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Mark Blyth

AUSTERIDADE: A HISTÓRIA DE UMA IDEIA PERIGOSA - POSFÁCIO

Mark Blyth é professor do departamento de Ciência Política na Universidade Brown, nos Estados Unidos. Seu livro foi publicado em 2013 e traduzido para o português em 2017 pela Editora Autonomia Literária. Com uma apresentação à edição brasileira escrita pela economista Laura de Carvalho, a obra é um importante documento sobre os impactos da crise econômica de 2008, analisando os meandros dos eventos bancários e financeiros que derivaram em uma recessão global. Assim, o seu Posfácio, escrito passados cinco anos dos eventos, incluem uma reflexão sobre o posterior resgate e reorganização do mercado financeiro, tal como nos brinda com reflexões importantes sobre políticas de austeridade e (ausência) de crescimento econômico.



Desejamos uma boa leitura!



Austeridade - Um Ano Depois




Assim como uma andorinha não faz verão, um ano a mais de dados não muda minha avaliação da austeridade. Esta ainda é uma ideia perigosa e ainda não funciona. No entanto, o ano passado foi saudado, especialmente na Europa, como uma justificativa das políticas de austeridade, porque a Europa está supostamente agora em recuperação. Como pode ser visto no gráfico abaixo, é verdade que as economias da zona do euro como um todo pararam de contrair nos últimos dois trimestres de 2013, enquanto o Reino Unido passou de retardatário a líder em sua participação no crescimento. No entanto, algumas questões precisam ser analisadas face à alegação de que a austeridade está produzindo o pouco crescimento que vemos na Europa para suportar o peso.






Figura 1 [1]




A primeira é a reivindicação da recuperação como resultado das políticas de austeridade, que mais uma vez confunde deliberadamente causa e correlação. Usando uma analogia para ilustrar, imagine que alguém tem uma forma de câncer de estômago que leva os médicos a ter diferentes diagnósticos sobre o que fazer. A paciente é incentivada a não se submeter à quimioterapia e tentar uma terapia alternativa de enemas ácidos e uma dieta radical de 800 calorias por dia. Eles persistem com esta terapia e a condição piora. Eventualmente, os mesmos médicos intervêm e aplicam quimioterapia. A paciente recupera, mas agora está muito mais fraca do que deveria estar a partir da experiência, de modo que seu prognóstico é agora muito mais incerto. No entanto, os médicos proclamam que, embora a quimioterapia fosse importante, foram os enemas e a dieta radical que realmente a salvou. Isto é precisamente o que aconteceu na zona do euro, com a austeridade como tratamento alternativo e a liquidez do BCE como a quimioterapia. É a medicina charlatanesca sendo aclamada como um remédio maravilhoso apesar das evidências.


Mas mesmo se aceitarmos que o crescimento voltou, é difícil ver o surgimento de uma taxa de crescimento sustentada nos números recentes suficiente para reduzir a enorme pilha de dívidas que a austeridade gerou. Lembre-se, as dívidas do governo cresceram, e não menos, sob austeridade, à medida que os países viram seu PIB subjacente diminuir mais que cortaram, de tal modo que suas dívidas aumentaram e não diminuíram - o chamado efeito denominador. Em segundo lugar, se, como sustenta Austeridade, o que está no centro de tudo isso é uma crise bancária aninhada dentro de um conjunto de instituições disfuncionais, e não uma crise de gastos públicos, então se deve perguntar como a austeridade, o aperto fiscal, os cortes orçamentários e todo o resto pode possivelmente restaurar o crescimento? É improvável que o diagnóstico errado e o medicamento errado levem a uma recuperação satisfatória.


Cortes Orçamentários Ainda não Podem Resolver uma Crise Bancária - Mas um Novo Chefe do Banco Central Pode Lhes Dar Tempo


Este livro foi publicado em abril de 2013, um ano atrás do momento em que escrevo este posfácio. Terminei a escrita atual do texto principal em outubro de 2012, exatamente quando os efeitos plenos do “Draghi put” estavam começando a ser sentidos nos mercados de títulos europeus. O “Draghi put” foi a operação de refinanciamento a longo prazo do Banco Central Europeu (BCE) de dezembro de 2011 e fevereiro de 2012, combinada com a promessa do novo presidente do BCE Mario Draghi de 26 de julho de 2012 de que faria “tudo o que fosse necessário” para salvar o euro. Ou seja, se ele dissesse que iria comprar títulos soberanos diretamente para manter suas taxas de rendimentos baixas através de um programa chamado Transações Monetárias Definitivas (Outright Monetary Transactions - OMT).


Nunca se obteve tanto efeito fazendo tão pouco. As palavras sozinhas, ao que parecia, acalmaram os mercados porque a OMT não foi realmente usada. Bastou sua promessa. De outubro de 2012 a março de 2014, os rendimentos de títulos italianos de dez anos caíram de 6,85 para 3,43%, os títulos espanhóis de dez anos passaram de 7,5% em outubro de 2012 para pouco mais de 3%, enquanto os títulos de 10 anos da Grécia passaram de 17% para 6,5%. Assim, os retornos dos títulos diminuíram, o que é bom. Mas o que uma injeção de liquidez do Banco Central projetada para segurar mercados financeiros que estão ficando sem financiamento (a finalidade do LTROs e OMT) tem a ver com cortes no orçamento do Estado? Lembre-se que a austeridade é definida neste livro como:


Uma forma de deflação voluntária onde a economia se ajusta pela redução de salários, preços e gastos públicos para restaurar a competitividade, o que é (supostamente) melhor alcançado cortando o orçamento, dívidas e déficits do estado. Os defensores acreditam que isso irá inspirar a “confiança das empresas”, uma vez que o governo não irá “esvaziar” o mercado de investimentos, sugando todo o capital disponível através da emissão de dívida, nem adicionando à já “muito grande” dívida da nação.[2]


Dada essa definição, a resposta é, absolutamente nada. Cortes no orçamento não podem resolver um problema bancário, mas isso não impediu seus defensores de agirem fingindo que pode. Para ver por que este é o caso, vamos recapitular o que ainda está acontecendo na Europa.


A crise na Europa teve duas fases. A primeira fase que podemos chamar de a “ruptura que nunca aconteceu” [3], que começou em maio de 2009, quando o então presidente do BCE, Jean Claude Trichet, disse aos mercados que “não estamos, de modo algum, embarcando em uma flexibilização quantitativa”[4]. Ao dizer isso, Trichet efetivamente disse aos mercados que o BCE não iria apoiar o sistema, de modo que os detentores de dívida denominada em euros não poderiam trocar títulos por dinheiro à vista. O conjunto diversificado de títulos nacionais cujos rendimentos acompanharam os títulos alemães por sete anos começaram a se mover rapidamente para além deles. Isso foi ampliado por uma mudança no governo da Alemanha de uma coalização de esquerda para uma de direita, o que levou a equívocos danosos sobre o apoio à Grécia. A própria confissão da Grécia de fraude no déficit, mais uma dúzia ou mais de cúpulas “Merkozy” que se seguiram, em que a Alemanha e o BCE brincaram de “passar a batata quente” sobre quem iria segurar a podridão, acrescentou ainda mais incerteza à mistura. O resultado final foi que, em meados de 2011, as taxas de rendimentos dos títulos periféricos haviam se afastado em relação aos bunds alemães e as taxas subiram para níveis sem precedentes. Dadas essas tensões, os mercados começaram a precificar uma desagregação da zona do euro como uma possibilidade real.


Esses picos não foram motivados por preocupações do mercado a respeito da capacidade do Estado espanhol, ou qualquer outro Estado, com a possível exceção da Grécia, de pagar suas pensões aos professores aposentados. Em vez disso, os mercados precificaram o risco de que a zona do euro se rompesse. Especificamente, estavam precificando a possibilidade dos ativos denominados em euro de que os agentes do mercado possuíam lotes desvalorizassem rapidamente em caso de desmembramento do euro, uma vez que nem o Banco Central (BCE) nem o Estado mais solvente (a Alemanha) pareciam estar preparados para apoiá-los. A hesitação por quase dois anos sobre o significado dos artigos do tratado e as respostas políticas inconclusivas de várias cúpulas pioraram a situação[5]. O estado da bolsa pública simplesmente não estava conduzindo os eventos [6]. A percepção de ativos indo para zero sem seguro é que estava.


A segunda fase da crise da zona do euro pode ser chamada de “crise dos EUA revivida”, que decorreu de abril a novembro de 2011, tornando crítica uma situação já ruim. Neste último período, os grandes bancos europeus viram as suas fontes de financiamento secarem em uma reprise quase perfeita da crise dos EUA de 2007-8 [7]. Como o capítulo três de Austeridade detalha, ambos os mercados de operações compromissadas (repo) de Londres e os fundos do mercado monetário dos EUA pararam de emprestar aos bancos europeus quando as garantias que eles prometeram em tais transações, a dívida soberana europeia, perderam valor [8]. À medida que a liquidez foi drenada do sistema, as taxas de rendimentos aumentaram a partir de níveis já elevados, e os mercados começaram a se preocupar com o risco de inadimplência entre os bancos europeus que ricocheteava de volta para seus anfitriões soberanos. Até mesmo os notoriamente estáveis e previsíveis bunds da Alemanha aumentaram no primeiro semestre de 2011, uma vez que o risco de desmembramento e o risco de calote se combinaram para obrigar o BCE a agir, o que resultou em um primeiro trilhão e meio de euros, basicamente dinheiro livre sendo canalizado para os bancos europeus sob disfarce do programa LTRO. Mas o resgate público do setor bancário europeu não parou por aí.


