goulart Paradis é cientista política e professora do Instituto de Humanidades e Letras do Campus dos Malês, Bahia, Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab)
Editora responsável: Marcia Rangel Candido