UMA PROPOSTA DE CRONOLOGIA PARA A BOLÍVIA: UM GOLPE EM DOIS TEMPOS
Há alguns dias, um dos principais debates na agenda internacional é a situação na Bolívia. Cenas de violência, uma ex-Senadora se autoproclamando presidenta e a emergência de uma figura caricatural como a de Luiz Fernando Camacho: todos são elementos que complexificam um cenário de crise que passa por fatores estruturais e estruturantes da vida social e política boliviana. Desde as eleições presidenciais, que ocorreram no dia 20 de outubro, a polarização e a instabilidade, que já eram grandes, se acirraram no país. Os dois principais nomes na disputa eram o então presidente, Evo Morales Ayma (seria "então presidente" o termo certo?), pelo Movimiento al Socialismo (MAS), e Carlos Mesa, ex-presidente, pelo Comunidad Ciudadadana (CC).
Os elementos-chave para a compreensão da conjuntura crítica, no entanto, têm origem em fevereiro de 2016: no dia 21, o governo de Evo Morales promoveu um plebiscito geral no país perguntando sobre sua presença como candidato em mais um pleito presidencial; afinal, seria seu quarto mandato consecutivo - o segundo depois da aprovação da Constituição Política do Estado (CPE) em 2009, que só permite duas reeleições. Em um placar apertado, Evo não conseguiu vitória. Pouco mais de 51% da população votou contrariamente à possibilidade de uma nova reeleição.
Em setembro de 2018, contudo, o Tribunal Constitucional Plurinacional (TCP) aceitou o recurso do MAS, que solicitava a alteração de três artigos constitucionais para que se tornasse possível a nova postulação de Evo à presidência. Embora a oposição tenha se mobilizado veementemente contra, os setores judiciários acataram a alegação de modo favorável à candidatura de Morales, que, novamente em chapa junto ao vice Álvaro García Linera, enfrentou e venceu o pleito deste ano. Desde então os conflitos se acirraram dentro das instituições e nas ruas. Este ensaio busca elaborar uma reconstituição dos principais acontecimentos recentes, esboçando alguns comentários sobre as possibilidades futuras.
O QUE ESTAVA EM DISPUTA?
A disputa política dos últimos dias na Bolívia esteve entre múltiplas forças; duas delas, todavia, organizavam até pouco tempo a rivalidade de forma mais hegemônica - o que não significa, é claro, que não hajam outras forças. De um lado, temos o projeto político de Evo Morales, García Linera e o MAS. Desde que chegou ao poder na Bolívia, em 2006, o MAS promoveu uma série de mudanças estruturais no país, a maioria delas materializadas na Constituição Política do Estado. Duas são as principais transformações que a Constituição propôs: 1) a plurinacionalidade, a partir do reconhecimento das nações de população originária e camponesa - a Bolívia deixa de ser uma república e passa a ser um Estado plurinacional; 2) a relação com os recursos naturais – que se tornam estatizados, além de identificados com deidades de populações originárias, como a pachamama - e com a propriedade privada - que passam a ser atravessadas por noções de administração coletiva.
Pela primeira vez na história da Bolívia, o camponês e o indígena estavam não apenas no centro da vida política, mas passaram, sistematicamente, a ocupar cargos da burocracia estatal. É importante ter em mente que, mais que um partido tradicional, o MAS é um conjunto ou uma coalizão de movimentos sociais, que passam por nações de população originária, sindicatos e outros setores sociais - o que lhe dá um grau diferente de organização e mobilização com relação aos partidos tradicionais. Por isso, alguns autores o identificam como instrumento, sistema de signos, coalizão de movimentos ou até mesmo “protopartido”. Ainda que não sem contradições, a execução do programa do MAS teve resultados bastante significativos como a redução considerável dos índices de pobreza média e extrema, a queda do desemprego, o aumento do salário mínimo e a consolidação de uma economia estável que, em pleno 2019, quando o resto das economias sul-americanas estagnava, crescia em torno de 4% ao ano.
