AFRO-LATINOS EM MOVIMENTO: PROTESTO NEGRO E ATIVISMO INSTITUCIONAL NO BRASIL E NA COLÔMBIA
Nota Editorial
Publicado em março deste ano, o livro Afro-Latinos em Movimento: Protesto Negro e Ativismo Institucional no Brasil e na Colômbia, de autoria de Cristiano Rodrigues e editado pela Appris, chega ao país em tempos conturbados. Convivemos, no presente, com a tomada do espaço público por discursos oficiais que negam o racismo, enunciados por políticos e representantes de cargos institucionais marcadamente avessos ao reconhecimento das desigualdades e à elaboração de políticas públicas para combatê-las.
Fruto de tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), Afro-Latinos em Movimento mobiliza os conceitos de “oportunidades políticas” e “oportunidades discursivas” para explicar a capacidade dos ativistas negros impactarem a agenda política. Ao explorar a relação entre movimentos sociais e estado, o autor busca acrescentar à literatura de diferentes maneiras, a começar por adotar um enfoque institucionalista. Tão relevante quanto isso é a abertura à comparação de dois casos latino-americanos em períodos históricos que antecedem e procedem a criação de novas constituições nacionais: o próprio Brasil e a Colômbia.
Além dos venezuelanos, as proporções mais significativas de afrodescendentes na América Latina pertencem aos brasileiros e colombianos*. Embora partilhem essa característica demográfica, intensas assimetrias raciais e registros de políticas para atenuá-las, há poucas comparações sobre os dois países. É isso que o trabalho de Cristiano faz: dá protagonismo aos paralelos entre contextos periféricos, destoando da centralidade usual dos Estados Unidos nas pesquisas de relações raciais nas ciência sociais. Emerge, ao final, a chance de acompanharmos como as disposições territoriais de comunidades nacionais, divididas em meios urbanos ou rurais, os modos de construção de discursos e saberes, as características de governos e as influências de quadros internacionais estão atreladas aos tipos de organização e êxito dos ativismos negros.
A obra de Rodrigues permite enxergar em detalhe diversas etapas das trajetórias dos movimentos sociais e possibilita uma abertura ao entendimento da luta antirracista a longo prazo. Trata-se de uma leitura importante não só por nos deslocar dos horrores do tempo atual, mas também por demonstrar, com ampla investigação empírica, a fragilidade da conquista de direitos para grupos oprimidos, tão difícil de alcançar, nem sempre certeira em suas consequências e facilmente exposta à revogação.
É com prazer, portanto, que a Horizontes ao Sul divulga um trecho da publicação. Na Introdução, que apresentamos a seguir, os leitores poderão entender quais são as hipóteses de pesquisa, as motivações que levaram à escolha dos países analisados e o conteúdo que será desenvolvido em cada capítulo da edição.
Antes disso, entretanto, vale mencionar alguns aspectos da carreira de Rodrigues: tendo passado pela psicologia e a sociologia, o acadêmico agora é docente do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e tem contribuído para inserir a temática dos estudos raciais e de gênero nas discussões da disciplina. Cristiano coordena a Área Temática de Raça, Etnicidade e Política (com Luiz Augusto Campos - Iesp-Uerj) e o Comitê de Gênero, Raça e Diversidade Sexual (com Danusa Marques – UnB e Layla Carvalho – Unilab), ambos da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP).
*Cabe pontuar que a produção de dados demográficos varia muito entre países e isso dificulta pesquisas comparativas. A afirmação se baseou no relatório “Afrodescendentes na América Latina: Rumo a um Marco de Inclusão” publicado pelo Banco Mundial em 2018. Neste documento, por exemplo, o Haiti, país de maioria negra, é desconsiderado da análise. Ver em: https://dgmbrasil.org.br/media/publicacoes/Relatorio_Port_JH4BjdV.pdf
Desejamos uma boa leitura!
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Introdução
We shall not cease from exploration
And the end of all our exploring
Will be to arrive where we started
And know the place for the first time
(T. S. Elliot).
Este livro examina a relação entre movimentos negros e estado no Brasil e na Colômbia, entre o período imediatamente anterior à promulgação de suas respectivas constituições e ao longo das três décadas seguintes. De modo geral, procuro discutir os contextos sociopolíticos supracitados a partir da literatura sobre movimentos sociais em sua interface com os aparatos estatais. Dado que há muitas aproximações possíveis da relação entre movimento social e estado, opto por uma única: trato aqui, principalmente, das proposições analíticas de autores vinculados ao campo das Teorias do Processo Politico (TPP) que enfatizam tanto a dimensão cultural/simbólica das ações coletivas quanto as configurações político-institucionais que buscam influenciar.
