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Elaine Azevedo

SOCIOLOGIA E ALIMENTAÇÃO: UM RESUMO DO DEBATE


Performance de Geovanni Lima. μg/kg 90', 2017, apresentada no evento "Deslizes Monumentais e Sonhos Intraquilo: A estética do Antropoceno".

Preparação de uma moqueca capixaba com peixe do Rio Doce, contaminado com metal pesado proveniente dos rejeitos da barragem rompida em Mariana, MG após o crime ambiental da Vale S.A. Crédito: Shay Peled


Seja como objeto de análise de fenômenos como a globalização e o poder; investigação de fases evolutivas e processos civilizatórios da sociedade humana; pilar de organização social; ativismo e instrumento de resistência a processos colonialistas; item de informação ou código capaz de gerar diferentes mensagens; potencial simbólico estrutural ou estruturante; construtora de identidades, gêneros e etnias; estratégia de prazer e lubrificação de interações sociais; fomentadora de intolerâncias e divisões sociais; mantenedora de vida ou promotora de problemas de saúde, controvérsias científicas, questionamentos éticos, angústias e riscos socioambientais, a alimentação configura-se como um objeto legitimo de análise social e de compreensão das premissas implícitas do viver em sociedade.


A ideia aqui é mostrar como a comida está sendo abordada pelos autores contemporâneos nas Ciências Sociais. Tais autores vêm ampliado sensivelmente as fronteiras dos estudos em alimentação, cultura, sociedade e meio ambiente.


Apesar da recente efervescência em torno da comida, a alimentação foi, por muito tempo, uma temática social negligenciada. Tal condição pode ser explicada por seu vínculo a uma atividade doméstica, mundana e sem glamour, de domínio tradicional das mulheres, cuja produção remete ao meio rural distanciado do apelo intelectual de teóricos masculinos atuando no meio urbano que dominaram historicamente as Ciências Sociais, especialmente no seu início.


Para endossar a sempre atual fala de Levi Strauss sobre o apelo e a versatilidade intelectual que envolve a comida, apresento aqui alguns temas sociológicos contemporâneos sobre alimentação a partir de cinco eixos temáticos: (i) riscos, controvérsias e a (in) segurança alimentar e nutricional; (ii) comida e seus múltiplos significados da contemporaneidade; (iii) “comer de outras formas” - alimentação e ética, gênero, sexualidade, literatura, cinema e artes; (iv) a gastronomia e suas implicações culturais e políticas; e (v) o ativismo alimentar que coloca em evidência diversos movimentos transformados em repertórios de ações coletivas.


Medo. De comer e de morrer de fome.


Desde o alerta ‘gastro-anômico’ do antropólogo francês Claude Fischler e sua discussão de cacofonia alimentar, a ansiedade relacionada às incertezas e controvérsias em torno do tripé alimentação-saúde-doença-riscos ambientais têm se intensificado ultimamente - ou pelo menos tem se mostrado de forma mais expressiva. A frágil fronteira entre a categoria de alimento saudável e a de alimentos que apresentam riscos e as consequentes controvérsias científicas são discussões acolhidas pela Sociologia da Alimentação em diálogo estreito com a Sociologia do Conhecimento Científico.


As controvérsias encaixam a ciência em um contexto de atividade humana como outra qualquer que envolve jogos de poder, erros, fragilidades e impotências. As controvérsias científicas e alimentação ajudam a compreender as limitações da ciência, dão visibilidade aos confrontos entre especialistas e entre leigos e peritos e evidenciam os dissensos e riscos que permeiam o que é um alimento saudável, além de trazer à tona a problemática que envolve tal conceito.


