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Josué Medeiros

POR QUE BOLSONARO DESAFIA A PANDEMIA?


Arte: @fernandoa_costa

Arte: @fernandoa_costa



A sucessão de ações do presidente Bolsonaro não deixa dúvidas: ele optou por bancar a aposta e desafiar a pandemia do novo Coronavírus, surgido na China ao final de 2019 e que se espalha pelo mundo desde então. Já são mais de 400 mil infectados e 20 mil mortos no planeta.


No dia 11 de março a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou pandemia mundial, o que significa que o novo Covid-19 (nome do coronavírus) está se alastrando pelo mundo inteiro em múltiplos focos. Desde então, Bolsonaro viu um ministro de sua comitiva que reuniu com o presidente dos EUA Donald Trump testar positivo para o coronavírus. Isso foi no dia 12 de março e até o dia 24 do mesmo mês outras 22 pessoas dessa missão diplomática admitiram ter sido contaminadas.


Bolsonaro foi posto em isolamento, porém no dia 15 de março ele se somou aos atos de rua convocados pela extrema-direita contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. No dia, o presidente cumprimentou mais de 200 pessoas. Questionado, só se refere ao Covid-19 como "gripezinha" e chama as medidas de sanitária baseadas no isolamento horizontal (deixar o máximo de pessoas possível em casa) de "histeria". No dia 20 de março, enquanto anunciava medidas de combate à pandemia, usou ambos os termos. No dia 21 de março, em entrevista à rede jornalística CNN Brasil, reiterou as expressões. Por fim, em pronunciamento oficial à nação no dia 24, reafirmou sua postura, mesmo contra todas as recomendações médicas e científicas e contra o que vêm fazendo o governo de mais de 150 países.


Como entender um movimento desse tipo? Por que Bolsonaro desafia uma pandemia com potencial de ceifar dezenas de milhares de vida e na contramão de tudo que tem sido feito no planeta?


Algumas análises à esquerda falam em um Bolsonaro desesperado com uma possível crise econômica e com a diminuição da sua popularidade. Citam como sinal de enfraquecimento do presidente o tamanho menor dos atos do dia 15 e a baixa coleta de assinaturas do partido bolsonarista, Aliança Pelo Brasil.


Ocorre que a própria emergência e consolidação do fenômeno político do bolsonarismo significa que a lógica da política brasileira mudou. Agora menos pode ser mais. A eleição presidencial de 2018 foi paradigmática. Depois dela, nem as forças políticas nem as instituições podem seguir agindo da mesma forma, como se vivêssemos uma situação normal. A pandemia apenas escancara esse novo quadro.


Como funcionava a política brasileira antes da vitória de Bolsonaro? Todos os grupos políticos – um partido, um governador, um ministro – montava uma estratégia que combinava ação estatal e social sempre visando alcançar a maioria do eleitorado. Se tal força política está no governo, cabia a ela elaborar e implementar uma ou duas políticas públicas centrais e uma narrativa eleitoral que conecta esta ação estatal com o conjunto da população.


Por exemplo. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, venceu as eleições em 1994 e 1998 com uma estratégia desse tipo. A política pública era o Plano Real. Sua narrativa fundamental foi a estabilidade econômica e social, algo que a maioria das pessoas sempre quer. Outro exemplo dessa lógica foi Lula em 2006 e Dilma em 2010. Nesses casos, as políticas públicas eram o Bolsa Família e o Salário Mínimo. A continuidade de um ciclo econômico virtuoso foi a narrativa, o que é desejado pela maioria das pessoas.


Se o grupo político estava na oposição, a lógica não mudava. Era preciso criticar o governo, buscando criticar a narrativa oficial. E, em paralelo, apresentar uma narrativa alternativa, sustentada por futuras políticas públicas. O melhor exemplo foi a vitória de Lula em 2002. Naquela conjuntura, o governo FHC naufragou junto com o fracasso da sua principal política pública, o plano real. Não havia mais estabilidade e a oposição podia citar vários exemplos, tais como a variação da moeda, o desemprego, o apagão, a fome.


A narrativa que Lula apresentou foi de união nacional para vencer a pobreza. Para dar substância a essa narrativa ele moderou o discurso, fez uma aliança com o centro – personalizado no empresário José Alencar e apresentou uma carta se comprometendo com os contratos e com o mercado. Ele pôde fazer tudo isso sem perder a força da sua mensagem junto aos pobres porque a sua própria trajetória de retirante nordestino e operário e a prática do PT nas prefeituras era coerente nesse sentido.