Essa interpretação é especialmente relevante para o caso em tela, posto que o impacto positivo dos movimentos negros sobre o sistema politico deriva, amiúde, de estratégias voltadas para a transformação de entendimentos tácitos, ao nível da sociedade civil, sobre o papel do racismo em restringir as oportunidades socioeconômicas e políticas da população afrodescendente. Parte considerável dos estudos sobre relações raciais no Brasil e sobre comunidades negras na Colômbia privilegia, de maneira desproporcional, aportes teóricos mais culturalistas e identitários. Por essa razão o enfoque institucionalista adotado aqui visa preencher uma lacuna no entendimento sobre o impacto das reivindicações dos movimentos negros sobre as arenas político-institucionais.
Parto da ideia de que os movimentos negros mobilizam repertórios de ação coletiva que ou se encontram em consonância com os discursos acadêmicos e políticos preponderantes sobre a temática ou os contradizem. A partir daí, construo as seguintes hipóteses: o impacto – positivo e prolongado – do ativismo negro sobre as arenas institucionais e formulação de políticas públicas será maior a) caso haja uma maior confluência entre os discursos proferidos pelos atores do movimento social e sua legitimação política por agentes institucionais ou, b) menos efetivo quando o espaço de legitimação do discurso do movimento social for reduzido.
Em relação ao impacto dos movimentos negros sobre a agenda política e sua inserção na burocracia institucional, trabalho com as seguintes hipóteses: no que concerne à sensibilização da agenda política e ampliação do debate público, sugiro que as seguintes variáveis sejam de crucial importância: consistência temporal das demandas vocalizadas pelos movimentos negros, ampliação do debate sobre a temática para novos públicos e o tipo de interação/acesso ao sistema politico. De maneira subjacente, determinadas características institucionais podem facilitar ou dificultar esse processo. Impactos sobre a agenda política parecem ser facilitados em governos que oferecem canais institucionais abertos às demandas dos movimentos sociais. Além disso, a presença de importantes aliados dentro das instituições políticas também facilita a inserção da temática na agenda política do governo.
Por que comparar Brasil e Colômbia?
No Brasil há uma longa tradição de estudos sobre relações raciais, anterior à própria institucionalização das ciências sociais no país. O padrão de integração racial brasileiro chamou a atenção de ativistas e pesquisadores norte-americanos ainda na primeira metade do século XX, forjando um extenso e profícuo campo de estudos comparados sobre relações raciais nos dois países. Brasil e Estados Unidos erigiram, no cenário acadêmico internacional, como exemplos paradigmáticos de sistemas opostos de relações raciais, porém elucidativos para os contextos sociopolíticos dos demais países do continente americano.
Na Colômbia, por outro lado, esse campo de estudos é relativamente recente. Os trabalhos são ainda esparsos e eminentemente descritivos. Há também uma predominância de pesquisas antropológicas, com um baixíssimo índice de trabalhos de cunho sociológico e/ou politico. A partir da década de 1980, houve uma expansão dos acordos político-econômicos entre Estados Unidos e Colômbia, e medidas como o Plano Colômbia para o controle do narcotráfico. Congressistas afro-americanos aproveitaram esse cenário para aumentar o lobby para que propostas de melhoria das condições de vida da população afrocolombiana também fossem implementadas (ASHER, 2009). Um dos reflexos mais visíveis desse lobby foi a aumento considerável de projetos de políticas públicas direcionados à população negra e a ampliação do interesse acadêmico por essas temáticas, antes negligenciadas.
Brasil e Colômbia também compartilham algumas características políticas comuns no tocante à integração de afrodescendentes no seio da sociedade. Em ambos os países, a negação do passado escravista serviu de base para a construção de uma identidade nacional mestiça. Na Colômbia, à semelhança do que ocorreu na maioria dos países latino-americanos, a ideologia da mestiçagem pressupunha a integração de indígenas e europeus, mas excluía os negros. No Brasil, o propalado mito da democracia racial, abarcava a hibridização – biológica e cultural – de negros e brancos, mas negligenciava a contribuição indígena. Porém, apesar de os discursos oficiais serem distintos, em ambos os países a população afrodescendente sempre esteve submetida a formas perversas de racismo e exclusão social.