De outro lado, a maior oposição ao MAS se organizava em uma plataforma política e econômica ao redor do neoliberalismo. Tendo alguns ex-presidentes como principais nomes, como Carlos Mesa, Tuto Quiroga, e Victor Hugo Cárdenas, entre outras figuras como Luis Revilla e Rubéns Costa, esta oposição faz a defesa de um programa econômico liberal de privatizações e desregulamentações, similar àqueles adotados na década de 1990. Distribuída em diferentes partidos, esta oposição à direita tem estratégias institucionais como principais instrumentos, mesmo que ao seu lado esteja a maior parte da elite econômica, sobretudo agropecuária, do país, concentrada geograficamente principalmente nos departamento da Meia Lua: Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija. Desde 2016, a principal bandeira encampada por esta oposição ao Evo foi a de questionar a legitimidade da postulação masista. Se, de início, questionava-se se Evo poderia ser candidato, logo a gramática se intensificou: passaram a chamá-lo de antidemocrático e autocrático.
TEMPO 1: A MULTIPLICIDADE DAS MANIFESTAÇÕES POPULARES
Dois projetos disputavam majoritariamente, portanto, o cenário político boliviano, principalmente, no dia 20 de outubro. A partir de então, a conjuntura passa a acelerar de forma intensa: depois do fechamento das urnas, a apuração dos votos se deu de forma controversa. O sistema de contagem rápida, coordenado pela Transmisión de Resultados Electorales Preliminares (TREP), foi interrompido em torno das 20h, quando apenas cerca de 80% dos votos estavam apurados. Neste momento, o resultado indicava a possibilidade de um segundo turno entre Morales e Mesa. A apuração somente foi retomada na tarde do dia seguinte, com a declaração de vitória, no primeiro turno, do candidato do MAS sobre o opositor.
A missão de observadores da Organização dos Estados Americanos (OEA) declarou que a interrupção da contagem dos votos era de “difícil justificativa” e convocou reunião extra-oficial para discutir o assunto. No dia 25, o Tribunal Superior Eleitoral divulgou o resultado oficial: Morales obteve 47,08% dos votos, seguido por Carlos Mesa, com 36,51% e por Chi Hyung Chung, do Partido Democrata Cristão, com 8,78%. Com uma plataforma conservadora, o último candidato foi a maior surpresa da eleição, uma vez que cresceu substancialmente no mês que antecedeu ao pleito. Carlos Mesa não reconheceu o resultado, e, junto a maior parte da oposição, acusou o processo de fraude eleitoral. Em seguida, as ruas foram tomadas. Entendê-las passa por ampliar a noção das forças, discutidas acima, e abri-la em atores: ganharam as ruas críticas e demandas ao governo de Evo à esquerda e à direita. Nos dias posteriores, principalmente cidades como La Paz, Santa Cruz e Cochabamba, mas também Chuquisaca, Tarija e Potosí já tinham protestos, barricadas e bloqueios, com destacado papel para o Conselho Nacional de Defesa da Democracia (Conade), ainda que esse afirmasse o caráter espontâneo dos atos. Setores como mineradores, motoristas e algumas populações originárias estavam entre os setores que ocuparam as ruas nestes dias.
No dia 29, por seu turno, um elemento decisivo teve início: o Comitê Cívico de Santa Cruz, em frente ao Cristo Redentor de Santa Cruz de la Sierra, realizou um ato com massiva concentração, tendo Luiz Fernando Camacho como líder. Reunidos, os representantes do grupo, que estavam em uma greve há 8 dias, declararam que a paralisação se manteria. A manifestação foi um marco de mudança de posição: antes o Comitê aguardava a auditoria da OEA para se pronunciar em relação às eleições, mas decidiram que iriam manter sua greve até que o pleito do dia 20 fosse plenamente anulado e novas eleições convocadas por um órgão eleitoral completamente novo. Ao mesmo tempo, setores de apoio ao MAS, que começam a denunciar a tentativa de golpe em curso, também ocupavam as ruas, com destaque para a convocação da Coordinadoria Nacional para el Cambio (Conalcam), que chamou à mobilização contra o que nomeou como golpe de Estado cívico-político.
É nesse contexto que os atos deixam de ser mobilizações, violentas ou não, e passam, com mais força, a contar com confrontos entre os lados. O principal resultado disso foram as mortes - as duas primeiras desde o dia 20 - em Montero, no departamento de Santa Cruz. O dia 31, no cabildo de La Paz, é marco daquilo que se consolidaria como a “terceira via” da disputa entre as forças mais fortes. O cabildo decidiu que que “nem Evo, nem Mesa”, em ato composto por cocaleros da Adepcoca dos Yungas, universitários, entre diversos outros setores. La Paz e Potosí, assim como Santa Cruz, passaram a demandar a anulação das eleições. No mesmo dia, Camacho afirma que vai elaborar uma lista com os traidores, “no estilo de Pablo Escobar”. No fim do mês, 142 pessoas já haviam sido detidas em função das mobilizações.