Como Oliver Wyman, um grupo de consultores-chave do setor bancário, observou em outubro de 2013, dos € 700 bilhões que os bancos europeus levantaram desde 2007, “€ 350 bilhões vieram do setor público... De fato, o apoio estatal total aprovado para o setor financeiro da UE totaliza mais de € 5 trilhões, o equivalente a 40% do PIB [da zona do euro]” [9]. Do capital injetado nos bancos para mantê-los à tona, “apenas cerca de 10% do capital inicial injetado foi reembolsado” [10]. Os retornos sobre o capital próprio caíram para cerca de 4% enquanto as bases de custos aumentaram, tudo isso implica que sem o apoio oficial esses bancos iriam à falência. Mais uma vez, como disse Oliver Wyman sem rodeios, “de outro modo os bancos insolventes foram recapitalizados e as políticas monetárias do BCE e dos Bancos Centrais nacionais permitiram que os bancos se financiassem a baixo custo” [11].


Então, para retornar ao primeiro ponto, o que qualquer um desses - Draghi despejando € 5 trilhões no sistema bancário para salvá-lo - tem a ver com a redução dos orçamentos dos Estados? A resposta ainda é nada. A política dos Bancos Centrais, e não os cortes do setor público, reduziu as taxas de rendimento e estabilizou os mercados de dívida soberana europeia. E enquanto os mercados acreditam que a promessa de Draghi de usar as Transações Monetárias Definitivas (OMT) - compra direta de títulos pelo BCE se suas taxas de rendimentos aumentarem novamente - é credível, então esses rendimentos permanecerão baixos. A má política dos Bancos Centrais, as fraudes intergovernamentais, as instituições incompletas e uma corrida em câmera lenta dos bancos por meio dos mercados de atacado em busca de financiamento interbancário na Europa causaram a crise [12]. € 5 trilhões em dinheiro dos contribuintes, uma melhor política do Banco Central e um movimento para completar as instituições de uma união bancária adequada para complementar a união monetária têm estabilizado a crise. Mas isso não resolveu a crise, apesar das aparências. E a razão pela qual não resolveu está na natureza do próprio programa LTRO.


O Discreto Resgate pelo BCE em Andamento


O que o programa LTRO incentivou os bancos de países periféricos a fazer pode ser melhor resumido na seguinte conversa [13]. “Você pede emprestado a 1% e compra (um título local) a 10%. Você usa o spread para enterrar os mortos (empréstimos sem performance de rendimento (NPLs) em seu balanço patrimonial). Você bancariza/ empresta a 4 (o título) e realiza novas operações compromissadas de tipo repo (usa o título de menor taxa de rendimento e maior avaliação para emprestar mais dinheiro - novamente), então você bate à porta do BCE para obter mais (ritmo - 5 trilhões de euros de apoio total)”. Em outras palavras, o programa LTRO não é apenas uma flexibilização quantitativa pela porta dos fundos. É um mecanismo disfarçado de resolução para todos os NPLs que desordenam os balanços dos bancos europeus e que continuam a bloquear os canais de crédito para a economia real. É por isso que o crescimento europeu é tão esclerótico. Não porque as dívidas são muito altas. A dívida dos EUA é maior, mas o crescimento é mais rápido porque os EUA desalavancaram e recapitalizaram seu sistema bancário. A zona do euro ainda não fez isso [14]. O que Draghi tem feito é lavar o sistema com liquidez.


Em parte, devido ao medo do que uma reestruturação fundamental do sistema bancário fará à economia real, e em parte porque na zona do euro 80% das atividades de intermediação são feitas por bancos e não por mercados de capitais, então não há mais onde despejar os ativos não confiáveis exceto o BCE, e eles não querem este trabalho, o LTRO e programas relacionados têm comprado tempo - mas eles não trouxeram solvência para o setor. Como tal, este resgate de tipo “um NPL de cada vez” via flexibilização quantitativa pela porta dos fundos vai levar uma década para limpar o setor, dado as baixas taxas de crescimento que a Europa tem apresentado, o que somado tem piorado devido às autodestrutivas e, em última análise, inúteis, políticas de austeridade [15].


Dívidas, Rendimentos e Austeridade


Isso é visto com bastante clareza na relação entre a dívida pública e as taxas de rentabilidade dos títulos. O campo pró-austeridade argumenta que as taxas de rendimentos estavam aumentando porque os mercados se preocupavam com o “gasto e dívida do governo fora do controle” ao invés do risco de quebra ou de falta de liquidez e, portanto, os gastos tinham que ser cortados. Se fosse este o caso, a política do Banco Central deveria ter sido ineficaz, uma vez que os rendimentos e as dívidas deveriam estar positivamente correlacionados. À medida que a dívida sobe, o rendimento como risco de inadimplência é fixado. Nenhum montante de liquidez do Banco Central deve reduzir os rendimentos da dívida pública, uma vez que os mercados devem se preocupar com o volume absoluto e a taxa de crescimento da dívida. Eles não devem se preocupar com a política do BCE e o apoio aos títulos. Na verdade, suportes aos mercados de títulos deveriam deixar mercados demandantes de austeridade mais nervosos, ao invés de menos, uma vez que implicaria apoio oficial para estoques de dívida supostamente insustentáveis. No entanto, se isso é verdade, para tomar dois exemplos, os números de Irlanda e Itália sobre o carregamento da dívida em relação ao seu rendimento em títulos de dez anos desde 2012 parecem realmente estranhos.





Você não tem que estimar um modelo estatístico extravagante aqui para notar isso, uma vez que os rendimentos do “Draghi-put” e o carregamento de dívida têm estado negativamente correlacionados de uma forma bastante grande e óbvia. As dívidas do governo continuaram a subir junto da mordida da austeridade, enquanto as taxas de rendimentos continuaram a cair, exatamente o oposto do caso da austeridade, o que sugere fortemente que a política do Banco Central era o que contava e a liquidez, e não a austeridade, foi o que acalmou os mercados. E se as taxas de rendimentos mais baixas agora desfrutados pelos Estados significa que os governos afetados têm um pouco menos de juros a pagar, então eles podem ter uma postura fiscal menos restritiva, e sim, a Europa pode crescer um pouco. Mas sejamos claros que o crescimento vem da política do Banco Central que vem baixando as taxas de rendimentos e não a austeridade. A austeridade continua prejudicando, não ajudando.


A comparação com os EUA, que fizeram triagem e desalavanca- ram seus bancos em 2008-09, não poderia ser mais clara. Os EUA, apesar da sua lenta recuperação, têm taxas de desemprego muito mais baixas, enquanto a zona do euro como um todo está presa em 12%. A periferia da Europa situa-se em condições quase permanemente depressivas, com Grécia e Espanha com 27 e 26% de desemprego, respectivamente. Até mesmo os casos de sucesso, segundo a Comissão Europeia, de Portugal e Irlanda, respectivamente, têm 15% e 12% de desemprego, o que evidencia os efeitos deprimentes (em ambos os sentidos da palavra) nestes números da imigração a partir destas sociedades. Mas mesmo as médias brutas entre estas duas áreas contam uma história simples.




Figura 3


Pelo menos no que diz respeito à Europa, se esta é uma recuperação, então essa é uma definição para a palavra recuperação que até então eu não conhecia. O desemprego está preso a um nível considerado não apenas politicamente inaceitável, mas economicamente impossível. Da mesma forma, quando anualizado, o crescimento do PIB europeu é apenas pouco positivo e, no entanto, a recuperação da zona do euro vem sendo anunciada a plenos pulmões em todas as oportunidades possíveis. Infelizmente, parece que os fatos ainda não são empecilho para uma boa ideologia, e isso significa que as políticas prejudiciais ainda são a única opção.


