A INVISIBILIDADE COMO PROJETO POLÍTICO E O PODER TRANSCENDENTAL DOS LIVROS
Fonte: acervo pessoal do autor
Os livros parecem carregar em si uma espécie de aura, tal qual entidades mágicas capazes de transbordar a própria materialidade. São objetos transcendentais, cantou Caetano Veloso na música Livros. Com eles se pode estabelecer uma relação de devoção, embora recorrentemente queiramos “domá-los, cultivá-los em aquários, em estantes, gaiolas, fogueiras, ou lança-los para fora das janelas”. Sendo os livros capazes de atrair paixões tão arrebatadoras, não é de se estranhar que sirvam para sintetizar um universo bem mais complexo de elementos: seja nas mãos dos eleitores do candidato petista Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores (PT), como ocorreu no segundo turno das eleições presidenciais de 2018, seja como alvo de perseguição por parte de governos autoritários, estes têm servido como elemento de disputa e catalisador de emoções.
A confusão ocorrida no último final de semana da Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro ilustra bem o poder simbólico dos livros. A determinação do prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella (PRB) de que a organização da Bienal recolhesse dos estandes da feira o livro de história em quadrinhos Vingadores – a cruzada das crianças – supostamente por ferir o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ao exibir conteúdo “impróprio” sem a devida notificação na embalagem - serviu de estopim para uma série de posicionamentos defensivos: a própria organização da Bienal, editoras e demais entidades vinculadas ao mundo dos livros, além de políticos e diversos outros atores da sociedade civil – dentre eles o youtuber Felipe Neto, que comprou e distribuiu gratuitamente 14 mil exemplares de livros com temática LGBTQ+ -, se manifestaram contra à tentativa de censura. A prefeitura enviou fiscais, recorreu de decisão judicial e promoveu uma encenação sem precedentes nas dependências da feira, atraindo a atenção do público e da mídia e ressoando nas redes sociais, conversas de bar e refeições em família.
Não é trivial a cena em que fiscais da prefeitura do Rio de Janeiro são enxotados por uma grande quantidade de pessoas com livros em punho aos gritos de “não vai ter censura”. Menos trivial ainda é saber que o prefeito do Rio e sua equipe comemoraram, em conversas privadas, a repercussão da polêmica com vistas a atrair o eleitorado conservador nas eleições municipais de 2020 (1). A utilização de um repertório tão retrógrado quanto à ameaça de censura a livros por partes de governantes, para além do seu significado autoritário, apresenta algo bastante alarmante: o expediente só faz sentido por que carrega em si signos que são compartilhados por parte significativa da população.
A alteridade e os limites do riso
Pode parecer difícil compreender como grande parte da população brasileira apoia e vibra com medidas tão autoritárias como a perseguição à cultura, o cerceamento de liberdades individuais e coletivas, a promessa infundada de diminuição da violência com mais violência etc. A manipulação dos descontentamentos populares como estratégia política vem se reproduzindo em diversas partes do mundo e por muito tempo, o que não tira, é claro, a legitimidade daqueles que anseiam por ver seus problemas resolvidos. O desconforto, entretanto, é posto ao ver a escalada de violência a que muitas pessoas vão se lançando, estabelecendo-se um clima de total cacofonia. Trata-se, ao que parece, de um cataclismo cultural em que a população é dividida e perde-se a capacidade de diálogo e compreensão.
O historiador estadunidense Robert Darnton narra em O grande massacre de gatos o assassinato de felinos promovido por tipógrafos franceses no século XVII. A partir da narrativa de um dos participantes, ficamos sabendo de detalhes do massacre, desde a encanação teatralizada do julgamento e execução das sentenças de morte dos bichos às crises de riso, reproduzidas à exaustão nas semanas seguintes nos intervalos do trabalho. A história era recuperada sempre que se queria promover um momento de diversão capaz de amenizar a dura rotina de trabalho. A pergunta que Darnton se faz nos remete ao desafio antropológico da alteridade: por que não conseguimos rir de algo que aos tipógrafos franceses pareceu tão engraçado?