Outro bom exemplo para ilustrar essa lógica na oposição é o destino do PSDB durante o Lulismo. Mesmo com o antipetismo crescente na sociedade, os tucanos nunca conseguiram elaborar uma estratégia alternativa que se fizesse majoritária. A defesa das políticas neoliberais, com seu caráter antipopular, inviabilizou o partido de se conectar com a maioria da população.


O que mudou em 2018? O antipetismo virou majoritário? Talvez, só que Lula liderava as pesquisas até sua injusta prisão. E mesmo depois disso, se manteve forte e competitivo nas pesquisas. Muitos fatores contam para explicar a vitória de Bolsonaro além da rejeição ao PT: o descrédito das instituições, o golpe de 2016, a facada, a estratégia de redes do bolsonarismo.


O fato é que em 2018 Bolsonaro se elegeu rompendo a lógica dos pleitos anteriores. Ele não se apresentou como oposição a um governo, mas sim "contra tudo que está ai". E sua narrativa não estava amparada em nenhuma política pública. Foi acima de tudo uma candidatura de combate.


No governo, o presidente manteve essa lógica ao governar. Tudo que ele tenta em termos de política pública é barrado ou severamente transformado pela ação do poder judiciário e legislativo. Só que esse movimento institucional padrão do liberalismo é usado por Bolsonaro para alimentar sua base mais radical contra “o sistema”. Assim, ele mantém cerca de 1/3 do eleitorado coeso a seu lado. Esse modo de agir foi analisado por Tatiana Roque a partir na noção de negacionismo como forma de governo [1]. Já Marcos Nobre fala em governo para a minoria [2].


Na lógica anterior a 2018, essa estratégia estaria fadada ao fracasso. Mas agora, menos é mais. Com este 1/3 do eleitorado o bolsonarismo, segue competitivo em qualquer eleição. Com a sua base coesa, ele terá candidatos com potencial de 2º turno na grande maioria das capitais e grandes cidades. Nessa nova lógica, Bolsonaro nem precisa vencer os pleitos e eleger prefeitos aliados. Aliás, em alguns casos é até melhor perder para não ter que explicar péssimas gestões, como é o caso do Crivella no Rio de Janeiro. Desta forma, ele segue pautando a política nacional.


Esse era o roteiro com o qual Bolsonaro pretendia emparedar a sociedade e as instituições até 2022. Mesmo com um crescimento econômico modesto – na casa dos 2% ao ano, ele teria grandes chances de, em um eventual 2o turno presidencial, ser reeleito.


O que mexe com esse jogo é a pandemia. Enfrentar um problema desta dimensão exige de qualquer governo uma resposta majoritária, que unifique a sociedade e mobilize as instituições para minimizar os custos sociais e econômicos. Só que Bolsonaro é incapaz de fazer isso, como suas ações vêm demonstrando. Ele segue bancando sua aposta contra o coronavírus a despeito de todas as evidências cientificas e do todos os governos nacionais estão fazendo, inclusive os de extrema-direita aos quais Bolsonaro é alinhado.


Com Bolsonaro no governo e sua lógica política só podemos ter uma certeza: o processo de enfrentamento a Covid-19 será muito mais doloroso para a sociedade brasileira do que poderia ser com um governo comprometido com a maioria. Esta dor pode custar caro ao presidente. Sobretudo se as forças democráticas agirem concretamente e unidas para diminui-la. É preciso formular um programa econômico viável e de fácil apresentação para a sociedade para mostrar que nosso caminho é socialmente mais justo e próspero que o neoliberalismo. Propostas como Renda Básica Universal, Proteção do Emprego e Investimentos estatais em saúde e educação serão o diferencial quando a recessão vier. Sem isso, mesmo enfraquecido por uma tragédia humana e econômica, Bolsonaro terá a chance de recompor sua estratégia.




NOTAS


[1] ROQUE, Tatiana. (2020), O negacionismo no poder. Como fazer frente ao ceticismo que atinge a ciência e a política. Revista Piauí. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-negacionismo-no-poder/


[2] NOBRE, Marcos. (2020), Bolsonaro é o primeiro a governar só para um terço, diz cientista político que preside o CEBRAP. Jornal O Globo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-o-primeiro-governar-para-so-um-terco-diz-cientista-politico-que-preside-cebrap-24045741

Como citar esse texto: MEDEIROS, Josué. (2020), "Por que Bolsonaro desafia a pandemia?'". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/03/26/POR-QUE-BOLSONARO-DESAFIA-A-PANDEMIA


Josué Medeiros é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)

Editor Responsável: Rafael Rezende




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