Austeridade em 2013 - Produzindo Recuperação Apesar das Evidências


Quando se investiga a fundo os casos dos países em separado, a história não fica melhor para aqueles que ainda defendem a austeridade. O Reino Unido observou um retorno dramático ao crescimento apesar de seus cortes. Mas esse impulso para o crescimento baseia-se quase inteiramente em Londres, onde o governo criou uma nova bolha imobiliária baseada em trazer de volta o setor financeiro, dessa vez com airbags maiores [16]. O resultado foi o reinício dos empréstimos hipotecários por meio de um esquema que obtém empréstimos de 80% de empréstimo a valor (LTV), sendo 95% às custas do suporte público, basicamente dando a todos que se candidatam sua própria garantia à la Fannie e Freddie [17]. O resultado foi um aumento dramático nos preços das casas em Londres e um novo impulso de consumo devido a este efeito de riqueza. Em outras palavras, é o mesmo velho modelo de crescimento trazido de volta novamente, e desta vez com preocupações crescentes até mesmo por parte do Banco da Inglaterra [17]. Na verdade, esta é uma notável elucidação sobre o Estado oco, de monocultura financeira, que é a economia do Reino Unido, onde até mesmo um crescimento tão modesto se encontra com uma enchente maciça de importações, produzindo os piores números da balança de pagamentos do Reino Unido desde 1955[18]. O crescimento pode até estar lá, mas seus principais beneficiários são os chineses e outros exportadores - não o trabalhador britânico.


Que o Partido Trabalhista, de oposição no Reino Unido, tenha agora abraçado a ideia da necessidade de continuar os cortes, mesmo se ganharem as próximas eleições, fala para o estado lamentável do lado da receita do orçamento do Reino Unido mais do que qualquer lógica de contração fiscal expansionista [19]. Dito de forma simples, o gasto público do Reino Unido foi possível graças à excessiva dependência de um setor financeiro que agora está sob pressão para emprestar mais e, ao mesmo tempo, capitalizar e reduzir o risco, de modo que as receitas fiscais caíram. Isso, somado a um politicamente insustentável aumento de impostos situados no meio da distribuição de renda para obter receitas que nem o governo nem a oposição querem assumir a culpa, significa que cortes em vez de aumentos de receita são as cartas que estão na mesa para ambos os partidos[20]. Como tal, cortes contínuos no Reino Unido fazem mais sentido como seguro político para ambos os partidos permanecerem no poder do que como qualquer estratégia econômica sensata [21].


A Irlanda saiu de seus planos de resgate sob aplausos em dezembro de 2013, e agora é capaz de fazer flutuar títulos de dez anos a pouco mais de 3%. Que seja capaz de fazê-lo tem, mais uma vez, tudo a ver com o “Draghi put” diminuindo os rendimentos de títulos e os custos de financiamento bancário, e muito pouco a ver com a extraordinariamente austera posição orçamentária da Irlanda nos últimos anos, em que “consolidou quase 20% PIB durante um período de 8 anos, sem qualquer perturbação industrial ou social significativa [22]”.


Embora uma recente análise patrocinada pelo parlamento europeu sobre os programas de austeridade na periferia conduzida pelo Think Tank Brugel alegasse que, no caso irlandês, “a consolidação fiscal foi feita de forma equilibrada... o que contribuiu para restaurar a confiança nas finanças públicas irlandesas [23]”, é difícil ajustar isso ao fato de que a dívida bruta da Irlanda em relação ao PIB está agora em 123% e pode aumentar para 140% antes de estabilizar, enquanto seus déficits orçamentários ainda estão na faixa de 6 a 8%, mesmo se estiverem projetados para descer ainda mais. Assim, o ponto chave permanece - foi a consolidação orçamentária que restabeleceu a confiança ou foi o conhecimento de que os títulos irlandeses e outros denominados em euros poderiam ser trocados por dinheiro que baixou as taxas de rendimentos? A evidência para a posição anterior parece ser mais afirmada do que demonstrada.


Considere que na Irlanda, apesar de toda a liquidez do BCE ter reduzido as taxas de rendimentos, também permitiu aos bancos irlandeses jogarem um jogo indefinido de “prolongar e fingir” com os NPLs que constituem, de acordo com o FMI, quase um quarto de todos os empréstimos em seus livros [24]. De um modo ou de outro, essas perdas terão de ser reconhecidas e, quando o fizerem, segundo Morgan Kelly, há uma probabilidade muito alta de um grande impacto afetar o setor de pequenas e médias empresas na medida em que os bancos cobrarem todos os empréstimos que puderem para cobrir essas perdas, o que terá um efeito importante e prejudicial sobre o emprego [25].


Mas, mesmo que se admita tudo isso, as lições da experiência irlandesa simplesmente não são aplicáveis a outros Estados. Mais uma vez, como observa o relatório Brugel, o “tremendo sucesso da Irlanda no setor das exportações (...) reduziu substancialmente o impacto do ajustamento fiscal sobre a economia”[26]. No entanto, esse truque não está disponível para ninguém, uma vez que “grande parte da base [irlandesa] poder ser considerada exógena à economia”, de tal forma que a Irlanda foi capaz de “gerir uma deflação... enquanto deixava as exportações intocadas” [27].


Como o livro detalha, a maioria das exportações da Irlanda são “caixas vazias” de arbitragem de impostos e jogos de preços de transferência que são possíveis apenas por conta de seu papel único como porta de entrada para a Europa para multinacionais estrangeiras devido à sua taxa de imposto corporativo superbaixa. Este histórico de exportação não é sustentável se o crescimento vacilar em mercados de países terceiros, nem é replicável em outro lugar, uma vez que, por definição, nem todos podem ser um centro de arbitragem de impostos [28]. E nenhuma das projeções relativamente favoráveis para a Irlanda pós-resgate que ignoram esses fatos se preocupam em considerar que a Irlanda perdeu nos últimos cinco anos 50 mil graduados por ano para a imigração. Eles são a base tributária futura da Irlanda de que o governo precisa para pagar de volta essa enorme pilha de dívida que acumulou ao resgatar seus bancos e depois aplicar a austeridade. Infelizmente, eles não parecem estar voltando para casa tão cedo.


Os outros estados periféricos da zona do euro, mesmo os maiores e menos periféricos, não tiveram desempenho melhor um ano depois. Portugal pode ser o próximo a abandonar os seus programas de resgate, mas o desemprego está em 15,3% e estima-se subindo novamente para 17,7% em 2014 [29]. A dívida pública aumentou para 124% do PIB e, embora sua performance de crescimento tenha aumentado em 2013, não há nenhuma evidência de que isso se deva aos efeitos de confiança da austeridade finalmente aparecendo. Afinal, sua dívida ainda está aumentando devido à severidade dos cortes. Em vez disso, tal como a França em meados de 2013, o crescimento recente de Portugal é devido ao fato de ambos os países não terem alcançado suas metas de déficit em 2013, de modo que quando seus déficits aumentaram os estabilizadores automáticos da economia (impostos para baixo - transferências para cima) apareceram de fato e forneceram um impulso fiscal.


Portugal cresceu mais rápido no segundo trimestre de 2013 e o crescimento desacelerou quanto mais se apertou o cinto no final daquele ano. A França cresceu mais rapidamente no mesmo trimestre sob grandes aplausos - e, em seguida, o crescimento caiu para zero no trimestre seguinte, uma vez que apertou novamente. O crescimento aconteceu porque ambos os países deixaram de aplicar a austeridade, brevemente. E apesar de Portugal ter sido um dos melhores alunos da classe em matéria de austeridade, apesar de todos os seus esforços e do efeito do “Draghi put” sobre as taxas de rentabilidade dos títulos, o investimento caiu drasticamente nos últimos dois anos. Isso não é um bom presságio para o crescimento futuro necessário para pagar de volta toda essa dívida, a dívida acumulada por causa da resposta austera à crise, e não antes da crise [30].


A Espanha e a Itália mantiveram-se paralisadas com os bancos insolventes e os governos insolventes, sendo “prolongar e fingir” o nome do jogo tanto em política como em economia em ambos os países. A Espanha registrou um crescimento marginal positivo no segundo semestre de 2013, mas sua taxa de crescimento anualizada manteve-se negativa, enquanto o desemprego permaneceu estável em 26%. A performance do desemprego italiano em 2013 foi muito melhor do que a Espanha, chegando à metade da taxa espanhola, mas o crescimento anualizado manteve-se negativo ao longo de 2013, à medida que sua dívida em relação ao PIB aumentou para 132%. Enquanto isso, a contínua instabilidade política na Itália sugere que o caminho para mais austeridade e reforma estrutural tecnocrática é, na melhor das hipóteses, limitado.


A Grécia, modelo tanto de desregramento quanto de austeridade, sofreu o regime mais duro de austeridade e tem se saído pior que todos os demais. Mesmo o relatório Brugel, patrocinado pelo parlamento europeu, admite isso com um grau irônico de subavaliação. Conforme apontaram em seu relatório de como a Grécia respondeu à austeridade, “a primeira e mais surpreendente constatação é que a realidade mostrou que as premissas iniciais do programa eram bastante erradas”. Essas premissas iniciais, referentes às trajetórias projetadas do PIB, da demanda doméstica e do desemprego sob a austeridade, que estruturou as expectativas de resultados dos programas gregos estavam deslocadas em 20, 24 e 17%, respectivamente, contra a realidade [31].


