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Amanda Evelyn Cavalcanti de Lima

LABORATÓRIO ITALIANO


Foto: Amanda Evelyn Cavalcanti de Lima

Legenda: Operário infectado, insulto dos colegas: você é um espalhador de vírus’. Três novos casos na província (Pisa). Partida de hoje a portas fechadas.




Enquanto finalizo este texto, a quarentena obrigatória imposta para toda a Itália vale agora até dia 03 de maio. O presidente do Conselho de Ministros Giuseppe Conte não cedeu aos pedidos de parte das indústrias de iniciar a reabertura gradual no dia 13 de abril e indicou que a reabertura será lenta para ser segura. Essa é apenas mais uma etapa do atrapalhado combate à COVID-19 na Itália que abre possibilidades de análise sobre as divisões socioeconômicas, a questão da imigração, o estado da União Europeia e acrescenta mais uma camada de tensão no já conturbado sistema partidário do país. A Itália é o laboratório do ocidente no combate à COVID-19 e tem sofrido perdas irreparáveis em todos os aspectos.


Este texto é parte relato, parte análise. Ele nasce de uma tentativa de reelaboração da minha experiência de estágio doutoral no exterior, feito na Universidade de Pisa, e seu encurtamento por causa da pandemia. A minha previsão de retorno inicial era dia 5 de abril e precisei antecipar para 14 de março, quando o país já estava em quarentena total obrigatória.


Cheguei à Itália em setembro de 2019. Alguns meses antes, Giuseppe Conte recebera do presidente italiano Sergio Matarella a tarefa de formar um novo governo. Em seu segundo mandato como Presidente do Conselho de Ministros, Conte formou uma coalização entre o Partido Democrático e o Movimento Cinco Estrelas, de orientação ideológica oposta a do seu primeiro governo, que era de centro-direita. O novo governo de Conte visava, entre outras coisas, afastar Matteo Salvini dos holofotes. Salvini, membro do partido de extrema-direita Lega Nord, era Ministro do Interior do primeiro governo de Conte. Depositou um voto de desconfiança [1] ao governo esperando que fossem convocadas novas eleições, o que não aconteceu.


Embora acompanhasse as notícias regularmente, o nome de Conte começou a ser uma preocupação quando começaram as medidas de contenção do coronavírus. Do final de fevereiro até 14 de março, data do meu retorno antecipado ao Brasil, um pronunciamento de Conte significava que novas restrições seriam impostas à população.


Como já extensivamente noticiado no Brasil, os primeiros casos da COVID-19 na Itália se deram no dia 31 de janeiro. Um casal de chineses em Roma testou positivo. Seus companheiros de viagem foram isolados e testados, todos negativos. Conte já havia determinado o fechamento do espaço aéreo da e para a China. Como não houve escalada de novos casos nos dias seguintes, parecia que tudo estava contido. Conte e outros políticos italianos pediam à população que continuassem suas vidas normalmente. Operadores de turismo diziam que era seguro viajar para a Itália. O carnaval de Veneza iria começar em poucos dias e a situação parecia estar sob controle. A exceção eram os pedidos da oposição de extrema-direita de obrigar todos aqueles que voltavam da China, especialmente as crianças em idade escolar, a realizarem uma quarentena. O pedido não foi acatado pelo governo de Conte. O segundo pedido era o de fechamento de portos para navios com refugiados, ignorado pelo governo, que interpretou que a motivação do pedido era a xenofobia. A extrema-direita italiana tentou, de fato, usar o novo coronavírus como uma justificativa para impor restrições à imigração, o que ainda está em processo em toda a Europa.


A escalada de novos casos começou, de fato, mais ou menos no meio de fevereiro, com o epicentro em Codogno, uma pequena cidade no norte do país onde os casos se multiplicaram em poucos dias. O primeiro positivo identificado e conhecido como paciente um [2], Mattia, de 38 anos, foi liberado depois de praticamente um mês internado, enquanto o país ainda batia recordes de mortes causadas pela COVID-19.