A partir dos anos 1980, em decorrência de mudanças no contexto político internacional e da ação dos movimentos negros, o discurso oficial se alterou drasticamente. Com as reformas constitucionais de 1988 e 1991, Brasil e Colômbia passaram, respectivamente, a adotar um discurso mais inclusivo. No país andino esse discurso adotou características relativas ao “giro multicultural” que ganhou espaço em vários países das Américas. No Brasil esse discurso caminhou em direção à defesa de direitos de cidadania e redução de desigualdades.
Os resultados desse “giro multicultural” e dessa maior proximidade com o estado são, no cenário mais otimista, ambíguos. Por um lado, a maior visibilidade política trouxe significativas melhoras para as populações afrodescendentes, por outro, trouxe novos conflitos políticos à lume e complexificou outros. Na Colômbia, a Lei 70 de 1993 garantiu direito coletivo às terras habitadas pelas comunidades negras rurais da costa do Pacífico. Porém, imediatamente após a sanção presidencial, essas mesmas comunidades passaram a ser perseguidas e assassinadas por grupos paramilitares e narcotraficantes interessados em controlar tais territórios, fazendo das populações negras as principais vítimas de deslocamento forçado no país. A Colômbia também criou distritos eleitorais exclusivos para afrocolombianos, permitindo a eleição de dois representantes negros para a Câmara dos Deputados. Entretanto uma pequena elite política negra, sem qualquer relação com as reivindicações das comunidades negras, e integrantes dos partidos políticos tradicionais se tornaram os principais beneficiários dessa medida inovadora.
No Brasil, a Constituição de 1988 forjou a figura jurídica dos remanescentes de quilombos, garantindo-lhes o direito à titulação de terras. A prática de racismo foi declarada, no mesmo documento, crime inafiançável. Contudo, desde a aprovação de tais medidas, poucas comunidades quilombolas foram reconhecidas como tal e a legislação sobre racismo mostrou-se inócua. A partir da década de 1990 um conjunto expressivo de inovações participativas foram implementadas em governos locais em todo o país, incluindo-se alguns conselhos, coordenadorias e secretarias para assuntos da comunidade negra. Porém tais espaços mostraram-se politicamente frágeis, com baixa dotação orçamentaria e, na maioria dos casos, tiveram vida curta, circunscrita ao período em que partidos aliados estiveram no poder. No cenário nacional, com a chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao poder central, algumas dessas experiências locais foram expandidas e ativistas negros passaram a acompanhar a proposição e implementação de políticas públicas. As políticas de ação afirmativa para ingresso no ensino superior público têm sido, nesse contexto, uma das principais vitórias do movimento negro contemporâneo. Porém, tão logo o ciclo de governos progressistas terminou, várias dessas medidas foram interrompidas ou estão sendo revistas.
Os achados empíricos dessa pesquisa revelam, entre outras coisas, que analisar a aproximação institucional dos movimentos negros colombianos e brasileiros a partir da oposição entre ‘autonomia’ e ‘cooptação’ trata-se de um equívoco. Isso não implica em dizer, contudo, que inexistam formas de cooptação. A aproximação institucional desses movimentos sociais se dá em condições adversas, fruto de estratégias erráticas, com objetivos pouco definidos e dificuldades em mobilizar recursos, sobretudo materiais. Do ponto de vista estatal, há conflitos internos, com setores mais progressistas e dispostos a acolher reivindicações vindas desses atores sociais e setores mais conservadores, refratários à sua integração institucional.
Analisar o protesto negro e ativismo institucional no Brasil e na Colômbia se justifica por uma miríade de razões, entre as quais destaco duas. Em primeiro lugar, como afirma Andrews (2004), tem havido uma explosão de estudos sobre afrodescendentes e relações raciais na América Latina, dando origem a um novo e promissor campo de estudos sobre afro-latinos[1]. Todavia ainda há uma prevalência de estudos de caso comparando Brasil e Estados Unidos e, em menor escala, pesquisas que tomam o Brasil e alguns países africanos (especialmente a África do Sul) como polos de comparação (ANDREWS, 2004).