Na verdade, a Grécia perdeu quase um terço do PIB em um período de cinco anos, enquanto gerava desemprego acima de 25%. E mesmo que sua carga de dívida finalmente tenha começado a cair, ainda está em 156,9% do PIB mesmo após um grande corte nas propriedades de títulos, enquanto a economia subjacente continua a encolher. E é na Grécia onde o custo humano da austeridade vem à tona. Para dar apenas um conjunto de exemplos de saúde pública, desde o início da crise, os cortes da austeridade na Grécia resultaram em um corte de 25% no financiamento de hospitais e cuidados primários, o que resultou em um aumento de 32 vezes nas infecções de HIV entre 2009 e 2013. Os suicídios aumentaram em 45% e a mortalidade infantil aumentou em 43% no mesmo período. E em 2013, a Grécia teve seus primeiros casos domésticos de malária desde 1974 [32].


Então Por Que Isso Continua? Bem-Vindo à Opção de Venda Específica de uma Classe


Se não está funcionando, em mais um ano, por que isso continua? Em Austeridade a resposta que eu dei foi de que isso fazia parte da “maior estratégia de propaganda enganosa da história humana”, em que as dívidas privadas dos sistemas bancários do mundo desenvolvido foram resgatadas e recapitalizadas através do balanço do setor público. O resultado foi que a dívida privada foi transformada em dívida pública de tal forma que os benefícios foram para os participantes do jogo e os custos foram para os contribuintes. Depois de mais 12 meses pensando nisso, cheguei a uma descrição mais ponderada desse processo em uma coluna que escrevi para o The Guardian em 2013[33]. Ou seja, enquanto a austeridade ainda é a “maior estratégia de propaganda enganosa da história humana”, talvez seja mais apropriadamente definida como uma “opção de venda específica de classe” contra a maioria dos cidadãos pobres de ativos da OCDE. Para entender por que este é o caso, temos de lembrar o que é uma opção de venda e como os bancos realmente funcionam.


Uma opção de venda é um contrato em que autor do contrato tem a obrigação de pagar X ativo no momento Y, o direito ao qual o comprador pode exercer como “a opção”. Nesta definição, o chamado “Greenspan put” nos mercados globais antes da crise era uma opção de venda no sentido de que uma vez que os valores dos ativos dos EUA caíram para um nível específico, o Federal Reserve dos Estados Unidos (o autor do contrato) cortou as taxas de juros para compensar essas perdas. O mais recente “Draghi put” foi uma opção de venda na medida em que o BCE escreveu uma opção para cobrir o risco de quebra e risco de liquidez na zona do euro através dos programas LTRO. A austeridade é então uma “opção de venda específica de classe” no seguinte sentido.


Hoje ouvimos muito sobre a crescente concentração de riqueza e renda nos países da OCDE, especialmente no que diz respeito à crescente participação na renda do 1%, que atingiu o pico de 24% do total nos EUA pouco antes da crise, e pode ter ultrapassado esse número em 2013[34]. Mas ao expandir essa amostra um pouco para incluir os 10% superior da distribuição de renda, descobre-se que eles levam para casa mais de 50% de toda a renda. Embora tais números não estejam disponíveis com tanta facilidade, é provável e razoável dizer que os 30% superior da distribuição de renda dessas sociedades obtenha a vasta maioria dos rendimentos e possua a maior parte dos ativos desses países.


Agora, tendo em vista essa suposição, pensemos sobre como os bancos realmente funcionam, já que as coisas raramente são o que parecem. Quando você “poupa”, você de fato não poupa nada. Quando você deposita dinheiro em um banco em um ato de poupança você está realmente dando - pelo menos em muitos países europeus - um empréstimo não garantido a uma empresa de negociação de derivativos altamente alavancada na esperança de que você receberá seu dinheiro de volta com juros mais tarde.[35] Da mesma forma, quando um banco lhe dá um empréstimo para comprar um ativo, uma casa, por exemplo, esse ativo é o passivo do banco. O ativo do banco, em vez disso, é o empréstimo, que é o seu passivo, ou seja, a hipoteca. Assim como as exportações e importações na economia global, os ativos/passivos do banco/tomador de empréstimo são simétricos e de soma zero.


Dado isto, quando você resgata um banco ou um sistema bancário, você não está apenas resgatando os banqueiros. Você está salvando os poupadores, as pensões, as hipotecas, os derivativos baseados nestes empréstimos e anuidades, e todo o resto que constitui os ativos do banco, que são seus passivos e vice-versa. Assim, quando os governos resgatam os bancos eles estão simultaneamente resgatando os ativos e rendimentos dos 30% superior da distribuição de renda.


Então, pense em resgates como uma opção de venda a ser exercida pelos 30% de cima contra os 70% abaixo da distribuição de renda. Quando os 30% de cima, pessoas como eu e (possivelmente) você, tem seus ativos salvos e uma enorme dívida pública em consequência disso, o custo de exercer essa opção de venda é pago pelas pessoas que não tem muitos de tais ativos e, por isso, dependem de gastos do governo e de bens públicos, precisamente o que é cortado. O segmento mais pobre da sociedade é obrigado a pagar por uma apólice de seguro que nunca concordou em garantir e para a qual nunca recebeu um único prêmio de seguro dos detentores dos ativos resgatados (ou seja, segurados). É por isso que a austeridade é melhor compreendida como uma opção de venda específica de classe. É seguro de ativos grátis para o topo da distribuição de renda, aquelas que também acabam por ser as pessoas que mais votam e financiam eleições. Que a longo prazo esta ação individualmente racional irá se provar coletivamente desastrosa também para o topo é um custo não internalizado no preço da opção. Mas é um que preço que todos nós temos de pagar à medida que austeridade prossegue. Um ano depois, a opção de venda específica de classe que é a austeridade continua.



As Novas Instituições da Austeridade: O Bom, o Mau e o Inútil


A despeito disso tudo, uma interessante reengenharia institucional ocorreu na zona do euro nos últimos 12 anos. Uma parte dela é boa, outra sem sentido, e uma última é absolutamente perigosa. Na primeira categoria podemos incluir a proposta de uma união bancária na UE que encontrou sua forma final em março de 2014. A união bancária é uma parte crucial das instituições que deveriam ter sido construídas no momento de realização da união monetária, mas não foram.[36] Ou seja, quando você tem um monte de bancos em nível nacional todos emprestando em moeda estrangeira, o que o euro de facto é para cada um deles, e muitos deles começam a se tornar maiores do que os soberanos que garantem seus riscos, então é melhor ter algumas instituições pan-europeias de supervisão bancária, regulação bancária, e segurança comum para os depósitos. Infelizmente, já que a UE parecia pensar, e ainda pensa, que o as únicas instituições que valeriam a pena ser construídas eram aquelas que restringiam a ação soberana ao invés dos bancos, isso não aconteceu, o que resultou na bagunça bancária descrita acima. Ainda assim, no início de 2014 a união bancária finalmente fincou seus pés, o que é bom. Porém, novamente, um olhar mais cuidadoso sugere que isso não é exatamente o conjunto de instituições que se pretende ser.


Primeiro de tudo, enquanto ter alguma união bancária é melhor do que não ter nenhuma, essa ainda tem várias peças importantes faltando. [37] Para ter credibilidade, a união bancária necessita, como Paul de Grauwe disse, “uma autoridade com poder financeiro. Eles não têm, então não temos uma unidade bancária”. [38] O problema de De Grauwe é que embora o mecanismo de supervisão acordado que coloca o BCE responsável pela solvência dos bancos acima dos reguladores nacionais é uma boa ideia e um mecanismo de resolução comum que dê a esses reguladores o poder e o dinheiro para fechar as instituições que falham é ainda melhor, todo o arranjo é limitado a € 55 bilhões. Isso não é muito quando se considera que só a Hypo Real Estate, uma administradora de hipotecas alemã que teve problemas em 2008, precisou de mais de € 100 bilhões em garantias estatais para permanecer à tona [39].


Segundo, o fundo em si mesmo será construído ao longo de um período de oito anos, o que sugere que pouco acontecerá de agora até 2022, enquanto sua capitalização, se o fundo chegar a ser usado, estará limitado pelo fato de que não há mutualização a suportá-lo. [40] E talvez mais importante, mesmo que tenhamos oito anos em frente sem um soluço, esse arranjo não faz nada pelo que eufemisticamen- te é conhecimento como “legado de ativos” - algo entre € 1,2 - 1,5 trilhões em NPLs que desordenam o balanço dos bancos europeus atualmente. Como Wolfgang Munchau tem repetidamente argumentado, esse arranjo pode funcionar para a próxima crise, mas não funciona para a crise atual [41].