Para além dos riscos alimentares contemporâneos, permanece a velha chaga que fomentou os primeiros estudos sociológicos em alimentação. Entre 2003 e 2016, as preocupações com a fome e a desnutrição se ampliaram sob a aquecida discussão da (in) segurança alimentar e nutricional (SAN) que colocou o Brasil como referência internacional no combate a fome e erradicação da pobreza. A SAN trouxe desafios como os transtornos alimentares, como a bulimia, anorexia, e também a obesidade e as doenças não transmissíveis causadas pela dieta desequilibrada; a luta pelo acesso igualitário a água e ao alimento saudável como direito humano, em detrimento da condição de mercadoria ou privilégio; a promoção da soberania alimentar e nutricional; a luta contra o desperdício de alimentos; o direito do consumidor/comedor e a qualidade dos alimentos; o fomento à Agroecologia, a agricultura familiar e aos sistemas agroalimentares sustentáveis; a alimentação redefinindo fronteiras entre os meios urbano e rural; a violação do direito humano a uma alimentação adequada e saudável para determinadas minorias – negros, indígenas, população de rua, população do meio rural, sem terras, imigrantes-, bem como o agrobiopoder, a apropriação e a privatização de recursos genéticos alimentares e a subordinação da pesquisa e do desenvolvimento tecnológico alimentar aos imperativos do mercado.


O que temos pra comer hoje?


Os sociólogos da alimentação Allan Beardsworth e Thereze Keil definiram três tipos de menus para compreender como selecionamos nossos alimentos hoje: os menus morais que definem a seleção da comida a partir de critérios étnicos, políticos, ecológicos, ambientais e éticos e os menus racionais, baseados no modelo de racionalização da dieta que promovem a escolha alimentar a partir de critérios científicos para a perda peso e aumento da performance física ou mental. Esses menus racionais se subdividem em menus de conveniência cujo objetivo é minimizar o tempo dedicado ao ato de alimentar-se; os menus econômicos que tem no custo o delineador das escolhas alimentares e os menus hedonísticos que tem como foco da escolha o prazer gustatório.


A perspectiva ideológica do Nutricionismo, termo criado por Gyorgy Scrinis, que reduz a comida a seus componentes bioquímicos, dialoga com essa ideia de racionalização da dieta, promovendo uma alimentação individualizada, desprovida de valores culturais e funções sociais. Fortalece também o fenômeno da medicalização da Nutrição impulsionado pela ideia de saudabilidade do corpo magro e de um modelo interventivo e gordofóbico que contribui para a construção do que a nutricionista Lígia Santos chama de “lightização da existência” sob uma “nova ordem corporal".


Comemos atualmente sob um processo chamado de desritualização da comida que se evidencia com a flexibilização de horários, locais e ritmos alimentares, não restrita ao meio urbano.


Desde Durkheim que proclamou que refeições compartilhadas criam um vínculo de parentesco artificial e podem produzir os mesmos efeitos que uma origem comum, muitos cientistas sociais discutem a relação entre comensalidade, convivialidade e sociabilidade humana. Janet Flammang, em seu livro “Taste of civilization”, analisa os rituais das refeições e de preparação de alimentos como bases para uma educação voltada à promoção da civilidade, ao cultivo da democracia e ao exercício da cidadania. A crise de civilidade que a autora percebe nos Estados Unidos é analisada sob a ótica da falta de tempo dedicada a arte do diálogo aprendida à mesa, no momento de compartilhar refeições. Para essa autora, reflexão e generosidade são sentimentos implícitos a comensalidade.


Na outra ponta da mesa há quem questione essa overdose social, termo usado pela designer holandesa Marina Van Goor que criou a rede de restaurantes europeia Eenmaal especializada em servir refeições para uma pessoa. O apelo dessa rede é que não é preciso estarmos conectados o tempo todo e não há nada de mal em comer sozinho. Essa experiência implicaria em um estado mais refinado de atenção e meditação voltado para os diferentes sentidos que envolvem o comer. O fato é que o comer só, o comer fora, na praça de alimentação do shopping ou comer do sistema food delivery envolvem variadas experiências sociais que revelam a autenticidade do nosso contrato com a contemporaneidade.


Comer hoje também envolve culpa. Sob a reflexividade alimentar contemporânea, Claude Fischler fala do paradoxo do prazer que confronta a busca da saudabilidade e encontra a culpa e o temor de comer. Na mesma direção, François Ascher reflete, a partir do seu conceito de hipermodernidade alimentar, sobre a liberdade do comedor eclético hipermoderno frente ao controle da indústria alimentar, a culpa de comer o que deseja e as restrições impostas por suas escolhas na forma de distúrbios como a obesidade e a anorexia.