O problema de tais comparações é basicamente a assimetria interpretativa, em que a experiência norte-americana é elevada à condição de exemplo a ser seguido. Mesmo quando há declarações de respeito às especificidades de natureza nacional, histórica e local, acaba havendo, por parte de tais analises comparativas, a tradicional reprodução da distinção Primeiro/Terceiro Mundos ou Norte/Sul, como indicadoras de positividades inquestionáveis e plenamente desenvolvidas.
Acredito, assim como afirma Wade, que:
O que se precisa aqui é menos uma imagem de duas nações isoladas, desenvolvendo distintos sistemas de raça e classe que possam ser comparadas como estudos de casos, mas um quadro de referência hemisférico ou mesmo global que enxergue as Américas como um todo, e, obviamente o ‘atlântico negro’ gilroyniano, como uma rede em que viajam pessoas e ideias (WADE, 2005, p. 113).
No Brasil, apenas recentemente tem havido um incremento de estudos comparativos com outros países da América Latina. As teses de doutorado de Vera Regina Rodrigues da Silva, analisando as políticas públicas para quilombos e palenques, de Márcio André́ de Oliveira dos Santos, detendo- -se na institucionalização dos movimentos negros entre 1991 e 2006, e as dissertações de mestrado de Pedro Vitor Gadelha Mendes, examinando a agenda política dos movimentos negros brasileiros e colombianos de 2001 a 2011, e de Juan Pablo Estupiñán Bejarano, sobre as classificações raciais nos censos de ambos os países são, até o presente momento, alguns dos raros trabalhos desenvolvidos em programas de pós-graduação do país comparando Brasil e Colômbia a partir da temática racial (SILVA, 2012; SANTOS, 2012; MENDES, 2014; BEJARANO, 2010).
Sigo, neste livro, a rota iniciada por esses pesquisadores e proponho, assim como sugerem Wade (2005) e Pinho (2005), um descentramento da importância dada à experiência racial norte-americana para servir de contraponto e/ou de modelo para a realidade latino-americana. Ao investigar países dentro do mesmo subcontinente, pretendo contribuir para o emergente campo de estudos afro-latinos e, ao mesmo tempo, verificar como determinados conflitos, impasses e contradições nos debates sobre raça e política na América Latina podem ser melhor compreendidos comparativamente.
Em segundo lugar, considero fundamental analisar as políticas pró-igualdade racial adotadas no Brasil e na Colômbia a partir dos anos 1980 dentro de um contexto geopolítico mais amplo. As maneiras pelas quais as estratégias dos movimentos negros nesses países foram sendo forjadas a partir dos anos 1970 em sua relação com forcas político-econômicas é bastante complexa. Na Colômbia, embora a maior parte da população negra viva em áreas urbanas, a hegemonia da face rural e campesina do ativismo negro e sua relação de proximidade com grupos indígenas engendrou políticas de identidade que acentuam o fato de afrocolombianos se constituírem em uma coletividade cultural e étnicorracialmente diferenciada do restante da sociedade, ao mesmo tempo em que mantém estreitas relações com o meio-ambiente e território. No Brasil, com a hegemonia do movimento negro de caráter mais urbano e uma população afrodescendente historicamente sub-representada nos espaços de maior prestígio social e econômico, os discursos e estratégias mobilizados pelos movimentos negros têm procurado ressaltar o caráter de luta pela igualdade.
Nesse sentido, as modificações constitucionais não são mera reação a um contexto político nacional e/ou internacional. Há, também, um processo de ressignificação e reinvenção do papel desempenhado por essas populações dentro do estado-nação, com reflexos no modo como elas passam a ser reinterpretados dentro do ordenamento jurídico e no campo acadêmico (ARRUTI, 2000). Discuto exatamente essa relação entre o reconhecimento legal das especificidades culturais e políticas de populações afrodescendentes no Brasil e na Colômbia vis-à-vis a ampliação de espaços de participação e implementação de políticas públicas racialmente sensíveis que tal reconhecimento enseja.
Analiso a contribuição dos movimentos negros brasileiros e colombianos para reformas constitucionais de finais dos anos 1980 e início dos 1990 e seus eventuais reflexos a) na formulação de políticas públicas e legislações específicas para tais grupos e b) no impacto que essas demandas por participação cidadã e reconhecimento social têm na ampliação de espaços participativos e na emergência de novos dilemas na esfera pública. A emergência desse ator político na cena pública impõe, por si só́, um desafio aos processos de democratização e inclusão em curso em ambos os países nas décadas de 1980 e 1990. Por essa razão, considero que uma análise mais contextual, que leve em conta o impacto da agenda política negra no projeto de nação desses países, pode ser bastante profícua.