Terceiro, enquanto o SSM (Single Supervisory Mechanism) e o SRM (Single Resolution Mechanism) são novas instituições bastante necessárias, uniões bancárias são estabilizadas pelo seguro de depósito mais do que qualquer outro fator. E enquanto o acordo da união bancária garante depósitos normais de até € 100 mil em toda a união, não há um fundo central para apoiar isso. Tudo recai sobre as autoridades nacionais, que é o problema que a união bancária supostamente deveria resolver em primeira instância. A outra “grande bolsa para o euro” na praça, o Mecanismo Europeu de Estabilidade (ESM), o sucessor do Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (EFSF) que resgata Estados não pode ser usado para recapitalizar e restituir o SRM, nem pode cobrir as falhas no seguro de depósitos. Em resumo, a união bancária que a Europa precisa, uma que possibilitaria o atual legado de ativos, principalmente os maus depósitos encalhados no setor bancário espanhol e outros setores bancários relacionados, serem trocados por outros ativos ou registrados como perdas sem desencadear uma implosão sistêmica, necessita algo mais do que isso para ser efetivo. Necessita de algum tipo de seguro comum de depósitos, um veículo de financiamento do BCE de propósito específico para agir tirando os NPLs dos livros dos bancos, ou uma extensão do ESM para funcionar corretamente, nenhuma opção das quais parece estar na mesa.


Isso, contudo, assinala a gradual supressão do apoio oficial ao setor bancário europeu, o que pode produzir várias consequências não esperadas. Uma, a possível implosão futura do setor das pequenas e médias empresas irlandesas, que já foi observada. A outra é o rebaixamento dos bancos europeus em vez de sua estabilização, que é o que a agência de classificação de risco Fitch fez a dezoito bancos da UE logo após a assinatura do acordo de união bancária. Como disse a Fitch, “a probabilidade de um rebaixamento ou de uma revisão em baixa baseia-se em novos avanços na implementação dos aspectos legislativos e práticos de permitir estruturas efetivas de resolução bancária [42], o que provavelmente reduziria o apoio soberano implícito aos bancos na UE”[43] Para alguns bancos pelo menos, a união bancária pode ser mais má do que boa notícia, o que é uma má notícia para a Europa como um todo.


Enquanto as novas instituições da união bancária podem ser bem qualificadas, algumas outras, como o ESM e seu braço político OMT podem ser consideradas um tanto inúteis [44]. Afinal, essas instituições são um pouco como a antiga doutrina da Destruição Mutuamente Assegurada (MAD) da Guerra Fria. Funciona apenas porque não é utilizada. Se a doutrina fosse testada, os resultados seriam desastrosos para ambos os lados [45]. Se a Espanha, por exemplo, se candidatasse ao ESM para um empréstimo e a OMT fosse ativada para aliviar as tensões nas taxas de rendimento de seus títulos, isso equivaleria a uma admissão total de insolvência soberana, o que iniciaria a própria corrida bancária por meio dos mercados de títulos que estas instituições são projetadas para evitar. Nesse ponto, como disse o negociante de títulos Bill Blain, essas novas instituições seriam “suficientes para cobrir os primeiros 20 segundos da próxima crise financeira europeia quando os NPLs estiverem nos patamares de 1,5 trilhão” [46].


Algumas das outras novas instituições, como o novo Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governança, que entrou em vigor em março de 2012, são, no entanto, extremamente perigosas [47]. Este novo tratado exige que os orçamentos nacionais sejam “equilibrados ou superavitários” a médio prazo com a aplicação desta regra garantida por um controle mais rigoroso e disposições “preferencialmente constitucionais” nos ordenamentos jurídicos nacionais. Os países que têm “desvios significativos observados” dos novos limites fiscais consagrados no tratado terão sanções automáticas colocadas sobre eles. Além disso, os Estados signatários concordam que “todas as grandes reformas políticas que pretendem empreender serão dis- cutidas ex ante e, se necessário, coordenadas entre si” [48] (artigo 11). Como se os limites das ações dos Estados para compensar os choques econômicos exógenos já não fossem suficientemente vinculantes, a UE os tornou ainda mais restritos - mas para que fim?


As especificidades deste tratado atentam contra a lógica básica. Por exemplo, o procedimento de desequilíbrios macroeconômicos (MIP) no coração do tratado, que define um “placar” para o quão bem os países estão indo, permite que os países tenham um déficit em conta corrente máxima de 4% ou um excedente de 6% [49]. Dado que as importações e exportações somam zero, esse excedente de +2% deve ser compensado de alguma forma. Mas como Austeridade e uma série de outros analistas têm apontado, não podemos todos ter superávit ao mesmo tempo. Alguém tem de comprar as exportações, e se o tratado não permitir déficits correspondentes dentro da zona do euro, então eles devem ser despejados fora. Mas com o consumidor estadunidense sem dinheiro e as economias asiáticas operando também a partir de exportações, está longe de ficar claro a partir de quem isso ocorrerá. Déficits e excedentes podem somar a zero, mas na UE apenas um lado da equação é passível de punição. Quando foi registrado que a Alemanha efetivamente gerou um superávit da conta corrente de 7,3% no início de 2014 e a Comissão Europeia se referiu a isso como um desequilíbrio estrutural, a Alemanha recusou-se publicamente a aceitar as críticas [50].


O tratado também está cheio de desequilíbrios de distribuição e de poder. O MIP definiu o desemprego como “excessivo” em apenas 10% ou mais, enquanto a dívida pública é “excessiva” quando supera 60%. Um elevado nível de desemprego é tolerável, uma dívida pública moderadamente elevada não é, e os déficits orçamentários superiores a 3% continuam a ser considerados inaceitáveis. Acrescente-se tudo isso e depois lembre-se do artigo do Tratado no qual todas as reformas políticas importantes devem ser discutidas ex ante entre os signatários, e você pode ter a sensação de que a UE está tentando tornar a política fiscal em algo ilegal.


Independentemente de ser keynesiano ou não, essa atitude fiscal está criando fragilidade no sistema, já que mesmo os estados mais liberais da OCDE ainda taxam e gastam pelo menos 30% do PIB. Amarrar as mãos do estado ex ante nesta medida, ignorando completamente o nível de demanda interna ou a possibilidade de choques externos graves, mostra que a governança da zona do euro não evoluiu muito em seu modo de pensar ao longo dos anos. O projeto ainda tem tudo a ver com a tentativa de transformar toda a zona do euro em uma gigantesca Alemanha através de reduções salariais que, teoricamente, resultarão em um superávit permanente contra o resto do mundo. Isso nunca pode funcionar em seus próprios termos, e certamente não pode funcionar se o problema subjacente ainda é uma crise bancária que está sendo, na melhor das hipóteses, parcialmente abordada por um conjunto de instituições incompletas.


Em resumo, a Europa não é e ainda não pode ser transformada em uma única economia. É constituída por diferentes variedades de capitalismo que trabalham em princípios ortogonais [51]. O caminho atual de recuperação através de reformas estruturais (mais sobre isso em breve) e novos compromissos de tratados ignora esse fato, tentando fazer conjuntos muito diferentes de complementaridades institucionais nacionais em um conjunto de instituições transna- cionais complementares. Economias são complexos historicamente específicos de instituições e ideias. A tentativa atual de transformar toda a Europa em um exportador líquido à imagem da Alemanha não pode funcionar uma vez que se reconheça isso. Assim como o desenho de um conjunto de instituições bancárias falhas para cobrir os riscos do continente acabando mal, nos arriscamos a piorar ainda mais nossa possibilidade de queda com uma agenda falha de reforma fiscal, de tipo “um tamanho único para todos”. Na verdade, houve algumas reformas institucionais positivas no ano passado, mas como geralmente é o caso, elas estão emaranhadas em alguns acidentes graves - esperando para acontecer. Temos um novo conjunto de regras rigorosas para impedir que o setor público faça as coisas enquanto as novas regras sobre o setor privado, onde os problemas ainda estão, são, na melhor das hipóteses, medíocres.


Ideias Austeras um Ano Depois


As ideias se movem a uma velocidade diferente da política. Ter uma ideia não tem custo, entretanto admitir que as ideias de alguém estão erradas custa caro. Implementar novas ideias na política é, portanto, caro e lento. É por isso que as ideias dos governos mudam mais lentamente do que as políticas. No entanto, o ano passado viu mais do que algumas mudanças dramáticas na topografia de ideias sobre a austeridade, mas não onde isso mais importa.


O primeiro lugar para procurar qualquer mudança nas ideias é o lugar menos provável para encontrá-la. Isso seria nas posições políticas e nos documentos de investigação da troika (Comissão Europeia, BCE e FMI), cujas análises enquadraram a política de austeridade na Europa. Dada a dimensão dos erros de previsão nas estimativas de política da troika, como se observou acima, poderia se pensar que alguns novos pensamentos poderiam ter ocorrido em resposta a esses erros e, como veremos, isso de fato aconteceu com um terço da troika, o FMI. Com os outros dois terços, no entanto, vemos uma mudança na ênfase, mas as ideias subjacentes permanecem as mesmas, apesar das evidências.