Foi uma surpresa que o foco da COVID-19 fosse justamente o norte e que o paciente 1 fosse um italiano que não esteve na China e nem um chinês. Na Itália, o norte geográfico é sinônimo de prosperidade e desenvolvimento, enquanto o sul seria seu exato oposto. É no norte que se concentra a capacidade industrial, comercial e financeira do país, com uma legião de trabalhadores pendulares que vivem em pequenas províncias e se deslocam para trabalhar nas grandes capitais como Milão e Veneza. Antes da COVID-19, o norte era conhecido por ter a melhor infraestrutura do país, incluindo os melhores hospitais. Hoje, é difícil perceber isso como algo evidente quando assistimos às cenas dos hospitais da Lombardia abarrotados e a região apresentando os piores números de contágio e morte.


As primeiras províncias a serem colocadas em quarentena foram na região norte, em especial a Lombardia e algumas províncias do Veneto. Em Vo no Veneto, foi imposta a quarentena total obrigatória antes de todo o país, assim como em Codogno. Escolas fechadas, comércio com horário reduzido. Era possível sair de casa, mas não se recomendava sair do próprio município. No resto do país, orientações sobre lavar as mãos constantemente, uso do álcool em gel, orientação para ficar em casa caso tivesse estado em alguma das cidades em quarentena nos últimos 14 dias. Foram impostas as chamadas medidas de distanciamento social: proibição de aglomerações, distanciamento de pelo menos um metro com relação a outras pessoas e a necessidade de lavar as mãos constantemente. Bares, cafés e restaurantes podiam continuar abertos se conseguissem impor a distância mínima obrigatória. Mas isso tudo valia apenas para o norte e, de resto, as autoridades nos informavam que estava tudo bem.


Me pareceu bastante contraintuitivo que o governo central tivesse fechado algumas províncias na região mais rica do país por uma doença que nos diziam e repetiam que era de baixa complexidade, fácil de curar como uma gripe e que só era perigosa para o grupo de risco. Até que começaram as mortes. A primeira morte foi em Vo, no Veneto. A vítima era Adriano Trevisano, de 78 anos. Não houve funeral porque sua esposa e sua filha também testaram positivo e estavam em isolamento.


No restante das províncias do norte, no entanto, se vivia a ‘nova normalidade’. Empresários começaram uma campanha dizendo que não se parava Milão e nem a Itália. O prefeito de Milão Giuseppe Sala também compartilhou o vídeo da campanha. A extrema-direita italiana dizia ser um absurdo fechar tudo. As pessoas - inclusive um casal de idosos que teve contato com casos suspeitos e fugiu da quarentena - se sentiram seguras para sair de casa na zona vermelha e aproveitaram os finais de semana para ir às estações de esqui. A mensagem resultou em bares lotados, festas e muita aglomeração. Os casos explodiram e, com eles, as mortes.


O primeiro passo do governo central depois do fechamento das escolas foi adicionar novas províncias à zona vermelha e proibir os deslocamentos inclusive dentro dela. O grande problema é que essa decisão vazou para a imprensa na tarde do dia 7 de março, fazendo milhares de pessoas com famílias no sul saírem do norte por medo de ficarem trancadas em casa. O resultado inevitável era o espalhamento do vírus para cidades com uma infraestrutura muito deficiente. Levando em conta o ciclo da doença, em 14 dias o sul precisou lidar com alguns casos importados, mas num cenário menos catastrófico que o norte, já que várias prefeituras obrigaram os recém chegados a permanecerem em isolamento domiciliar. Dia 11 de março Giuseppe Conte anunciou a quarentena em toda a Itália.


