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Maria Regina Soares de Lima; Marianna Albuquerque

A PANDEMIA COMO UM MAL PÚBLICO: IMPLICAÇÕES POLÍTICAS




[Nota introdutória: o texto apresentado a seguir é o editorial do Boletim OPSA n.1, 2020. Trata-se de uma publicação periódica produzida pelo Observatório Político Sul-Americano (OPSA), grupo de pesquisa com sede no Iesp-Uerj, que discute os eventos políticos ocorridos na região. Enquanto a grande mídia brasileira tradicionalmente menospreza os países vizinhos, a edição do Boletim fornece conhecimento de modo acessível para entendermos os processos em curso no mundo a partir de um enfoque principal na América do Sul].




Editorial


Desde o início de março, muito se tem especulado sobre como será o mundo após a pandemia. No plano geopolítico, circulam vários cenários possíveis, que vão desde a ruptura da ordem global com o início de uma nova era, até cenários mais cuidadosos, que apontam para o aprofundamento de tendências em curso. Entre estes processos em curso, especula-se até que ponto a pandemia poderia acelerar o processo de transição de poder envolvendo Estados Unidos e China. Segunda estas teorias, as condições estruturais para tal estariam dadas em duas situações. Em primeiro lugar, quando o poder hegemônico experimenta um declínio relativo e o desafiante ultrapassa o declinante. A segunda condição ocorre quando o hegemônico inicia o seu declínio e as regras e instituições por ele criadas ainda persistem. Isto é, quando ocorre uma disjuntiva entre ordem e poder.


Seria necessário um longo artigo para se discutir até que ponto a China teria ultrapassado as capacidades econômicas e militares dos EUA para que se configurasse a primeira condição. Com relação à segunda, cabem algumas reflexões iniciais, ainda que com algum grau de simplificação. Como todos sabem, no imediato pós-1945, os EUA gozavam de ambas condições. Eram a principal potência mundial em termos econômicos e militares. Ademais, como observou Kindleberger, os EUA se dispuseram a prover o principal bem público inexistente no sistema financeiro praticamente destruído no pós-guerra, a liquidez necessária para a retomada das atividades econômicas na paz. Também foram os EUA que lideraram a criação do sistema de Bretton Woods e a arquitetura institucional em torno da ONU.


Hoje, porém, são os próprios EUA que, já de algum tempo, vêm agindo para enfraquecer o arcabouço multilateral econômico e o sistema de segurança coletiva. Com Trump, esta tendência se acentuou e ficou escancarada com a reação unilateral dos EUA com respeito à compra de praticamente todo o estoque mundial de equipamentos médicos e de proteção utilizados no tratamento da Covid-19. O governo Trump tem feito críticas seguidas à Organização Mundial da Saúde (OMS), o principal foro multilateral de combate às doenças infecciosas, com reconhecimento de praticamente todos os países. Tudo isso num contexto em que o país exibe os piores índices de infecção e mortes, ultrapassando em muito o desempenho da China, país onde a epidemia se iniciou.


O comportamento da China tem sido o oposto, tanto no tempo relativamente curto com que controlou a epidemia, como na cooperação internacional com os países que, na etapa pandêmica, estão mais sofrendo a devastação em termos humanos e de saúde pública. Também já de antes, a China vinha construindo um arcabouço alternativo: no plano financeiro, o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura; no de comércio, a nova Rota da Seda. Estas diferenças de estilos de liderança global de cada um deles tende a se acentuar no mundo pós-pandemia em que a questão da saúde se tornará um dos principais temas da agenda global, com previsões quase certeiras de que epidemias como o Covid-19 tenderão a se repetir com maior frequência.


Entre eles, ressalta-se a distinção entre os dois modelos normativos e institucionais na prevenção e tratamento das infecções globais: o de vigilância e prevenção, e o de saúde pública. Como apontou Deisy Ventura, em aula inaugural do Mestrado de Análise em Política Internacional, do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, o primeiro é o adotado pelos EUA, e o segundo informa as normas e procedimentos da OMS[1]. Esta é a principal razão para Trump ameaçar deixar a OMS, acusando-a de ser sinocêntrica. Esta oposição de modelos normativos deve se acentuar no mundo pós-pandemia e será mais um item na competição entre EUA e China. O que permanece nebuloso é até que ponto ambos os países estão dispostos a uma estratégia de liderança com base no fortalecimento do plano multilateral, como ocorreu no pós-Segunda Guerra, ou bilateral, como parece ser a preferência de ambos no presente.


No caso brasileiro, a história de outras epidemias mostra que há uma correlação forte entre a doença infecciosa, a implantação de instituições de saúde pública e a construção de capacidades do Estado nacional. Uma das contribuições mais relevantes, nesta perspectiva, é o livro de Gilberto Hochman, A era do saneamento: as bases da política de saúde pública no Brasil, defendida originalmente como tese de doutorado no IUPERJ, vencedora do concurso Ford/Anpocs em 1988, e publicada pela Hucitec/Anpocs no mesmo ano. Este excelente trabalho, que combina uma reconstrução história dos problemas sanitários, concentrando-se nas epidemias de febre amarela e varíola, nas décadas de 1910 e 1920, com um arcabouço analítico inovador, tem grande relevância para se pensar as implicações políticas e geopolíticas da pandemia atual.


De forma um tanto simplificada, seu esquema analítico está construído em torno de três eixos conceituais: a epidemia como um mal público, conforme o uso que faz do conceito de Wanderley Guilherme do Santos, a contribuição de Abraham De Swaan sobre o crescimento da interdependência humana, tanto na dimensão social quanto espacial, com a implantação da sociedade urbana e industrial, e o conceito de poder infraestrutural do Estado, de Michael Mann, no sentido da capacidade das instituições estatais de penetrar no território e implementar suas ações.


