TRABALHANDO EM CASA: COMO A COVID-19 ESCANCARA AS RAZÕES PELAS QUAIS NÓS PRECISAMOS FALAR DE SAÚDE M
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A pandemia de Covid-19 chegou ao Brasil e muitos escritórios e empresas, seguindo as recomendações dos especialistas em saúde, passaram a liberar seus funcionários para trabalhar de casa, nos casos em que isso é possível. O trabalho em regime remoto (home office), no entanto, tem seus desafios e logo deu origem ao compartilhamento, nas redes sociais, de uma série de dicas de como fazer o trabalho em casa funcionar.
São dicas como vestir-se normalmente, como se fosse sair de casa. Arrumar um espaço na casa para transformar em escritório. Alimentar-se nos horários habituais. Tentar, o máximo possível, manter uma rotina similar à do trabalho presencial, delineando metas, objetivos e listas de tarefas com prazos factíveis. Fazer pequenas pausas e levantar-se para dar uma volta pela casa para arejar a cabeça e evitar dores no corpo. Ao final do dia, aproveitar a tecnologia para conectar-se com pessoas queridas para socializar um pouco.
É provável que muitos estudantes de pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado), ao ver todas essas dicas, identifiquem práticas e costumes que, a duras penas e com muita disciplina, desenvolveram para dar conta dos seus prazos de entrega de artigos, capítulos de teses e preparação de aulas. A verdade é que o regime de quarentena que, para muitos, é uma novidade imposta por uma pandemia mundial, é bastante semelhante à vida cotidiana de um estudante de pós-graduação.
A partir do momento em que ingressam em um programa de mestrado ou doutorado, os estudantes passam a desenvolver os seus projetos de pesquisa. E, uma vez que terminam de cursar as disciplinas para a obtenção de créditos exigidos pelo programa, a maior parte do trabalho se revela extremamente solitário. O mito da genialidade inata, que marca o campo acadêmico, contribui para que a redação de artigos, dissertações e teses seja um processo bastante individual. Sem que haja um esforço acadêmico no sentido de promover grupos de pesquisa e o intercâmbio de ideias entre estudantes e professores em um ambiente livre do receio de plágio, essa realidade é a receita para a solidão.
Além disso, bolsas de estudo cada vez mais raras ou cujos valores não são compatíveis com o custo de vida das grandes cidades do país impedem que a maioria dos estudantes e pesquisadores possam se dar ao luxo de trabalhar em um café ou comprar suas refeições fora de casa, por exemplo. Apertados, equilibrando os custos com moradia, transporte e alimentação, muitos estudantes terminam por optar por cozinhar suas refeições e trabalhar em casa. O isolamento social, portanto, é uma realidade para grande parte daqueles que optaram por seguir a vida acadêmica no Brasil.
A solidão pode ser essencial para o desenvolvimento de atividades criativas e para o aprimoramento do foco mental. O problema é que a linha que separa a solidão reflexiva e produtiva de um isolamento social angustiante e perigoso pode ser tênue, como revela esse incômodo geral que temos visto com o home office mais recentemente. As dificuldades de cumprir metas e prazos em um ambiente familiar, sem se render às tentações domésticas como a televisão, mantendo um contato reduzido com colegas, amigos e familiares e sem que haja uma rotina que induza o indivíduo a fazer pausas, revela-se um desafio nada trivial. Pode gerar stress, ansiedade, desânimo. Para as mães que estão na pós-graduação a situação pode ser ainda mais angustiante, uma vez que muitas vezes elas têm que conciliar todas as atividades acadêmicas com os cuidados com as crianças.
