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Flavia Freidenberg, Mariana Caminotti

FEMINISMOS E DEMOCRACIA: ENTREVISTA DE FLAVIA FREIDENBERG A MARIANA CAMINOTTI


Manifestação no 08 de março, Mendoza, Argentina.


O avanço na ampliação dos direitos das mulheres e das diversidades na América Latina tem sido substantivo nas últimas décadas. Esse avanço dos direitos é o resultado de uma revolução feminista pacífica, que buscou transformar as democracias dando igualdade formal e real à metade da população historicamente excluída dos processos de tomada de decisão. Uma das pessoas que mais estudou esses processos nos países da região foi Mariana Caminotti, Dra. em Ciência Política pela Universidade Nacional de San Martín (UNSAM) e Master of Arts em Development Management and Policy (Georgetown University).


Desde seu país, a pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Técnica da Argentina (CONICET) e atualmente coordenadora do Doutorado em Ciência Política da Escuela de Política y Governo da UNSAM, contribuiu significativamente para a compreensão desses processos de mudança.


Em entrevista exclusiva para a Voz e Voto (revista mexicana especializada em política e eleições), discutimos a maneira pela qual esses avanços estão sendo contestados por uma diversidade de movimentos conservadores, a partir de múltiplas estratégias que buscam questionar, limitar e rechaçar os direitos e oportunidades conquistados pelas mulheres na região.


Flavia Freidenberg: Qual é a situação atual dos conflitos em torno da desigualdade de gênero na América Latina?


Mariana Caminotti: As desigualdades baseadas em gênero e asa políticas para reverter essas desigualdades estão hoje no centro do debate político. A regulação das relações de gênero em um sentido de igualdade ou, pelo contrário, da hierarquização, é um nó central da disputa entre projetos políticos em conflito na América Latina.


Na região, estamos observando o avanço simultâneo de projetos políticos e culturais contraditórios. Por um lado, a mobilização de feministas e outros coletivos que advogam por direitos das mulheres, minorias ou maiorias étnicas, de pessoas lgtb+. Por outro lado, observamos o fortalecimento político de conservadorismo com discursos profundamente moralizantes que põem em questão esses mesmos direitos.


FF: Na atualidade parece que há um novo conflito político nos países tendo como origem a visão de gênero. Qual o papel disso na articulação dos movimentos feministas e, por sua vez, dos movimentos conservadores?


MC: Gênero é uma categoria central para os movimentos feministas que estão na vanguarda das reivindicações para ampliar as fronteiras da cidadania e aprofundar a democratização das relações sociais. Em alguns países, os feminismos tomaram as ruas, se diversificaram e penetraram em todos os tipos de espaços: lugares de trabalho, sindicatos, universidades. Fizeram isso com muita capilaridade. É o caso da Argentina, com dois nós fundamentais: o movimento #NiUnaMenos para acabar com a violência machista, que surgiu em 2015, e a Campanha Nacional pelo Aborto Legal, Seguro e gratuito, de mais longa data, mas que teve um crescimento exponencial em suas capacidades de incidência política.


Os coletivos feministas articulam sua agenda de direitos reprodutivos e autonomia física das mulheres com demandas por igualdade socioeconômica, justiça ambiental, críticas ao extrativismo e ideologia neoliberal. Há uma grande diversidade nesses movimentos, mas o senso de justiça de gênero permite construir pontes entre agendas que poderiam parecer desconectadas.


Ao mesmo tempo, gênero é uma categoria central na reação conservadora que, em graus variados, está presente em todos os países latino-americanos. O combate contra a chamada "ideologia de gênero" clama pela defesa de uma ordem social patriarcal e heteronormativa, fundada em papéis e identidades supostamente "naturais", as quais se negam seu caráter histórico e cultural. Este slogan permitiu conectar agendas que pareceriam separadas. Na Colômbia, a bandeira da “ideologia de gênero” foi usada para questionar a perspectiva da diversidade na educação sexual, mas também foi mobilizada por setores políticos da direito para fortalecer a oposição ao plebiscito após a assinatura dos Acordos de paz entre o governo nacional e as FARC.


FF: Qual é o efeito desse conflito na democracia e nas oportunidades de democratização dos países da América Latina?


MC: Quando os feminismos e seus aliados defendem o direito das mulheres a decidir por seus corpos e os grupos conservadores se mobilizam contra a educação sexual ou o que eles chamam de “direito de vida”, o que está em jogo são os impulsos de democratização e (des)democratização. Quer dizer, não se trata simplesmente de uma disputa entre questões políticas (aborto, violência sexual, entre outras), mas entre visões do mundo que têm profundas consequências para o ordenamento democrático e o processo político. Essas disputas não afetam apenas grupos específicos (mulheres, homossexuais), mas também a democracia em suas relação com os direitos de cidadania. As controvérsias sobre o conteúdo e o escopo dos direitos são nodais, porque moldam os contornos da cidadania, a autoridade da religião e o papel do Estado democrático. Assim, as categorias de gênero e sexualidade, bem como a forma em que se politizam e criam disputas por direitos, estruturam projetos de sociedade.


FF: Qual tem sido o papel dos governos de esquerda na extensão dos direitos das mulheres e os grupos de diversidade sexual?


MC: Em princípio, a era dos governos de esquerda (ou "maré rosa") que se estendeu entre os 2000 e 2016 gerou muita esperança sobre o avanço dos direitos das mulheres e dos grupos lgtb+. Nesse período, houve grandes avanços na conquista e ampliação de direitos, graças ao ativismo da sociedade civil, já que as agendas da esquerda política se concentraram mais na desigualdade socioeconômica do que naquelas baseadas em gênero (em sua interação com classe ou raça). Inclusive vários governos (como os de Rafael Correa no Equador ou Daniel Ortega na Nicarágua) desenvolveram relações hostis com os movimentos e as agendas dos feminismos.


Agora, existe uma lacuna entre o desempenho real das esquerdas e as imagens que são construídas sobre elas a partir de vários meios de comunicação, mostrando-as como portadoras de projetos radicalizados em matéria de gênero e sexualidade. Ademais, distintos estudos mostraram que o vínculo entre políticas progressistas de gênero e sexualidade e ideologia de esquerda não é automático, mas mediado por processos de politização de demandas, agregação de interesses e pressão de atores, além de movimentos sociais. Isso permite compreender melhor o sentido de desacordos em torno de gênero e igualdade no cenário atual, onde observamos os dois processos de politização que operam em direções inversas, às quais me referi no início.


Em grande medida, o conteúdo das democracias na região será afetado pela maneira como atores políticos (e, em particular, aqueles do arco progressista) se posicionam diante dessas disputas, onde estão em jogo noções de cidadania, convivência democrática e modelos de sociedade.



NOTAS

A primeira versão desta entrevista foi publicada na revista Voz e Voto em espanhol. Para ler no idioma original acesse:



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Editora responsável: Marcia Rangel Candido

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