A consciência da interdependência social leva à implementação de políticas de saúde pública pelo governo federal. A epidemia entendida com um mal público, no sentido usado por Wanderley Guilherme – uma vez produzida, ninguém pode ser excluído de seus efeitos perversos -, incentiva a ação do governo central no sentido da coordenação da ação coletiva e da provisão de políticas de saúde pública, a que todos os entes da federação deverão se submeter. Afinal, o vírus não respeita jurisdições, nem fronteiras entre os estados da federação. Foram criadas, assim, as condições para a construção de capacidades estatais e a implementação de um sistema nacional de saúde pública, ampliando, desta forma, a capacidade infraestrutral do Estado brasileiro em plena República Velha. O argumento também inclui um papel relevante no processo de construção institucional ao movimento sanitarista, cuja importância no campo da saúde pública se reflete até hoje.


A descrição acima é uma simplificação do argumento sofisticado e da análise minuciosa de Gilberto Hochman, uma leitura obrigatória nestes tempos de pandemia quando, pelo menos no caso brasileiro, a coordenação entre governo federal e governos estaduais praticamente não existe. Isto sem mencionar o comportamento errático e absolutamente criminoso do presidente da República.


Cabe uma última observação com respeito às implicações políticas e geopolíticas da epidemia, novamente recorrendo a Wanderley Guilherme e ao conceito de sua autoria de “interdependência social conflitiva”. Em sua definição: “uma pessoa estará em interdependência social conflitiva se, e somente se, a não provisão voluntária de um bem coletivo z implicar necessariamente o consumo de um mal coletivo y”[2]. No plano interpessoal, a quarentena e o distanciamento social produzem um bem público, que é diminuir o ritmo do contágio em um determinado espaço. Aqueles que não cumprem a quarentena estão, portanto, contribuindo para a propagação do mal público, o Covid-19. No plano interestatal, um governo que deliberadamente prega o afrouxamento da quarentena contribui decisivamente para o aumento do contágio para todos os demais países.


É exatamente com uma abordagem do plano interestatal que esta edição do Boletim se inicia. No artigo de Marcia Rangel Candido, Leonardo Nóbrega, Rafael Rezende e Talita Tanscheit, é possível concluir como, apesar de ser um fenômeno global, há uma variedade de respostas nacionais ao tratamento da crise do Covid-19. Os autores, editores da Horizontes ao Sul, publicação parceira do OPSA, abordam o caso dos países da América do Sul, com ênfase nas estratégias de Brasil, Argentina e Chile.


No segundo artigo, de autoria de Marilia Closs e Giovana Zucatto, temos uma análise de um outro tema que perpassa a agenda dos países sul-americanos: os feminismos e a questão de gênero. As autoras introduzem os diversos tipos de feminismos que se manifestam na região, além de apontar como se desenvolveram as manifestações do dia 8 de março deste ano.


Em seguida, o já tradicional Monitor Eleitoral do OPSA desta vez se refere a um país comumente ausente dos estudos sobre a América do Sul: a Guiana. No texto do pesquisador Ghaio Nicodemos, as instabilidades do pleito presidencial, acrescidas dos debates sobre a exploração de petróleo no país, evidenciam a importância de trazer à luz os acontecimentos políticos de um vizinho quase desconhecido. Por falar em instabilidade, o último texto, de autoria de Thaís Jesinski, encontramos uma atualização da crise venezuelana, em que coexistem, atualmente, dois presidentes e três assembleias legislativas.


Por fim, a crise do Covid-19 estourou na região durante a elaboração desta edição do Boletim. O texto inicial, em colaboração com os editores da Horizontes ao Sul, introduz como foram os primeiros dias de pandemia na América do Sul, mas, por ser um tema dinâmico, é necessário o monitoramento constante. A próxima edição do Boletim, a ser publicada em julho, será especialmente dedicada à atualização e às análises sobre a pandemia nos países sul-americanos. Esperamos que, até lá, tenhamos prognósticos esperançosos de superação da crise.



NOTAS


[1] VENTURA, Deisy. (2020), “Pandemia: Ocaso ou Refundação das Organizações Internacionais”. Disponível em: http://www.iri.puc-rio.br/mapi/pandemia-ou-refundacao.das.organizacoes.internacionais/


[2] (Guilherme dos Santos, 1989)



REFERÊNCIAS


GUILHERME DOS SANTOS, Wanderley. “A Lógica Dual da Ação Coletiva”. DADOS - Revista de Ciências Sociais, v. 32, n.1, 1989, p. 30.





Clique na imagem para ver a edição completa:


Índice

Editorial - A pandemia como um mal público: implicações políticas

Maria Regina Soares de Lima e Marianna Albuquerque

Política e pandemia: os primeiros dias do novo coronavírus na América do Sul

Marcia Rangel Candido, Leonardo Nóbrega, Rafael Rezende e Talita Tanscheit

Mulheres em movimento(s) e o 8 de março na América do Sul

Giovanna Esther Zucatto e Marília Closs

A petroleira e o presidente: o caso da crise democrática na Guiana

Ghaio Nicodemos

Dois presidentes e três assembleias: a crise na Venezuela se aprofunda

Thaís Jesinski Batistas








Como citar esse texto: SOARES DE LIMA, Maria Regina; ALBUQUERQUE, Marianna. (2020), "Editorial OPSA: A pandemia como um mal público:implicações políticas". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/03/23/A-PANDEMIA-COMO-UM-MAL-PBLICO-IMPLICACES-POLTICAS




Maria Regina Soares de Lima é Professora do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e Coordenadora do OPSA.

Marianna Albuquerque é Doutora em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e Coordenadora do OPSA.


Editora Responsável: Marcia Rangel Candido











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