No dia 2 de novembro, Camacho dá seu passo definitivo rumo à radicalização do seu posicionamento: estabelece o prazo de 48h para que Evo renuncie e escreve uma carta com isso para que ele assine; em sequência, começa sua marcha de Santa Cruz à La Paz para falar com o presidente. O trajeto de Camacho foi instável: ao chegar no aeroporto de El Alto, manifestantes masistas cercaram o local e impediram, por quase 24 horas, que o cívico desembarcasse; coisa que só conseguiu fazer com escolta policial. Alguns dias depois, Camacho e o Conade decidem que os esforços de pressão deveriam estar centrados em La Paz. É nesse mesmo momento que as estruturas institucionais masistas e evistas começam a ruir. O vice-ministro do tesouro renuncia dia 7, e policiais - sobretudo da base, não de alto escalão - começam a se amotinar.
O dia da virada seria o 10 de novembro. Logo após a OEA publicar o resultado de sua auditoria, afirmando que houve fraude nas eleições do 20, Evo Morales cede e se coloca à disposição para novas eleições no país. Isto, no entanto, parece insuficiente à oposição. Cívicos de diversos departamentos exigem a renúncia imediata do masista, o que é acompanhado por Rubén Costas, governador de Santa Cruz, às 12h. Às 13h, Juan Carlos Huarachi, secretário executivo da COB, pede para que Evo reflita sobre a possibilidade de renúncia para a pacificação da Bolívia; até as 16h, o pedido de renúncia seria endossado pelo comandante geral das Forças Armadas, Williams Kaliman, e pelo comandante da polícia, Yuri Calderón - “pela pacificação da Bolívia”, ambos afirmaram, mas de forma separada. Algumas horas depois, os ministros de mineração e de hidrocarbonetos e o presidente da Câmara de deputados renunciaram, em conjunto a denúncias das ameaças que sofriam em permanecer nos cargos. Em torno das 17:30h, Evo Morales e Álvaro García Linera também renunciaram.
TEMPO 2: O FASCISMO TOMA FRENTE DO PROCESSO
O segundo tempo do golpe inicia, provavelmente, quando, na tarde do dia 10 de novembro, Luiz Fernando Camacho, escoltado por policiais, entra no Palacio Quemado com uma bíblia e a bandeira boliviana - a tradicional, não a wiphala - em mãos. A partir de então, esta nova direita, que se esforçou para se separar da neoliberal, passou a dirigir o processo. Às 23h do mesmo dia, o paradeiro de Evo já era pouco conhecido; só se sabia que o México havia concedido asilo ao presidente. Camacho, não obstante, anunciava julgamentos contra Linera, Morales e outros ministros. Às 8h do dia seguinte, o somatório de autoridades que renunciaram chegava a 17.
Logo, a violência iria escalar: deram continuidade à queima e às agressões às casas e aos corpos de masistas em diversas cidades; logo, resistência em muitos espaços se organizaram, com especial destaque à cidade de El Alto. No dia 11, enormes marchas desceriam de lá em direção à capital, onde se concentraram as manifestações. Recortes raciais eram visíveis entre aqueles que defendiam o “novo Estado” - a polícia, branca, sobretudo - e aqueles que gritavam “golpe” - população originária ou ascendente de tal, muitos e muitas com a wiphala em punho.
No vazio de poder das sucessivas renúncias, a polícia agia de forma truculenta, até que se declarou incapaz de controlar as manifestações, coisa que foi confirmada pela então vice-presidenta do Senado, Jeanine Añez. As Forças Armadas entram, então, em cena, e vão às ruas para intensificar a repressão. Mais que isto: o Estado de sítio é declarado, tornando a questão ainda mais confusa; como se declara Estado de sítio em um Estado que já está fora de qualquer regimento da lei?
Logo o debate da sucessão apareceria com mais força. Quem estava efetivamente no controle do Estado boliviano? Quem a Constituição indicaria? Frente à renúncia, controversa, diga-se de passagem, de Adriana Salvatierra, masista e então presidenta do Senado, poucas horas depois da renúncia de Evo e Linera, a previsão constitucional se torna nublada. As renúncias, sobretudo a de Evo, deveriam ser aprovadas pela Assembleia Plurinacional para que novos caminhos fossem definidos. A oposição começou, nesse momento, a tentar articular para que a sessão legislativa fosse realizada; para conquistar o quórum, no entanto, os opositores precisam dos deputados masistas, que são maioria no legislativo. Metade por estratégia, metade por temerem por suas integridades físicas, os representantes do MAS não aparecem na Assembleia. Frente a isto, em casas legislativas vazias, no dia 12 de novembro, em ato político que lembra a constrangedora autoproclamação de Juan Guaidó na Venezuela, a senadora Jeanine Añez se diz presidente. Sua proclamação no balcão do Palacio Quemado, cercada de militares, frente a uma praça vazia, diz muito sobre a que veio. Grande parte dos manifestantes que se opunham foi brutalmente agredida e impedida de chegar à praça Murillo.