O relatório Brugel sobre a austeridade, encomendado pelo parlamento europeu, que se sublinhou anteriormente, analisa com êxito a linguagem dos documentos da troika ao longo do tempo e assinala a passagem de termos como “fiscal”, “consolidação” e “reforma” que dominaram os documentos iniciais da reforma a uma maior ênfase em termos como “crescimento” e “emprego”. [52] Isso talvez não seja surpreendente, dada a falta de crescimento e alto desemprego produzido pela implementação dessas políticas.[53]


Ao lado dessa mudança, no entanto, há outra mudança, associada a termos como “reforma estrutural” e “privatização”, que aumentam em uso durante esse mesmo período. Isso talvez sugira que em economias em forte tensão, onde os efeitos de confiança não apareceram, outras estratégias de receita e crescimento teriam de ser encontradas? O reconhecimento mais significativo, no que se refere à admissão do erro, é sobre a baixa oferta. Como observa o relatório Brugel, “uma vez que uma melhor coesão econômica e social é um dos principais objetivos da UE... estudamos com que frequência questões como pobreza, equidade e desigualdade são discutidas nos documentos”, e observa que “com exceção da Grécia, a questão não recebeu praticamente qualquer atenção nos documentos do programa da Comissão”.[54] Tomadas em conjunto, tais mudanças intertemporais dificilmente sugerem uma mudança de paradigma no pensamento entre dois terços desses relevantes promotores de políticas públicas.


A Falsa Promessa da Reforma Estrutural


Alguém poderia citar esta mudança da austeridade para a reforma estrutural e privatização como evidência de um novo pensamento em termos de uma ênfase renovada no crescimento através de reformas estruturais em detrimento da austeridade. Mas isso é de fato parte do mesmo velho conjunto de ideias. Primeiro você consolida, então faz a reforma estrutural, daí cresce, em teoria. Este é um tema denso e eu seria a última pessoa a argumentar que os países do sul da Europa não precisam de sua parte em reformas. Com efeito, como defendi em Austeridade, dois deles em particular, a Grécia e Portugal podem necessitar de modelos de negócio inteiramente novos. Mas, como a história recente dos esforços de reforma estrutural na Europa e outros lugares já demonstraram, obter uma reforma econômica substancial nesses países não será possível se o método empregado for de comando e controle tecnocrático, de cima para baixo. Além disso, se as reformas estão baseadas em suposições erradas, então as chances de sucesso diminuem ainda mais.


Em primeiro lugar, a tentativa de reformar os mercados de trabalho e de produtos em meio a uma depressão é semelhante à reparação de um telhado quando está em chamas. O argumento frequentemente ouvido de que isso tem de ser feito agora porque as economias do sul não fizeram nenhuma reforma anteriormente, durante os “bons tempos”, não encontra verificação empírica. Como Peter Hall mostrou recentemente, no índice da OCDE para a regulação do mercado de produtos, um índice razoável de flexibilidade, a partir de 1998-2003, Itália e Espanha superaram a Alemanha e Holanda.[54] Da mesma forma, como observa Hall, “medido em termos independentes dos custos salariais, a produtividade do trabalho aumentou em países como Portugal e Grécia (embora não na Espanha e Itália) a taxas proporcionais às do norte da Europa durante a década até 2009”.[55] De acordo com essas métricas, pelo menos, a noção de que esses países não reformaram nada simplesmente não é verdadeira.


No que se refere à Itália e à Espanha, muito é feito de como os chamados “trabalhadores internos” (trabalhadores sindicalizados) se beneficiaram do euro à medida que os custos salariais subiram e a competitividade caiu. Em consequência, a troika argumenta que os salários destes trabalhadores, como parte necessária do ajustamento, devem cair para restaurar a competitividade. Contudo, como Jonathan Hopkin demonstrou, os salários industriais italianos sindicalizados ficaram praticamente estáveis ao longo dos anos 2000. [56] Ironicamente, os que se deram melhor foram aqueles nos setores protegidos de bens não-comercializáveis, que faziam parte da coalizão “pró-negócios” de Berlusconi. Dado isto, a reforma do mercado de trabalho na Itália tem o alvo errado em sua mira.


Na Espanha, as faixas etárias do mercado de trabalho com a maior parte dos custos descendentes de ajustamento e desemprego são jovens trabalhadores temporários. Ou seja, aqueles que já trabalham na parte mais flexível do mercado de trabalho.[57] Por conseguinte, não é clara a forma de flexibilizar os mercados de trabalho espanhóis nesta conjuntura, para restaurar o crescimento na Espanha ou em qualquer outro lugar. A Irlanda, para efeitos de comparação, já possui um dos mercados de trabalho mais flexíveis do mundo. Não está claro como a abolição do já baixo salário mínimo da Irlanda irá restaurar o balanço do Anglo-Irish Bank, ou, para tomar outro exemplo comparativo, como se livrar do monopólio de taxistas em Atenas levará a uma recuperação mais rápida do setor exportador grego?


Finalmente, como a análise de Pepper Culpepper sobre a incapacidade do governo Monti para obter reformas na Itália sem o apoio das camadas sociais é clara, e o relatório de 2004 do Banco Mundial sobre uma década de programas de ajustamento estrutural (reforma estrutural no terceiro mundo) previamente admitiram, os países precisam de reformas próprias feitas para eles para que funcionem.[58] Bruxelas pode insistir em reformas, mas isso não significa que os Estados irão persistir nelas, especialmente se a lógica por trás delas é tão falha, para começar. A democracia não é um problema de risco moral a ser superado: é a chave para a reforma.


Na verdade, todo o fascínio com a reforma estrutural dos mercados de trabalho como a chave para o crescimento é, na melhor das hipóteses, duvidoso, uma vez que se baseia em uma interpretação equivocada da retomada econômica da Alemanha em meados dos anos 2000.[59] A reviravolta da Alemanha em 2000 é muitas vezes atribuída às chamadas reformas Hartz daquela década, que reduziram a proteção do bem-estar e aumentaram a participação no mercado de trabalho. A Alemanha “tomou o remédio amargo”, assim conta a história, que todo mundo deve seguir. O problema é que o medicamento não pode funcionar por duas razões. O primeiro já tratamos a respeito. A totalidade da UE não pode gerar um excedente em relação ao resto do mundo. A Alemanha é apenas a Alemanha porque todos os outros não são a Alemanha. Um continente inteiro não pode jogar o mesmo truque quando uns são os mercados de exportação principais dos outros.


Em segundo lugar, e mais importante do ponto de vista da reforma estrutural, a ideia de que as reformas de Hartz conduziram ao recente surto de crescimento da Alemanha revela-se empiricamente falsa. Dustmann et al demostraram, usando dados alemães, que a razão pela qual os salários caíram na Alemanha foi a reunificação do país na década anterior, mais a expansão do setor automotivo alemão no exterior, que limitou os aumentos salariais por uma década antes das reformas Hartz. Isto, mais custos de entrada mais baixos dos fornecedores do leste europeu durante esse mesmo período, conduziu aos bens de exportação ainda mais inelásticos que se beneficiaram do boom dos 2000 e a demanda continuada fora da UE no pós-crise [60]. Tudo o que as reformas de Hartz realmente fizeram foi criar um setor de serviços de baixa produtividade abarrotado muito mal pago na Alemanha que aumentou dramaticamente a desigualdade no país.[61] Se Dustmann et al estiverem corretos, então a habilidade de qualquer pessoa de ativar esse truque é zero.


Diante de tudo isso, por que então vemos essa mudança de foco das maravilhas expansionistas da austeridade para a necessidade de reforma estrutural? Vemos porque “reforma estrutural” é para onde você move as metas uma vez que o primeiro conjunto de metas acabou por ser uma miragem, como a consolidação fiscal expansionista e a redução da dívida através da austeridade acabaram por ser. O único problema é que os proponentes da reforma estrutural terão de mudar novamente os alvos, uma vez que essas estratégias também não produzem resultados positivos, como já fizeram tantas vezes antes e em praticamente qualquer escala de tempo, se não estiverem devidamente incorporadas nas sociedades que as realizam.


O FMI e as Tensões no Interior da Troika


A parte da Troika que mudou substancialmente as suas ideias é o FMI. Como Austeridade detalha, a partir de 2008, sob o então diretor-gerente Dominique Strauss-Kahn, o FMI recuou para uma linha muito mais expansionista do que tinha feito em episódios anteriores de crise. Os cínicos, como eu, inicialmente pensaram que este era um caso de “agora que os ativos dos países centrais estão em risco, nós os resgatamos em vez de deixarmos quebrar”, mas a transformação provou ser mais do que oportunismo. Como detalha Cornel Ban, as ideias de política do FMI mudaram substancialmente ao longo da crise em várias posições [62]


A mudança mais conhecida é a chamada “Batalha das Caixas”, em que o FMI estimou multiplicadores fiscais negativos maiores do que um para os países periféricos da Europa, o que significou que uma redução de um euro na despesa pública conduziu a uma redução de mais de um euro no consumo final e no PIB, sem efeitos compensadores de confiança. [63] Os multiplicadores negativos também implicam os positivos, como as exigências recíprocas, e como tal este desafio não se limitou às caixas técnicas dos relatórios do FMI. Ao sustentar isso abertamente, todo o edifício neoclássico da abordagem do BCE e da CE para a crise foi desafiado dentro da própria troika.