Está claro que se ater aos contextos da ação coletiva é atividade fundamental da análise. São os contextos que determinam as condições de produção e os equívocos/insuficiências dos modelos analíticos e dos projetos sociopolíticos. Como afirma Slater (1985), a potencialidade, alcance e efetividade política dos movimentos sociais estão relacionados tanto a questões internas à sua própria organização e dilemas mais institucionais, como a relação estado-sociedade, a inserção do país na economia capitalista global e a composição das forças sociais na disputa pelo poder.
Nesse sentido, este livro visa contribuir para analisar o contexto político em ação, com seus avanços e limites para as populações afrodescendentes em particular, mas com possíveis insights para outras minorias sociais de um modo geral. Colômbia e Brasil erigem-se aqui como contextos prioritários de análise justamente por representarem, provavelmente, os únicos países latino-americanos que vêm, desde a década de 1990, empreendendo políticas públicas contínuas no que diz respeito à inclusão social e promoção de igualdade racial para a parcela afrodescendente de sua população (PASCHEL, 2016; HOOKER, 2005; WADE, 2006).
Pretendo compreender, a partir de enfoques analíticos institucionalistas sobre movimentos sociais, em que medida reivindicações por inclusão de minorias podem contribuir (e se de fato contribuem) para o melhoramento das instituições políticas tradicionais, produzindo a ampliação do círculo de indivíduos com direito a voz no seio da sociedade (KRIESI, 2004; DRYZEK, 1996). Como foram criadas para solucionar dilemas distintos dos vividos contemporaneamente, as instituições formais vivem um impasse que parece sem solução: como responder as demandas da crescente pluralização de interesses societais, em grande medida conflitivos, sem, no entanto, perder o seu papel de promotoras da coesão social? (DOMINGUES, 2008).
Para o objetivo deste livro, a análise da ação dos movimentos sociais é indissociável de um olhar mais detido sobre a dimensão política normativa. Isso posto, é importante assinalar que, ainda que haja descompassos entre os polos de comparação, isso não impede uma compreensão dos movimentos sociais e sua relação com aparatos político-institucionais. Processos articulatórios entre movimentos sociais e estado em contextos distintos impedem quaisquer análises que acentuem positividades inquestionáveis em etapas desenvolvimentistas a serem alcançadas. Aqui, a análise dos embates, articulações e antagonismos entre movimentos negros e o estado no processo de promoção e adoção de políticas públicas é fundamental. Outro ponto a ser enfatizado é como processos de racialização e etnicização em curso no Brasil e na Colômbia atualmente não são autóctones, mas encontram no estado seu maior interlocutor, seja para a positivação ou negação de reivindicações vindas dos movimentos negros.
É minha intenção que, apesar das possíveis incongruências históricas, o leitor consiga, ao longo deste livro, se familiarizar com as particularidades de cada caso ao mesmo tempo em que trace paralelos entre eles. A escolha desses dois países como objeto vem do reconhecimento da existência de um contexto latino-americano de relações raciais. Esse contexto é marcado por um discurso oficial celebratório da miscigenação biológica e cultural que coexiste com formas sutis e persistentes de discriminação racial, bem como por recorrentes tentativas de impedir a formação de movimentos de luta contra o racismo.
Ademais, como bem argumenta Yashar (2005), ao se analisar identidades políticas e sujeitos coletivos, é perfeitamente lógico que se tome o estado como ponto de partida, na medida em que na era do estado-nação é o estado que fundamentalmente define os termos públicos da política nacional de formação, expressão e mobilização identitárias. Uma vez que os estados são as unidades políticas preponderantes em nosso mundo, eles estendem/restringem cidadania política e definem projetos nacionais, institucionalizando e privilegiando certas identidades políticas. Para além disso, os estados também promovem incentivos para atores expressarem publicamente algumas identidades políticas sobre outras. A astúcia do estado está justamente em, ao parecer neutro, impor sub-repticiamente critérios particularistas e contingentes que beneficiam a uns e vitimam outros (YASHAR, 2005).