Comer de outras formas


A chamada para um simpósio interdisciplinar sobre Alimentação e Cultura, realizado no inicio do ano de 2015, na Lancaster University, sob o tema “Eating Otherwise”[1], algo como “Comer de outra forma”, definiu bem a amplitude das relações possíveis de se estabelecer com a comida. As áreas de investigação do encontro incluíram: alimentação, literatura, cinema, TV e artes; alimentação e biopolítica; alimentação e tecnologia; alimentação e corpo; alimentação na filosofia; comida, lugares e memórias; alimentação e religião e movimentos alimentares canalizando para a produção de estudos de alimentos e animais; alimentos e sexo (comidas afrodisíacas, comida na pornografia, porn foods); comidas profanas e sagradas; comidas sinistras, subversivas e góticas (entomofagia, placentofagia, coprofagia e necrofagia); canibalismo; alimentação do passado, presente e futuro; alimentação pós-humana; alimentação, gênero e Teoria Queer; desordens alimentares e alimentação saudável; alimentação, prazer e culpa.


O feminismo fornece uma lente poderosa para abordar comida na contemporaneidade. Por meio dele compreende-se o papel da mulher no preparo da comida - dentro de casa - na reprodução da família e, ao mesmo tempo, revela o fenômeno da desfeminilização da cozinha com chefs e homens assumindo o fogão. Ajuda a compreender a relação entre dieta e estética corporal dentro de uma moldura de expectativas patriarcais e a insegurança alimentar mais exacerbada em mulheres que ainda privilegiam os homens na hora de dividir o alimento. O feminismo contribui para entender a carne a partir do simbolismo do sangue, da caça e do poder masculino inspirado em um hegemonia de gênero que dominou, inclusive, as fêmeas reprodutoras – vacas, galinhas, porcas, ovelhas - denunciado na visão feminista vegana de Carol Adams, em sua Política Sexual da Carne.


Aliás, o vegetarianismo é um legítimo propulsor da imaginação sociológica. Para além de uma dieta sem produtos de origem animal, o movimento/prática impulsiona estudos que colocam sob as mesmas lentes sociológicas o vegetarianismo da extrema direita neonazista e dos socialistas e anarquistas. O vegetarianismo dos ateus e agnósticos orientados pela compaixão ao reino animal é o mesmo dos deístas que relacionam o não consumo de carne a doutrinas cosmológicas e maior consciência espiritual? Como seria o diálogo das feministas veganas que rejeitam a carne junto com o simbolismo do patriarcado e as feministas carnívoras para quem comer a carne seria exatamente uma forma de desafiar estereótipos sexistas e manter a condição de igualdade entre homens e mulheres?


Para além da análise antropológica de alimentos com propriedades afrodisíacas em culturas tradicionais, ainda se produzem abordagens intrigantes sobre a relação entre comida e sexo. Ambos são fenômenos biológicos e culturais, prazerosos, nutritivos e permitem explorar variedades de receitas. A sedução da comida permite usa-la como metáfora sexual ou para enfatizar o erotismo e as desigualdades de gênero implícita nas ideias de ‘comer’ para manter relações sexuais, na expressão ‘mulher gostosa’ ou no fenômeno do funk carioca, as ‘mulheres frutas’ – maçãs, peras, morangos - em alusão ao seu formato corporal.


Gourmetizando


Na arena da gastronomia, há espaço para estudar e compreender muitos fenômeno contemporâneos. Por exemplo, os foodies, termo criado em 1984 pelos escritores ingleses Paul Levy e Ann Barr para designar pessoas, em especial homens, de alto nível intelectual que têm um agudo interesse por experiências gastronômicas refinadas e gourmets. A proliferação dos chefs celebridades, dos programas de televisão e do chamado turismo enogastronômico-cultural endossam essa tendência de gente refinada.


Eve Turow define a geração Yum formada por jovens estadunidenses obsessivos por comida e por receitas e experiências gastronômicas, sentimento causado pela privação sensorial que a era digital promove. A comida e a o comer fomentariam a emoção e os múltiplos sentidos que faltam aos solitários ‘gastronautas’ a frente das telas.


A gastronomia política, regional, responsável e ecológica – do “prato ao planeta”, no clamor do Slow Food - aproximam o estudo da alimentação de um “local de resistência identitária”, nas palavras de Jean-Pierre Poulain, ou seja, o meio rural onde se produz a alimentação e a história dos bastidores da comida. É o resgate de um espaço que abriga agricultores familiares locais vivendo sob uma natureza pluridimensional e que pode produzir um senso de pertencimento, solidariedade e comunidade.