Uma série de símbolos perpassa o evento do massacre dos gatos: péssimas condições de trabalho, alojamento e alimentação, universos valorativos bastantes distintos ao separar burgueses e proletários – dentre eles formas bastante distintas de lidar com os animais domésticos -, sublimação da raiva e transferência na explosão violenta. Analisar, portanto, o universo cultural daqueles tipógrafos franceses do século XVII nos permite localizar parte da piada. O exercício da alteridade, a aproximação empática com algo que nos parece tão distante, é, sem dúvida, fundamental para se entender o riso dos tipógrafos franceses, assim como o é para entender a escalada autoritária a que nos lançamos atualmente. A compreensão, entretanto, encontra limites. Dotar de sentido as piadas sobre o massacre de gatos não nos faz rir o seu riso, assim como exercitar a empatia com parte da população que tenta impor-se de forma autoritária não nos faz engrossar seus cordões.
Da catarse à ação coletiva
“Literatura Trans” foi o título de um dos encontros que finalizou a Bienal do Livro. Às 19h do domingo, dia 8 de setembro, teve início uma das mesas mais potentes do evento. A leitura da nota de repúdio ao prefeito do Rio redigida pela organização da Bienal e lida pelo mediador da mesa Felipe Cabral deu o tom do que viria nas próximas uma hora e meia. Gritos ecoavam por todo o pavilhão ao fim de cada fala. Luiza Marilac, Nana Queiroz, Tarso Brant, Amara Moira e Pepita (2) se reversaram em fortes relatos de vida, depoimentos sobre seus processos de escrita e reflexões sobre a situação de extrema vulnerabilidade e violência a que estão submetidas as pessoas transexuais no país.
No entanto, nada ressoou no Pavilhão Verde da Bienal do Livro como a declaração de Amara Moira ao se identificar como uma das primeiras pessoas trans a ter o título de doutorado no Brasil. Foi aplaudida de pé por uma multidão emocionada. Ostentar um título de doutorado, obtido em uma das melhores universidades do país, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é, por si só, um feito a ser comemorado por qualquer pessoa. Ter sido esse título obtido por uma pessoa trans, que carrega no corpo as marcas de tanta opressão, deve, entretanto, ser mais do que comemorado, mas exaltado e transformado em projeto de sociedade.
Os gritos exaltados durante a mesa revelaram mais do que aquele momento simbolicamente potente poderia inspirar. Eram gritos contra às ameaças a um projeto de inclusão que vem permitindo que pessoas como Amara ocupem espaços de centralidade. Uma catarse, sem dúvida, a expulsar os demônios de gente que acompanha horrorizada as cenas de barbárie que vêm sendo promovidas, numa onda autoritária que já vem de algum tempo e não se limita, disso sabemos todos, à esfera municipal nem mesmo aos limites do território nacional.
A catarse, por mais necessária que seja em momentos de extrema emoção, como se deu nessa Bienal, não é suficiente para barrar retrocessos e promover uma sociedade mais justa e inclusiva. A ação coletiva é o único meio possível para tal, e nisso concordaram todas as pessoas que ali estiveram presentes. Reconhecendo as diferenças, como é necessário, mas em união e movimentação conjunta.
Não resta dúvida da necessidade de se realizar o sempre difícil exercício da alteridade. Compreender como pensa o outro é fundamental para que se possa estabelecer um mecanismo de aproximação. Mas como sujeitos implicados diretamente nessa contenda, devemos agir politicamente aqui e agora, dado que é nesse momento, e não em outro, que se definem as agendas a serem implementadas no futuro.
Notas
(1) BRUNO, Cássio. De olho em 2020, Crivella comemora polêmica na Bienal do Livro. Jornal O Dia. Acesso em https://odia.ig.com.br/colunas/informe-do-dia/2019/09/5679634-de-olho-em-2020--crivella-comemora-polemica-na-bienal-do-livro.html no dia 10 de setembro de 2019.
(2) Luiza Marilac é youtuber e comunicadora. Tarso Brant é modelo e ator. Amara Moira é professora e pesquisadora na área de literatura e possui doutorado em teoria literária. Mulher Pepita é funkeira. Nana Queiroz é jornalista.
Leonardo Nóbrega da Silva é editor da Horizontes ao Sul, sociólogo e pesquisador de pós-doutorado vinculado ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP).
Editora responsável: Simone da Silva Ribeiro Gomes