A preocupação, no presente momento, tem sido tentar dar ares constitucionais ao golpe. Añez montou seus ministérios, sobretudo com figuras próximas à Camacho; Carlos Mesa tem pressionado por novas eleições, desde que, claro, Evo Morales não seja candidato. Nas ruas, a resistência segue; a COB já deu 24h no dia 12 para que a normalidade constitucional voltasse; do contrário, iniciaria greve indeterminada. Se tal paralisação começou ou não, francamente não sei. O país vive uma instabilidade tão grande que sequer se consegue distinguir ação coletiva do caos. Enquanto alguns países já reconhecem Añez como presidenta interina, nas ruas clamam por Evo, reivindicam novas eleições ou, simplesmente, defendem a sobrevivência do povo, já que as Forças Armadas entraram em modo de aniquilação. Andam me perguntando se a guerra civil é uma possibilidade. Eu lamento dizer, mas meu medo maior é mesmo o genocídio.
E AGORA… O QUE VEM?
O que vem adiante não parece claro. Na madrugada entre os dias 13 e 14, o MAS compareceu em assembleia e elegeu o presidente da Câmara. O fez, é claro, depois de muita repressão, que tentou impedir que os masistas chegassem ao prédio do Governo. Mais do que manter apenas manifestações nas ruas, parece que a estratégia do partido mudou, e o combate ao golpe virá, também, de forma institucional.
Algumas lições devem ser entendidas do processo. Num primeiro momento, depois das eleições do dia 20, múltiplos movimentos, críticas e demandas a Evo Morales e ao MAS tomaram as ruas na Bolívia. Em meio a isto, os comitês cívicos, sobretudo de Santa Cruz, Potosí e La Paz, avançaram com novas pautas e radicalizaram seus discursos. Nem Evo Morales, nem Carlos Mesa serviam; novas eleições, tampouco; a renúncia imediata era a única solução, objetivo que passou a ser perseguido a todo custo, seja por meio de ameaças, força ou dissuasão. O segundo momento inicia quando Luiz Fernando Camacho, sua bandeira e sua bíblia entram no Palacio Quemado, dizendo que “saía Pachamama e entrava Deus” no controle sobre o Estado boliviano. A partir daí, o fascismo passou a dirigir o processo: atropelou organizações e movimentos populares, fossem do MAS ou à esquerda dele; controlou, dominou e conduziu os rumos da história política destes últimos pouco-mais-de-vinte-dias no país.
O golpe chegou na Bolívia, não por meio de uma direita neoliberal, mas sim fascista, violenta, racista e misógina. A derrubada de Evo contou com a anuência das Forças Armadas e policiais? Contou. Entretanto, o papel da dissuasão nestes mais de vinte dias ficou com a figura do miliciano, do paramilitar, do cívico cruceño que atravessou o país em direção à capital para ameaçar não apenas a institucionalidade, mas toda a constelação social que se organizava ao redor do MAS e do Estado plurinacional. É importante ter isto em mente: o golpe na Bolívia foi dado pela “nova direita” latino-americana. Não apenas boliviana, mas também brasileira, colombiana, argentina; não apenas militarista, militarizada, mas também miliciana.
A disputa agora não está somente entre como será decidido quem irá governar a Bolívia, se por guerra civil, eleições, ou artimanhas em cima da Constituição. A disputa é, também, sobre qual é efetivamente o Estado boliviano: é plurinacional? Voltará a ser república? Deixará de reconhecer suas nações originárias? Independentemente do resultado, o que fica claro é que a própria constituição - com c minúsculo - do Estado passa por debates raciais que estão latentes em todo subcontinente.
Marília Bernardes Closs é Doutoranda e mestra em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ). Pesquisadora e coordenadora executiva do Núcleo de Estudos Sociais e Políticos (NETSAL) e pesquisadora pelo Observatório Político Sul-Americano (OPSA).
Editora responsável: Marcia Rangel Candido