A decisão de Conte, que podia parecer extrema para o exterior, ainda era considerada leve no país, especialmente para os governadores da Lombardia. Por isso, nos dias seguintes, o Conselho de Ministros tentou esclarecer o que de fato se podia ou não fazer e os documentos que podiam provar que o deslocamento feito era necessário. A Itália colocou as forças policiais nas ruas e ao longo da semana seguinte, acompanhando o aumento ainda progressivo de casos, fechou parques públicos, proibiu inclusive os exercícios fora de casa e aumentou o valor das multas para quem fosse encontrado na rua, que podem chegar a 3 mil euros - aproximadamente 15 mil reais.


Depois do fracasso da estratégia de manter a economia funcionando e o desastre trazido pela campanha que dizia que Milão não podia parar, o governo reforçou a articulação com a União Europeia para trazer recursos para a Itália. Inicialmente, o país conseguiu autorização para não fazer contenção de gastos, mas os auxílios financeiros ainda estão demorando a chegar. Em meio ao processo decisório de Bruxelas, a COVID-19 também começou a se alastrar na Espanha, França e Portugal. Em pronunciamento no dia 29 de março, Conte afirmou que ou a Europa chega a um acordo favorável aos países atingidos ou não sobreviverá, e que a paralisia de Bruxelas, sede do Parlamento Europeu, junto às dificuldades impostas pela Alemanha, podem levar a um retorno do nacionalismo não apenas na Itália. É uma posição forte, mas que pode angariar aliados em todos os pontos do espectro político italiano e permitir que a Itália tenha um novo papel no continente.


Não parece forçoso afirmar que a capacidade de resposta dos líderes políticos à crise vai ser determinante para o seu futuro político. Conte tem aumentando seu prestígio e ajudado a levantar o moral dos italianos, apesar do número de mortes e as dificuldades econômicas intensificadas pela COVID-19. A ajuda estadunidense para a Itália anunciada no dia 30 de março no valor de 100 milhões de dólares é mais um indício de que novos equilíbrios podem surgir no continente.


Hoje, ainda é difícil apontar como a Itália vai se reinventar. Apesar da paralisia imposta às cidades, os atores políticos estão empenhados em ter algum papel na crise e, nesse momento, espera-se que seja um papel positivo.



NOTAS


[1] Uma moção de desconfiança é um instrumento que pode ser apresentado na Itália contra todo o governo ou contra um dos ministros sinalizando que aquele que moveu a moção acredita que o atual governo ou ministro é incapaz de governar e deve ser substituído. A moção precisa passar pelas duas casas do parlamento - Câmara e Senado - para que o presidente dissolva o governo e convoque novas eleições. No caso em questão, o partido de Matteo Salvini, a Lega Nord, apresentou uma moção de desconfiança contra o presidente do Conselho de Ministros, Giuseppe Conte, o que provocou a quebra da coalização do governo. O Movimento Cinco Estrelas decidiu fazer coalização com o Partido Democrático, em oposição à Lega e em apoio ao presidente do Conselho de Ministros Giuseppe Conte, que foi autorizado a formar um novo governo. A moção não chegou a ser votada porque foi retirada pouco depois pelo próprio Salvini.


[2] Embora Mattia não tenha sido o primeiro caso positivo na Itália, ele é conhecido como paciente um do surto, já que não foi possível identificar o paciente zero, que teria passado o vírus a ele. Os primeiros casos identificados em Codogno tinham relação direta com Mattia.





Como citar esse texto: LIMA, Amanda Evelyn C. de. (2020), "Laboratório Italiano". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/04/13/LABORATORIO-ITALIANO




Amanda Evelyn Cavalcanti de Lima é doutoranda em sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e é vinculada ao Núcleo de Pesquisa em Direito e Ciências Sociais - DECISO. Realizou doutorado sanduíche na Università di Pisa (Setembro/2019 - Março/2020). Atua na área de Sociologia do Direito, principalmente nos seguintes temas: justiça de transição, profissões, instituições jurídicas e relações entre direito e política.


Editor Responsável: Leonardo Nóbrega











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