Visão Geral dos Capítulos
O livro está dividido em cinco capítulos, organizados da seguinte maneira:
No capítulo 1 – Movimentos Sociais e Participação Institucional na América Latina: atores e oportunidades políticas – faço uma sucinta revisão de literatura sobre teorias de movimentos sociais e sua utilização em contextos latino-americanos. Os aportes da Mobilização de Recursos, Teoria dos Processos Políticos e Teorias dos Novos Movimentos Sociais são escrutinados e questões sobre suas possibilidades e limitações para compreender o caso em tela são levantadas. Argumento, a partir do marco analítico das teorias sobre participação institucional na América Latina, que a inclusão de elementos participativos dentro da democracia representativa tem trazido importantes ganhos para minorias sociais, mas, ao mesmo tempo, podem representar um certo risco de perda de seu potencial contestatório. Concluo o capítulo 1 apresentando um conjunto de categorias analíticas para identificar prováveis elos entre os repertórios de ação coletiva dos movimentos negros brasileiros e colombianos a partir da década de 1980 e sua aproximação institucional nas décadas seguintes.
No capítulo 2 – Ciências Sociais, Movimentos Negros e Política Racial no Brasil e na Colômbia – argumento, aludindo implicitamente ao conceito de difusão relacional proposto por Tarrow (2011), que os debates acadêmicos sobre raça e etnicidade e as estratégias políticas empregadas pelos movimentos negros se intersectam e se retroalimentam forjando, em grande medida, uma abertura de oportunidades discursivas que desembocam na mudança, aparentemente drástica, em termos do tratamento estatal dado à questão racial em ambos os países durante o período de elaboração das novas cartas constitucionais em ambos os países.
No capítulo 3 – Movimento Negro, Estado e Políticas Públicas no Brasil – analiso, a partir dos referenciais teóricos discutidos no primeiro capítulo, o processo de aproximação institucional do movimento negro nas décadas de 1990 e 2000 e a retomada de estratégias de confronto nos anos 2010. Procuro responder as seguintes questões: quais foram as mudanças nas estruturas de oportunidades políticas que contribuíram para essa aproximação institucional? Quais redes de solidariedade foram acionadas pelo movimento negro em seu processo de inserção junto à burocracia estatal? O ativismo institucional do movimento negro implica, necessariamente, em cooptação? Quais outras formas de relação entre estado e movimentos sociais podem ser observados nesse caso específico? Como os repertórios de ação coletiva desse movimento social tem se transformado nesse período? E quais são os avanços, conquistas e conflitos vividos pelo movimento?
No capítulo 4 – Movimento Negro, Estado e Políticas Públicas na Colômbia – repito a mesma estrutura e objetivos do capítulo anterior. O foco, contudo, está em entender as particularidades do contexto sociopolítico colombiano e suas possíveis semelhanças com o caso brasileiro.
No capítulo 5 – Brasil e Colômbia Engendrando Afro-latinidades entre a Igualdade e a Diferença – retomo as principais discussões empreendidas nos capítulos precedentes, porém oferecendo-lhes um tratamento comparativo mais explícito. As categorias analíticas apresentadas brevemente no capítulo 1 são retomadas e servem de base para que as experiências brasileiras e colombianas sejam comparadas. O capítulo também tem um caráter conclusivo, especialmente ao refletir sobre o interjogo entre particularidades locais e processos transnacionais de mobilização política negra que tem promovido novos círculos de reciprocidade e solidariedade entre organizações negras de diversas latitudes, bem como fortalecido suas reivindicações dentro de seus respectivos países.
NOTAS
[1] Deste ponto em diante, passo a utilizar extensamente termos como afro-latino(s), afro-brasileiros e afrocolombianos para me referir àqueles indivíduos cujos marcadores fenotípicos remontam à uma descendência advinda de africanos negros escravizados fora da África e/ou vivendo na diáspora. Seguindo a rota iniciada por pesquisadores como Dzidzienyo (1978), Fontaine (1980) e, mais recentemente Andrews (2004) e Wade (2006) não nego os problemas inerentes às terminologias, nem tampouco o fato de que indivíduos de ascendência africana no continente americano são muito distintos entre si. Por outro lado, considero válida a tentativa de se construir categorias que sejam ao mesmo tempo amplas o bastante para englobar sujeitos de diferentes nacionalidades que compartilham entre si o fato de serem frutos de uma forma específica de dispersão diaspórica, mas sem no entanto impingir-lhes uma identidade monolítica ou estática, haja vista que formações identitárias são, fundamentalmente, contingenciais.
