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Anna Bárbara Araújo

CUIDADO, TRABALHO DOMÉSTICO E SERVIÇOS ESSENCIAIS


Banksy, 2020.





Cuidador de idoso ficar entrando e saindo [de] transporte público é alto risco. Cuidador de idoso tem que ficar lá, dormir com ele [com o idoso], não pode sair e voltar. Isso é um risco elevadíssimo para o idoso. São essas questões que temos que orientar a população". [1]



A fala acima foi proferida pelo governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel no fim de março, quando um decreto restringia o transporte intermunicipal aos trabalhadores de serviços essenciais para dificultar a contaminação pelo coronavírus. Os profissionais da saúde estavam liberados para passar pelas barreiras, patrulhadas por policiais militares, que foram impostas pelo decreto. Mas afinal, as cuidadoras de idosos – uso o termo no feminino porque elas são maioria na ocupação – podem ser consideradas trabalhadoras da saúde? A recomendação do governador era clara: as cuidadoras deveriam permanecer em seus locais de trabalho – a casa dos idosos – para preservar a saúde destes e evitar possíveis contaminações.


Menos de uma semana depois, a narrativa mudou. Após relatos de que as cuidadoras de idosos estavam tendo dificuldades em acessar o transporte público e das demandas da Associação dos Cuidadores da Pessoa Idosa, da Saúde Mental e com Deficiência do Estado do Rio de Janeiro (ACIERJ) [2] em ser incluída no rol dos trabalhadores essenciais, o governo disponibilizou um documento eletrônico a ser preenchido pelos patrões das cuidadoras e enviado por whatsapp [3]. O documento serve para comprovar que elas são de fato cuidadoras, assim podendo embarcar nos ônibus, trens e barcas do transporte intermunicipal. Como uma parte significativa das cuidadoras trabalha sem carteira assinada, este documento passa a ser a única “prova” de seu trabalho, desempenhado muitas vezes na privacidade e na invisibilidade dos domicílios.


Nesse período de intensa publicação de decretos e de diretrizes que mudam rapidamente, ao sabor dos números de casos e de mortes, disputas políticas, financeiras e discursivas, e também onde pululam a todo momento novas informações sobre o vírus, inicio este texto mencionando o decreto e a fala do governador, ambos datados de março, época em que vivíamos uma outra fase da pandemia. Faço isso porque esses textos revelam uma disputa essencial sobre o status conferido ao trabalho das cuidadoras, que se agudiza durante esse período de coronavírus.


A fala do governador de que as cuidadoras deveriam permanecer na casa dos idosos ecoa a narrativa de alguns patrões. Das cuidadoras é exigido, mesmo antes da pandemia, que se sacrifiquem: lidam com idosos de temperamentos difíceis, muitas vezes por conta do deterioro mental, por vezes têm rotinas de trabalho longas, fazendo plantões de até 12, 24 ou até 48 horas seguidas, e sofrem quando os idosos de quem cuidam ficam internados ou falecem. As cuidadoras que se sacrificam, isto é, aquelas que se “doam mais” para os idosos e investem mais de sua subjetividade nas tarefas do cuidado, são tidas como as boas cuidadoras por parte delas mesmas e também pelas empresas que oferecem seus serviços (Araujo, 2019).


Mais recentemente são inúmeros os relatos de cuidadoras, em diferentes estados, que afirmam estarem sendo obrigadas pelos patrões a permanecer na casa dos idosos enquanto durar a epidemia, sob pena de perderem seus empregos [4]. Nesse caso, demanda-se que a cuidadora abdique de sua vida pessoal, casa, família, atividades cotidianas, para se dedicar exclusivamente à sua rotina profissional num domicílio privado. Na fala do governador, a cuidadora não é enquadrada como profissional da saúde, mas como trabalhadora doméstica, o que no Brasil, remete a um processo histórico de falta de direitos no trabalho (apenas em 2013 conseguiram equiparação com outras categorias por meio da chamada PEC das domésticas) e de exploração que remontam ao passado colonial (Ávila, 2016), à despeito da histórica luta das trabalhadoras domésticas sindicalizadas pela valorização de seu trabalho (Bernadino-Costa, 2015).


Essa narrativa autossacrificial, no entanto, é em parte contestada pelas cuidadoras que adotam uma postura mais profissionalizada, como aquelas representadas pela ACIERJ. Essas demandam ser enquadradas como trabalhadoras de serviços essenciais, tendo, portanto, direito ao transporte intermunicipal e, mais do que isso, visibilidade e reconhecimento de sua profissão e proteção do Estado, – a partir, por exemplo, da distribuição de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs).


O direito à proteção no trabalho não se distribui de forma equânime para as cuidadoras. Aquelas que são contratadas por famílias são convocadas a assumir os riscos dos tempos de pandemia: seja passando todo o período de quarentena junto aos idosos cuidados, se arriscando no transporte público – junto a outros trabalhadores diversos – para chegarem até as casas dos idosos, ou ainda, sendo dispensadas e perdendo sua fonte de renda.


Se faz relevante citar um exemplo que vai na contramão dessa tendência: uma das equipes de cuidadoras do Programa de Acompanhantes de Idosos (PAI), política pública que oferece cuidado domiciliar a idosos do município de São Paulo, está realizando serenatas para os idosos, no portão das casas destes, durante a epidemia. São cuidadoras – ou acompanhantes, como são usualmente chamadas – visitadoras, que atendem diversos idosos, indo até a casa dos mesmos ao longo da semana. Para diminuir o risco de contaminação, o cuidado que elas prestam agora consiste em trazer um pouco de alegria por meio das serenatas. Assim, protege-se as cuidadoras e os idosos.


Com a pandemia, a relevância do cuidado – em sua faceta remunerada e não remunerada – um trabalho muitas vezes desvalorizado de reprodução da vida, se torna patente, algo que as feministas indicam há décadas. A pandemia escancara as desigualdades que estruturam a oferta e a demanda de cuidado e que, no caso das cuidadoras de idosos, se relacionam com a efetivação de direitos, incluindo o direito a preservar a própria vida.




NOTAS







REFERÊNCIAS


ARAUJO, Anna Bárbara. (2019), "Gênero, reciprocidade e mercado no cuidado de idosos". Estudos Feministas, v. 27, n. 1.


ÁVILA, Maria Betânia. (2016), “O tempo do trabalho doméstico remunerado: Entre cidadania e servidão”. In: ABREU, Alice de Paiva; HIRATA, Helena; LOMBARDI, Maria Rosa (orgs.). Gênero e trabalho no Brasil e na França: perspectivas interseccionais. São Paulo: Boitempo, 2016, pp. 137-146.


BERNADINO-COSTA, Joaze. (2015), Saberes Subalternos e Deconialidade: os sindicatos de trabalhadoras domésticas no Brasil. Brasília: Editora UnB.




Anna Bárbara Araujo é atualmente consultora técnica da ONU Mulheres. É doutora (2019) e mestra (2015) pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Contato: annabarbaraaraujo@gmail.com

Como citar esse texto: ARAUJO, Anna Bárbara. (2020), "Cuidado, trabalho doméstico e serviços essenciais". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/05/11/CUIDADO-TRABALHO-DOMESTICO-E-SERVICOS-ESSENCIAIS


Editora Responsável: Luna Ribeiro Campos











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