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Marcia Rangel Candido

TRABALHO INFANTIL OU WORK EXPERIENCE? A MINIMIZAÇÃO DE UMA TRAGÉDIA SOCIAL


Uğur Gallenkuş. Sobering Collages of a Polarized World. Juxtapoz Magazine. Fev. 2019.

Ligo o gravador e, para deixar registrado na transcrição, agradeço novamente o tempo que Aparecida [1] me concedeu. Dias antes, ela questionou o porquê de uma entrevista [2] com uma pessoa – mulher, negra, pobre, trabalhadora doméstica e, segundo sua própria avaliação – sem nenhuma história interessante para contar. Comecei a trabalhar aos dez anos..., me diz. Perguntei, para alongar o assunto, por que começou a trabalhar tão jovem. Aparecida dá de ombros e sentencia uma verdade evidente, que confronta a tolice da minha pergunta: fome.

Após o abandono paterno, sua mãe não tinha mais as mínimas condições de alimentá-la e aos seus outros irmãos e irmãs. A solução, muito comum no bairro pobre em que nascera em Minas Gerais, foi “emprestar” Aparecida para outra família com melhores condições de vida. Trocando trabalho por comida, teto e, eventualmente, pagamento em dinheiro ou alimento para sua mãe, passou por diversas casas, acumulando as funções de trabalhadora doméstica, cozinheira e cuidadora. Nem completou 15 anos e já sofrera inúmeros casos de violência física e psicológica. Na verdade, “sofri muito” é expressão frequentemente repetida quando descreve sua infância e adolescência. Movida pela necessidade de manter o emprego, Aparecida migra para o Rio de Janeiro aos 16 anos acompanhando a patroa da época. Na cidade maravilhosa a situação piorou consideravelmente. Morava e trabalhava na residência e, não raro, lhe era negado acesso à comida sob vários pretextos: quando a empregadora julgava que ela não tinha trabalhado o suficiente para merecê-lo, casos de desobediência, ou apenas porque perdeu a hora brincando.

Aparecida não consegue contabilizar todas as casas em que trabalhou até completar 18 anos, idade em que consegue seu primeiro emprego com carteira assinada e pode experimentar, pela primeira vez na vida, relativa independência financeira, acesso a alguns diretos e salário pago regularmente. Gostaria de poder lhes descrever fielmente o semblante dela ao falar sobre a alegria e surpresa de receber o seu primeiro décimo terceiro salário. Mas é impossível. Foi algo como você estar cansado em um dia chuvoso e avistar o ônibus que (finalmente) te levará para casa. Infelizmente, o ônibus está quase passando por ti e você não está no ponto. Então você ergue o braço, faz sinal para o motorista, projetando no dedo indicador esticado toda a esperança dos desesperançados. O motorista pára, surpreendentemente. E fora do ponto. Você sobe. Sorrindo. Aparecida não se lembra com o quê gastou o dinheiro “extra”. Eu, porém, jamais esquecerei seu sorriso.

Em contraste, com essa história, temos um breve relato de Bia Kicis. Atualmente deputada estadual (DF) pelo Partido Social Liberal (PSL), foi procuradora durante vinte e quatro anos, antes de decidir entrar na vida pública. Desconheço sua trajetória de vida, além de um breve momento retratado por ela em 240 caracteres:

Aos 12 anos de idade eu fazia brigadeiros para vender na minha escola. E o mais interessante era que eu não precisava mas eu sentia uma enorme satisfação de pagar as minhas aulas de tênis com o [sic] esse dinheiro. Eu me sentia criativa e produtiva.

O tweet de Kicis foi motivado para fazer eco à declaração do presidente Jair Bolsonaro, na qual relativiza o trabalho infantil. Na live que realiza semanalmente em redes sociais, Bolsonaro narrou sua experiência de trabalho em uma fazenda quando tinha entre nove e dez anos. Afirma que tal atividade não o “prejudicou em nada”. Muito pelo contrário, o dignificou, porque “o trabalho dignifica o homem, a mulher, não importa a idade”, justifica.

Quando algum moleque de 9, 10 anos vai trabalhar em algum lugar, tá cheio de gente aí... trabalho escravo... não sei o que... trabalho infantil... Agora quando tá fumando um paralelepípedo de crack, ninguém fala nada. Então, o trabalho não atrapalha a vida de ninguém...