Previsivelmente, a CE revidou no final de 2012 com a sua própria versão de estimativas de multiplicadores para contrariar as do FMI, argumentando que, em essência, as políticas da troika estavam bem, e os multiplicadores teriam sido menos que um, tal que a contração teria tido um efeito positivo afinal, se não fosse por tanta gente falando sobre a dissolução do euro, o que piorou as coisas.[64] O FMI continuou com a nova linha apesar desta tentativa de refutação pela CE, e também pelo BCE. [65] Na verdade, o impulso de pesquisa do FMI nos últimos cinco anos tem se afastado bastante dos defensores da consolidação que antes eram. A desigualdade como um constrangimento ao crescimento, a necessidade de impostos mais altos sobre as remunerações do topo, os efeitos positivos do investimento público, ambiental, e até mesmo os impostos sobre a riqueza agora abundam no cenário de pesquisas do FMI.[66] E mais recentemente, o FMI acaba de colocar o último prego no caixão sobre o artigo pró-austeridade “Crescimento em tempo de dívida”[67] de Reinhardt e Rogoff. De fato, o FMI chegou a fazer com que o Washington Post publicasse a manchete “Comunistas se apoderaram do FMI!” [68] . Talvez hiperbólico, mas quando esse FMI está no mesmo leito de política com a CE e o BCE, fricções continuas devem ocorrer.


Do Excelgate ao fim da austeridade?


Falando de Reinhardt e Rogoff, talvez a mais dramática reviravolta do pensamento no ano passado tenha vindo desses dois economistas. Famosos por seu artigo “Crescimento em tempo de dívida” que previu uma rápida queda nas taxas de crescimento futuro se as relações dívida/PIB passassem de 90%, um estudante de economia da Universidade de Massachusetts em Amherst pediu ao professor Reinhardt o arquivo de Excel em que seu trabalho estava baseado, o obteve, e o dissecou até que não restasse mais nada, tudo com sonora repercussão no grande público, no que ficou conhecido como o “Exegate” [69] . Apesar da robustez dos resultados, tenho um certo grau de empatia pela posição de Reinhardt e Rogoff. Como discuti em Austeridade, dada uma escolha entre ter mais ou menos de 90% de dívida, e mantendo o método de redução da dívida de lado, quem não iria querer menos, em vez de mais?


O que colocou esses dois economistas em dificuldades foi menos o que eles disseram do que a maneira pela qual isso foi tomado por aqueles a quem Aditya Chakrabortty no The Guardian chama de “jihadistas da austeridade”, que usaram o meme 90% para rufar os tambores para os cortes em qualquer lugar independentemente da qualificação e das advertências do artigo original. Derrubar os autores foi, portanto, mais sobre a derrubar os bastiões do meme 90% do que qualquer outra coisa. Maltratados e feridos por conta deste caso, alguém poderia esperar uma queda ainda maior de Reinhardt e Rogoff após esses ataques. Mas eles simplesmente seguiram seu trabalho, deixando os dados conduzi-los onde poderiam levá-los, e para onde os levaram hoje é bastante notável.


Em janeiro de 2014, Reinhardt e Rogoff escreveram um novo documento de trabalho do NBER intitulado “Recuperação das crises financeiras: evidências de 100 episódios”[70]. Além de estender o trabalho anterior sobre os custos e a duração das crises, este artigo é notável por conta de sua afirmação central de que a atual recessão, especialmente na zona do euro, não tem comparação. Desta vez, aparentemente, é realmente diferente. De fato, a sua conclusão vale a pena ser citada longamente:


A atual fase da abordagem política oficial baseia-se no pressuposto de que o crescimento, a estabilidade financeira e a sustentabilidade da dívida podem ser alcançados através de uma mistura de austeridade e paciência (e alguma reforma). O argumento é que os países avançados não precisam recorrer às políticas mais ecléticas dos mercados emergentes, incluindo reestruturações e conversões da dívida, inflação mais alta, controles de capital e outras formas de repressão financeira. Agora, entrando no sexto ou sétimo ano (dependendo do país) da crise, a produção permanece bem abaixo do seu pico pré-crise em dez dos doze países em crise. A diferença com a produção potencial é ainda maior. Os atrasos na aceitação de que os tempos desesperados exigem medidas desesperadas continuam aumentando as chances de que, como documentado aqui, esta crise pode, no final, superar em gravidade a depressão da década de 1930 em um grande número de países. [71]


Quando as duas figuras intelectuais talvez mais apontadas como sinônimo de argumentos a favor da austeridade, pelo menos na lembrança do público, chegam tão longe, isso nos mostra como em alguns círculos realmente houve uma mudança de pensamento a respeito da austeridade em um período muito curto, o que é mais do que bem-vindo. Infelizmente, esses lugares não prescrevem política para a zona do euro. Isso é feito pela troika e implementado por governos conscientes de que estão exercendo a opção de venda específica de classe como descrito acima, razão pela qual, apesar dessas mudanças no campo das ideias, a política continua.


Ao encerrar este posfácio de um ano depois, uma menção especial deve ser reservada ao pensamento pré-ideológico de François Hollande, presidente da França, para justificar os cortes orçamentários franceses em janeiro de 2014, invocando a obviedade de Jean Baptiste Say de que a oferta cria sua própria demanda[72]. Eu falei longamente sobre a falência dos bancos europeus e das ideias europeias, mas é preciso muito para vencer o grande exemplo da falência de uma classe política. Quando a suposta alternativa socialista ao pensamento de austeridade se sai melhor do que a oposição citando ideias ingênuas do lado da oferta, que têm 211 anos, em busca de apoio, você sabe que a austeridade vai continuar apesar de toda e qualquer evidência, porque, acima de tudo, ela permanece sendo uma ideia perigosa, mas sedutora.


Mark Blyth South Boston, MA Abril de 2014


NOTAS


[1] A menos que haja outra indicação, todas as figuras neste posfácio são retiradas de tradingeconomics.com.


[2] Mark Blyth, Austerity: The History of a Dangerous Idea (New York: Oxford University Press 2013), p. 2.


[3] Tendo em conta os graves acontecimentos de grande preocupação no momento da escrita, estive tentado a chamar esse episódio à época de desacoplamento inconsciente da Europa, mas acabei optando por não o fazer.


[4] Jean Claude Trichet, “Introductory Comments with Q and A,” European Central Bank, Press Conference, 7 de maio de 2009. http://www.ecb.europa.eu/press/press- conf/2009/html/is090507.en.html.


[5] Como o Think Tank Brugel, de Bruxelas, colocou recentemente em um relatório que preparou para o Parlamento Europeu: “A indecisão da política europeia ... [e] ... a postura obscura sobre a reestruturação da dívida em geral ... deixou muitos investidores em um estado de incerteza. Esta incerteza pesou sobre o sentimento e as decisões de investimento”. Direção-Geral das Políticas Internas, Unidade de Apoio à Governança Econômica (EGOV), Estudo do Comitê sobre “A Troika e a Assistência Financeira na Área do Euro: Sucessos e Falhas” Fevereiro de 2014, p. 26.


[6] Ver Paul DeGrauwe and Yuemei Ji, “Panic Driven Austerity in the Eurozone”. Disponível em http://www.voxeu.org/article/panic-driven-austerity -eurozone-and-its-implications.


[7] Observe o momento desta fase em relação à intervenção decisiva de Mario Dra- ghi um mês depois.


[8] Blyth, Austerity pp. 84-87.


[9] Oliver Wyman, “The Shape of Things to Come: What Recent History Tells US About the Future of European Banking.” Oliver Wyman Consulting Group, Agosto de 2013, p. 14. Disponível em: http://www.oliverwyman.com/insights/pu- blications/2013/oct/the-shape-of-things-to-come.html#.Uztu_K1dUxM.


[10] Ibid.


[11] Ibid. p. 3.


[12] Ver Matthias Matthijs and Mark Blyth (eds.) The Future of the Euro, a ser publicado em 2014.


[13] Leia as partes fora dos parênteses primeiro, e depois releia, na íntegra, novamente.


[14] Ver Wolfgang Münchau, “Don’t Kid Yourself that the Eurozone is Recovering,” Financial Times, 29 de setembro de 2013. Disponível em http://www.ft.com/intl/ cms/s/0/99394460-26aa-11e3-bbeb-00144feab7de.html#axzz2xZpym4NP


[15] Esta é a razão pela qual Oli Rhen, Comissário da UE para os Assuntos Econômicos e Monetários, disse em uma entrevista ao El País, em 23 de Janeiro de 2014, que “levará mais dez anos para a crise espanhola ser resolvida” http://elpais.com/ elpais/2014/01/23/inenglish/1390468961_868224.html


[16] Para relatórios típicos ver goo.gl/o9dxiw e goo.gl/4otucg


[17] https://www.gov.uk/affordable-home-ownership-schemes/help-to-buy- equity-loans.


[18] http://www.theguardian.com/business/2014/mar/27/bank-of-england -house-prices.


[19] Ver http://www.tradingeconomics.com/united-kingdom/current-account.