A revolução se faz com o garfo


O ativismo alimentar é considerado por Kathy Rudy como um dos movimentos sociais mais vibrantes da atualidade que se debruça em questões que vão além da comida e que complexificam a relação do ser humano com os outros reinos da natureza.


O fenômeno apresenta-se como uma vertente do ativismo político que emergiu na década de 1960 como uma perspectiva mais porosa, comprometida e criativa de fazer política tomando os espaços públicos e envolvendo os cidadãos em estratégias políticas do cotidiano. Nesse caso, o consumo de alimentos.


O ativismo alimentar surge como um guarda chuva interdisciplinar que abriga diferentes movimentos e discussões de amplo alcance nas sociedades nos quais a comida aparece como elemento transversal, como a Agroecologia e a Agricultura Familiar; o movimento de Segurança Alimentar e Nutricional; a Agricultura Orgânica; o Comércio Justo (Fair Trade); o Slow Food; o Locavorismo; o Vegetarianismo/ Veganismo; o Freeganismo, as Panc, o Banquetaço, as Comunidades que Sustentam a Agricultura (CSAs), entre outros. São muitos movimentos, dos mais sólidos aos ainda emergentes e efêmeros, que merecem ser compreendidos nas suas estratégias de questionar o sistema agroalimentar hegemônico em diferentes dimensões.


O consumerismo alimentar coloca em evidência a politização do consumidor de alimentos, um consumidor cidadão que faz escolhas alimentares a partir de premissas socioambientais e éticas.


Sob as égides conceituais do ativismo alimentar, novas qualidades adjetivam o já polissêmico conceito contemporâneo de alimento saudável: ecológico; orgânico; ético; local; alimento colonial (e decolonial); sustentável; tradicional; seguro e adequado; limpo; puro; alimento amigo do animal; alimento feito por mulheres; alimento afetivo... só para citar alguns que contribuem para fomentar a confusão dos comedores.


Não se pretende aqui esgotar as temáticas nos campos social e cultural da comida, mas mostrar a fertilidade e a variedade das temáticas. Diante de tanta ebulição não há dúvida que a comida ganha notoriedade e mais legitimidade na arena das Ciências Humanas e Sociais e que o cientista social interessado em alimentação deve cultivar um fôlego para transitar em tamanha diversidade de disciplinas e áreas de estudo.



NOTAS


* Texto baseado no artigo: AZEVEDO, E. Alimentação, Sociedade e Cultura: temas contemporâneos. Sociologias, Porto Alegre, ano 19, no 44, jan/abr 2017.


[1] Chamada do Interdisciplinary Symposium on Food and Culture, realizado em 28 fev a 1o. mar de 2015 na Lancaster University, Inglaterra, disponível em: https://eatingotherwise.files.wordpress.com/2014/08/eating-otherwise-cfp001.pdf Acesso em: 26 Mar 2015.



REFERÊNCIAS


ASCHER, François. (2005), Le mangeur hypermoderne. Odile Jacob.


ADAMS, Carol J. (2015), Política sexual da carne: A relação entre o carnivorismo e a dominância masculina. Alaúde.


FISCHLER, Claude. (1990), Lhomnivore: le goût, la cuisine et le corps.


POULAIN, Jean-Pierre; CONTE, Jaimir. (2004), Sociologias da alimentação.


POULAIN, Jean-Pierre. (2018), Dictionnaire des cultures alimentaires. Presses Universitaires de France.


RUDY, Kathy. (2012), "Locavores, feminism, and the question of meat". The Journal of American Culture, vol. 35, no 1, p. 26-36.


TUROW, Eve. (2015), A Taste of Generation Yum: How the Millennial Generation´s Love for Organic Fare, Celebrity Chefs and Microbrews Will Make or Break the Future of Food. Pronoun.




Como citar esse texto: AZEVEDO, Elaine. (2020), "Sociologia e Alimentação: um resumo do debate". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/05/11/CUIDADO-TRABALHO-DOMESTICO-E-SERVICOS-ESSENCIAIS



Elaine de Azevedo é Doutora em Sociologia e Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

Editora Responsável: Simone Gomes


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