Acredito ser evidente, para qualquer pessoa com um mínimo de sensibilidade, que o tipo de trabalho relatado por Aparecida, Kicis e Bolsonaro, possui um estatuto bastante diferente em termos de graus de vulnerabilidade e precariedade. Também não é possível igualar, como atividade concreta e em termos de processo de trabalho, as relações de trabalho de Aparecida, ao longo de sua infância e adolescência, e os eventos esporádicos de atividade laboral narrado por ambos políticos. A distinção é inegável e, não à toa, o sentimento frequentemente evocado por Aparecida é o sofrimento, enquanto os outros dois resgatam imagens positivas, como criatividade e dignidade.

A primeira história é exemplar de uma relação de trabalho movida pela necessidade de uma família pobre para tentar obter meios de vida em meio a uma sociedade marcada pela profunda desigualdade social brasileira. O objetivo de Aparecida não era melhorar as habilidades motoras em um esporte específico, como no caso da deputada, mas uma inequívoca luta pela sobrevivência. Por outro lado, a história de Bolsonaro e Kicis se assemelham a um, na falta de expressão melhor, work experience: um tipo de intercâmbio, no qual jovens de classe média contratam uma agência de viagem para obter um emprego temporário em país estrangeiro, cujo objetivo primeiro não é obter renda, senão adquirir fluência em determinado idioma. É uma atividade laboral, sem dúvida. Porém, com prazo de validade previamente definido e executada por qualquer outro motivo (obter reconhecimento familiar, contato com outras culturas, satisfação pessoal etc.) que não seja a necessidade de se obter meios de vida através dela. E essa relação de trabalho em nada se compara ao trabalho infantil.

Em 2016, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) promoveu uma ampla pesquisa sobre o trabalho infantil no Brasil no interior da Pesquisa Nacional de Amostra em Domicílio Contínua (PNADc), caracterizando-o como o trabalho efetuado por crianças com idade inferior à mínima admitida pela legislação brasileira – com exceção dos adolescentes com 14 anos ou mais na condição de aprendiz ou a partir dos 16 anos, em atividades diurnas e em condições de trabalho que não sejam consideradas insalubres ou perigosas. [6]

No ano pesquisado, do total de 40,1 milhões de crianças e adolescentes com idade entre 5 e 17 anos, 1,8 milhão (4,6%) trabalhavam regularmente. Desse total, 34,7% eram do sexo feminino e 65,3% do sexo masculino; 71,8% eram negras ou pardas. A média de remuneração de crianças entre 5 e 13 anos era de aproximadamente R$ 126,00, observando que três em cada quatro crianças nessa faixa etária não recebiam qualquer renda monetária. A mesma média entre os adolescentes (entre 14 e 17 anos) era de R$ 520,50 reais, embora um quarto deles também não recebesse salário.

Dito isso, a meu ver, as declarações de Bolsonaro e de Kicis são uma distorção grosseira da realidade, que tenta igualar atividades laborais esporádicas e espontâneas ao trabalho infantil de crianças e adolescentes, na sua maioria negras e pobres, com o perverso objetivo de minimizar simbolicamente uma tragédia social e diminuir a urgência de políticas públicas para erradicar o trabalho infantil no Brasil. É, sem dúvidas, a construção de um projeto de país que distancia ainda mais nossas crianças e adolescentes de uma vida digna.

NOTAS

[1] Nome fictício.

[2] Entrevista realizada no âmbito de uma pesquisa promovida pela Fundação Perseu Abramo sobre informalidade do mercado de trabalho brasileiro. A mim coube a tarefa de entrevistar empregadas domésticas na cidade do Rio de Janeiro.

[3] O tweet da deputada pode ser encontrado neste link:

[4] O live de Bolsonaro pode ser assistida neste link:

[5] O slogan de uma renomada agência de viagem brasileira resume bem a questão: “o trabalho é temporário, mas a experiência é para sempre”.

[6] IBGE. Trabalho Infantil 2016. Pesquisa Nacional de Amostra em Domicílio Contínua. Acessado em 10/07/2019.

Thiago Brandão é Doutorando em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IESP/UERJ) e integra o Núcleo de Pesquisas e Estudos do Trabalho (NUPET/ IESP) e o Núcleo de Estudos Trabalho e Sociedade (IFCS/UFRJ). Recebeu o prêmio Emerging Leaders in the Americas Program (ELAP) oferecido pelo Ministério das Relações Exteriores do Canadá, em 2017. Atualmente pesquisa as relações teórico-políticas entre a informalidade do mercado de trabalho e o fervor em torno do conceito de empreendedorismo no Brasil e no mundo.

Contato: thiagobperes@hotmail.com

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Editora responsável: Luna Ribeiro Campos

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