[20] Ver Blyth, Austerity ... capítulos cinco e seis, para uma discussão desta ideia.


[21] Sobre os impostos britânicos ver “Higher Rate Tax Payers Pay Heaviest Burden” Financial Times,12 de março de 2014. Disponível em: http://www.ft.com/intl/ cms/s/0/2c5553b8-aa10-11e3-8497-00144feab7de.html#axzz2xHDgYfaC.


[22] Para uma análise da dinâmica ver Mark Blyth e Richard Katz, “From Catch all Politics to Cartelization: The Political Economy of the Cartel Party” Western European Politics Vol. 28 (1) Janeiro de 2005, pp. 34-61.


[23] Stephen Kinsella, “Post-Bailout Ireland as the Poster Child for Austerity,” a ser publicado em Ireland’s Recovery from Crisis, a ser publicado em 2014, p. 2. A figura de oito anos inclui orçamentos de austeridade até 2016.


[24]“The Troika and Financial Assistance in the Euro Area...” p. 36.


[25] Indicadores de solidez financeira do FMI citados em Ibid. p. 38. Ver também https://www.centralbank.ie/publications/Documents/Macro-Financial%20Review %202013.2.pdf.


[26] Ver a palestra “Whatever Happened to Ireland?” do Professor Kelley sobre a Irlanda disponível em goo.gl/c4xFRi.


[27] “The Troika and Financial Assistance in the Euro Area...” p. 36.


[28] Kinsella, “Post-Bailout Ireland.” p. 5.


[29] Embora isso não impeça que todos sigam tentando. O apoio de David Cameron à declaração do Loch Earn sobre a necessidade de taxar as corporações globais sendo seguido rapidamente com um corte no imposto corporativo do Reino Unido sendo um exemplo clássico.


[30] Ver www.tradingeconomics.com/Portugal and “The Troika and Financial Assistance in the Euro Area..” p. 40.


[31] “The Troika and Financial Assistance in the Euro Area...”, p. 42.


[32] “The Troika and Financial Assistance in the Euro Area...”, p. 23.


[33] Ibid., a partir de dados do FMI, figuras 14 e 15, p. 24.


[34] Ver “Greek Austerity Tragedy Shows Where not to Make Cuts,” New Scientist, 26 de Fevereiro de 2014. Disponível em: http://www.newscientist.com/ article/dn25125-greek-austerity-tragedy-shows-where-not-to-make-cuts.html#. UztWtq1dW Ox.



[35] Mark Blyth, “Eternal Austerity Makes Sense: If You are Rich,” disponível em: goo. gl/F6he79.


[36] Para o trabalho definitivo e números sobre este assunto ver Thomas Piketty, Capital in the 21st Century (Cambridge: Harvard Belknap Press 2014).


[37] Agradeço a Eric Lonergan por essa formulação.


[38] Erik Jones, “The Forgotten Financial Union,” in Matthijs and Blyth (eds.) The Future of the Euro...a ser publicado em 2014.


[39] Para uma boa visão geral da união bancária ver http://europa.eu/rapid/ press-release_MEMO-14-57_en.htm?locale=en


[40] Paul De Grauwe, citado em “Europe Strikes Deal to Complete Banking Union.” Reuters, 20 de Março de 2014. Disponível em: http://www.reuters.com/ article/2014/03/20/us-eu-bankingunion-idUSBREA2J0ZJ20140320.


[41] Ver Thomas Huertas and María J Nieto, “How much is enough? The case of the Resolution Fund in Europe.” Disponível em: http://www.voxeu.org/article/ ensuring-european-resolution-fund-large-enough.


[42] Ou seja, os fundos soberanos poderiam combinar seus riscos para levantar capital para ele de forma mais barata, mas isso configuraria mutualização da dívida e, portanto, está fora de questão.


[43] Para um exemplo do porquê, ver Wolfgang Munchau, “This is not the Banking Union Europe is Looking for,” Disponível em: http://www.ft.com/intl/ cms/s/0/92bbb0a6-6330-11e3-886f-00144feabdc0.html#axzz2xZpym4NP


[44]Ver http://www.reuters.com/article/2014/03/26/fitch-revises-outlooks-on-18- eu-state-sp-idUSFit69388220140326.


[45] Ibid.


[46] Para uma visão geral ver: http://www.ecb.europa.eu/press/pr/date/2012/html/ pr120906_1.en.html.


[47] Eu agradeço a Bill Blain por essa analogia.


[48] Bill Blain, Comunicação Pessoal, 11 de Dezembro de 2013.


[49] Disponível em http://european-council.europa.eu/media/639235/st00tscg26_ en12.pdf.


[50] Nicolas Jabko, “The Crisis of EU Institutions and the Weakness of Economic Governance,” em Matthijs and Blyth (eds.) The Future of the Euro...a ser publicado em 2014, pp. 16-17.


[51] Ver http://ec.europa.eu/economy_finance/economic_governance/macro economic_imbalance_procedure/mip_scoreboard/.


[52] Ver http://mobile.reuters.com/article/idUSBREA0D0MU20140114? irpc=932 e http://europa.eu/rapid/press-release_IP-14-216_en.htm e http://www.bloomberg. com/news/2014-01-15/germany-snubs-export-critics-as-surplus-outstrips-that-of- -china.html


[53] Peter Hall, “Varieties of Capitalism and the Euro Crisis.” Artigo apresentado na International Conference of Europeanists, Washington DC, 15 de março de 2014.


[54] “The Troika and Financial Assistance in the Euro Area..pp. 17-23.


[55] “The Troika and Financial Assistance in the Euro Area...” pp. 19-21


[56] Ibid. p. 22.


[57] Hall, “Varieties of Capitalism and the Eurocrisis” p. 9 Tabela 1.


[58] Ibid. p. 10.


[59] Jonathan Hopkin, “The Troubled South: The Euro Crisis in Italy and Spain,” em Matthijs e Blyth (eds.) The Future of the Euro...a ser publicado em 2014, p. 6.


[60] Ibid. p 6-7.


[61] Pepper Culpepper “The Political Economy of Unmediated Democracy: Italian Austerity Under Mario Monti,” Artigo preparado para a International Conference of Europeanists, Washington DC, 15 de março de 2014, e Dani Rodrik, “Goodbye Washington Consensus, Hello Washington Confusion,” Journal of Economic Literature, 44 (4) Dezembro 2006.


[62] Ironicamente, assim como o risco de inflação em uma recessão que assombra a governança da zona do euro hoje se baseia em uma má interpretação anterior da história alemã dos anos 1920. Ver Blyth, Austerity... pp. 56-57.


[63] Christian Dustmann, Bernd Fitzenberger, Uta Schoenberg, e Alexandra Spitz- -Oener, “From Sick Man of Europe to Economic Superstar: Germany’s Resurgent Economy, Journal of Economic Perspectives, 28, (1) Winter 2014, pp. 167-188.


[64] Ver http://inequalitywatch.eu/spip.phpiarticle114.


[65] Cornel Ban, “Austerity versus Stimulus? Understanding Fiscal Policy Change at the International Monetary Fund Since the Great Recession,” a ser publicado em Governance, 2014.


[66] Para um resumo ver OCDE http://www.oecd.org/eco/outlook/OECD-Forecast- -post-mortem-policy-note.pdf.


[67] Ver http://ec.europa.eu/economy_finance/eu/forecasts/2012_autumn_forecast _en.htm#documents.


[68] Ver http://www.ecb.europa.eu/pub/pdf/mobu/mb201212en.pdf box 6 pp. 82-85.


[69] Ban fornece um útil exercício de mapeamento dessa mudança de ideias no fundo. Ver Ban, “Austerity versus Stimulus?”.


[70] Andrea Pescatori, Damiano Sandri, e John Simon, “Debt and Growth: Is There a Magic Threshold?” IMF Working Paper, Fevereiro de 2014.


[71] http://www.washingtonpost.com/blogs/wonkblog/wp/2014/02/26/ communists-have-seized-the-imf/


[72] Para uma visão panorâmica ver http://en.wikipedia.org/wiki/Growth_in_a_ Time_of_Debt.


[73] Carmen Reinhardt e Kenneth Rogoff, “Recovery from Financial Crises: Evidence from 100 Episodes.” NBER Working Paper 19823, janeiro de 2014.


[74] Ibid. pp. 10-11.


[75] Ver Wolfgang Munchau, “The Real Scandal is France’s Stagnant Economic Thinking”. Disponível em: http://www.ft.com/intl/cms/s/0/0a469808-7f6e-11e- 3-b6a7-00144feabdc0.html#axzz2xZpym4NP.


Mark Blyth é cientista político e professor de economia política internacional na Universidade de Brown. Seus principais trabalhos versam sobre a interface entre e a Economia e a Ciência Política. O livro Austeridade - A história de uma ideia perigosa, foi lançado em 2013 e traduzido para o português em 2018, pela Editora Autonomia Literária.

Editora responsável: Simone da Silva Ribeiro Gomes

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