Nada disso, no entanto, costuma ser objeto de discussão na pós-graduação, ambiente no qual a incidência de depressão é muito maior do que na média na população em geral. De fato, uma pesquisa realizada pela Andifes aponta que 83% dos alunos das universidades públicas brasileiras reportaram dificuldades emocionais e que, entre eles, o número de pensamentos suicidas dobrou em 4 anos. Isso não se deve, evidentemente, apenas ao isolamento social, mas esse é um fator capaz de agravar tantos outros, como a discriminação de mulheres, alunos negros ou LGBTQI+; assédio; um ambiente excessivamente competitivo; a exigência de cada vez mais produtividade em menos tempo, entre outros.
A todos esses fatores, acrescente-se também a falta de perspectiva ao final da pós-graduação, já que a maior parte dos doutorandos não concluem seus cursos tendo um emprego seguro ou perspectivas financeiras otimistas. No Brasil, os dados da Plataforma Lattes apontam que a maior parte dos doutores (47%) segue carreira acadêmica em instituições públicas de ensino superior (IES). Com a crise econômica e os cortes de bolsas de pós-doutorado, de recursos das IES e, consequentemente, a redução das vagas em concursos públicos para docentes, muitos recém-doutores se veem desempregados e em busca se oportunidades no setor privado, muitas vezes avesso à contratação de profissionais com perfil acadêmico.
A alta incidência de problemas de saúde mental na pós-graduação está longe de ser uma realidade exclusivamente brasileira, mas sim global. Um estudo recente de pesquisadores da Universidade de Harvard com 500 doutorandos de economia nos EUA concluiu que os estudantes de pós-graduação têm três vezes mais chances do que os americanos comuns de experimentar distúrbios de saúde mental e depressão.
Todavia, essas questões ainda são vistas como tabu, sendo recorrentes comentários que dão a entender que depressão é “frescura”, “fraqueza” e que se trata de algo comum na trajetória de “gênios”, de modo que “os fortes vencerão”. Esse tipo de romantização do sofrimento mental pode fazer com que estudantes não busquem apoio institucional – tais como apoio psicológico em clínicas universitárias ou a solicitação de extensão dos seus prazos – com receio de serem alvo de comentários jocosos ou serem vistos como “fracos”. É necessário parar de romantizar o sofrimento e admitir que se trata de algo que hoje, infelizmente, é intrínseco à atividade acadêmica.
Se há um percentual alto de estudantes com depressão, síndrome do pânico, pensamentos suicidas e ansiedade, isso é sinal de que algo não está funcionando bem no sistema de pós-graduação. No entanto, o progresso nas discussões sobre saúde mental na academia é lento, talvez porque falta agência aos estudantes. Não é fácil criticar o sistema, instituições, colegas e professores e colocar em risco cartas de recomendação e parcerias que são fundamentais para perspectivas de emprego no futuro.
O tema da saúde mental no ambiente acadêmico começou a ser mais discutido recentemente e a pesquisa da Andifes aponta que em 2018 cerca de 32% dos alunos de universidades públicas no Brasil declararam ter procurado, em algum momento, apoio psicológico. Mais do que tratar as consequências dos problemas de saúde mental na pós-graduação, no entanto, talvez devêssemos nos ocupar de criar as estruturas para que o ambiente acadêmico se torne mais saudável, colaborativo e humanizado.
O apoio das instituições é fundamental para que os estudantes e pesquisadores se sintam acolhidos caso apresentem dificuldades e precisem de ajuda psicológica. Investir em estratégias que possam reduzir o isolamento social dos estudantes e ensinar mecanismos para lidar com a parcela mais solitária do trabalho acadêmico talvez fosse um bom começo.
Vivian Ferreira é doutoranda em direito pela Faculdade de Direito da USP.
Anna Carolina Venturini é doutora em Ciência Política pelo IESP-UERJ e pesquisadora do Cebrap.
Como citar esse texto: FERREIRA, Vivian; VENTURINI, Anna Carolina. (2020), "Trabalhando em casa: como a Covid-19 escancara as razões pelas quais nós precisamos falar de saúde mental na pós-graduação". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/05/01/TRABALHANDO-EM-CASA
Editor Responsável: Leonardo Nóbrega