REFERÊNCIAS
ANDREWS, G. R. Afro-Latin America: 1800-2000. Oxford: Oxford University Press, 2004.
ARRUTI, J. M. Direitos Étnicos no Brasil e na Colômbia: notas comparativas sobre hibridização, segmentação e mobilização política de índios e negros. Horizontes Antropológicos, n.14, p. 93-123, 2000.
ASHER, K. Black and Green: Afro-Colombians, Development, and Nature in the Pacific Lowlands. Durham: Duke University Press, 2009, 247 p.
BEJARANO, J. P. E. Qual é sua raça ou grupo étnico? Censos, classificações raciais e multiculturalismo na Colômbia e no Brasil. 2010. 103 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Étnicos e Africanos) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010.
DOMINGUES, J. M. Latin America and Contemporary Modernity: a Sociological Interpretation. Nova York: Routledge, 2008.
DRYZEK, J. Political Inclusion and the Dynamics of Democratization. The American Political Science Review, v. 90, n. 3, p. 457-487, set. 1996.
DZIDZINEYO, A. Activity and inactivity in the Politics of Afro-Latin America. SECO-LAS Annuals, n. 9, p. 48-61, 1978.
FONTAINE, P. M. The political economy of Afro-Latin America. Latin America Research Review, v. 15, n. 2, p. 11-141, 1980.
HOOKER, J. Indigenous inclusion black exclusion: race, ethnicity and multi- cultural citizenship in Latin America. Journal of Latin American Studies, n. 37, p. 285-310, 2005.
KRIESI, H. Political Context and Opportunity. Separata de SNOW, D; SOULE, S; KRIESI, H. The Blackwell Companion to Social Movements. Malden: Blackwell Publishing, 2004. p. 67-90.
MENDES, P. V. G. A agenda política dos movimentos afro-latinos: Brasil e Colômbia de 2001 a 2011. 2014. Dissertação (Mestrado em Integração da América Latina) – Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.
PASCHEL, T. Becoming Black Political Subjects: Movements and Ethno-racial Rights in Colombia and Brazil. Princeton: Princeton University Press, 2016.
PINHO, P. S. Descentrando os Estados Unidos nos Estudos Sobre Negritude no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 20, n. 59, p. 37-50, out. 2005.
SANTOS, M. A. O. Políticas Raciais Comparadas: Movimentos Negros e Estado no Brasil e Colômbia (1991-2006). 2012. 153 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.
SILVA, V. R. R. Entre Quilombos e Palenques: um estudo antropológico sobre políticas públicas de reconhecimento no Brasil e na Colômbia. 2012. 292 f. Tese (Doutorado em Antropologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
TARROW, S. Power in Movement: Social Movements and Contentious Politics. 3. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2011.
WADE, P. Etnicidad, Multiculturalismo y Políticas Sociales en Latinoamérica: Poblaciones afrolatinas (e indígenas). Tabula Rasa, n. 4, p. 59-81, 2006.
WADE, P. Afro-latin studies: reflections on the field. Latin American and Caribbean Ethnic Studies, v. 1, n.1, p.105–124, 2005.
YASHAR, D. Contesting citizenship in Latin America: the rise of indigenous movement and the postliberal challenge. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.
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Para saber mais:
O podcast Larvas Incediadas, de divulgação de estudos de gênero e sexualidade produzido pelo cientista político Thiago Coacci, gravou um episódio sobre o livro. Disponível em: https://larvasincendiadas.com/2020/03/18/35-cristiano-rodrigues-afro-latinos-em-movimento/
O programa Mundo Político, da Assembleia de Minas Gerais, também fez uma entrevista com o autor. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OYI-PM6HlxM&t=363s
RODRIGUES, Cristiano. (2020), Afro-Latinos em Movimento: Protesto Negro e Ativismo Institucional no Brasil e na Colômbia. Curitiba: Appris Editora, 255p.
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Como citar esse texto: RODRIGUES, Cristiano. (2020), Trecho de Afro-Latinos em Movimento: Protesto Negro e Ativismo Institucional no Brasil e na Colômbia. Curitiba: Appris Editora, 255p. Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/03/25/AFRO-LATINOS-EM-MOVIMENTO-PROTESTO-NEGRO-E-ATIVISMO-INSTITUCIONAL-NO-BRASIL-E-NA-COLOMBIA
Cristiano Rodrigues é Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É Doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj).
Editora Responsável: Marcia Rangel Candido