VULNERABILIDADE E ABANDONO: A SITUAÇÃO DAS POPULAÇÕES MIGRANTES E REFUGIADAS FRENTE À CRISE DA COVID
Quando o paciente zero da Covid-19 surgiu na China, em novembro de 2019, o mundo contava com cerca de 272 milhões de migrantes[1]. Dentre eles, refugiados, solicitantes de refúgio, migrantes econômicos e pessoas indocumentadas. Em condições relativamente normais, a existência desses grupos já é permeada por circunstâncias perigosas, nas quais a omissão dos líderes mundiais é prática comum. Campos de refugiados, prisões disfarçadas de centros de processamento de solicitações de asilo, recrudescimento no monitoramento de fronteiras, marginalização nas cidades e exclusão social são alguns dos problemas diariamente enfrentados por migrantes. A chegada da pandemia do novo coronavírus apenas explicitou e asseverou a vulnerabilidade de uma população cuja mobilidade coletiva é estratégia de sobrevivência.
Em Paris, em Calais, em Roma, em Madrid, na fronteira entre o México e os Estados Unidos, entre a Turquia e a Síria, em Bangladesh e em muitos outros lugares, migrantes e solicitantes de refúgio permanecem em um lockdown ao contrário. Não dentro dos próprios países de origem, pois desses tiveram que fugir para proteger suas vidas e integridade física, mas em regiões suspensas, marcadas por uma temporalidade que se torna cada vez mais permanente. São espaços precários de existência que se conformam em fronteiras domésticas e internacionais. As divisões internas marcam espaços de exclusão dentro de um país, especialmente em grandes cidades; as internacionais operam como barreiras, muitas vezes sólidas e incontestáveis, que ressaltam o rechaço dos Estados às populações migrantes. Em razão disso, essas populações andam em bloco, em caravanas, em redes, pois assim protegem-se uns aos outros, tanto das ameaças centralizadas, representadas pela ação estatal, quanto das difusas, ou seja, dos atos de violência que encontram em suas jornadas de migração.
Enquanto as autoridades de saúde mundiais urgem para que as pessoas não se movam, fiquem em casa e deixem de circular tanto dentro quanto fora dos países[2], as populações migrantes têm ameaças mais concretas caso deixem de migrar. A escolha, portanto, é entre buscar uma nova possibilidade de vida, ou padecer em uma realidade local mais adversa. Os sírios que buscam refúgio na Europa, por exemplo, chegam a passar anos nessa jornada. A extensão temporal da travessia aumenta também a exposição a riscos. Em meio à pandemia, que requer o isolamento social como uma das principais medidas de precaução ao contágio, as pessoas migrantes não podem se dar ao luxo de manter sequer alguns metros de distância segura, seja porque vivem em campos de refugiados abarrotados, ou em centros de processamento de solicitações que mais parecem prisões, seja porque o migrar em conjunto, em caravanas, é medida que garante um mínimo de segurança à vulnerabilidade de ser atacado por muitos lados.
Nos últimos dois meses, várias medidas de recrudescimento de fronteiras foram adotadas em diferentes continentes. Isso se explica pelo fato de que o novo coronavírus é um vírus de contágio rápido. Num mundo interligado, no qual as distâncias se tornam relativas em razão da facilidade com que muitas pessoas viajam, não é surpreendente que um vírus que surgiu em um mercado de peixes no sul da China tenha, em poucos dias, sido encontrado nos Estados Unidos e em países europeus. Em razão disso, as viagens internacionais e a circulação de pessoas foram drasticamente afetadas pela pandemia. Entretanto, junto com medidas de segurança para o controle da disseminação da doença, muitos Estados têm implementado normas que dificultam o acesso de migrantes e refugiados a um território onde suas vidas e integridade física estejam protegidas. Não há como comparar uma viagem turística, ou mesmo uma viagem profissional, que pode ser cancelada ou postergada, com a jornada de populações que não se encontram na segurança de seus lares e que, ademais, estão vulneráveis ao próprio vírus.
Três em cada quatro países do globo impuseram medidas de restrição de mobilidade humana em razão do surto da Covid-19 (REIDY, 2020). Muitos desses países, porém, se utilizam dessas medidas para asseverar restrições aos mais vulneráveis e implementar a xenofobia como uma espécie de política de governo – impedindo a proteção de migrantes e solicitantes de asilo, por exemplo. Em 21 de março, os Estados Unidos (país que conta com o número mais alto de pessoas infectadas pelo novo coronavírus) deportaram 6300 migrantes do seu território com base nas medidas de restrição à imigração implementadas em razão da pandemia[3]. A normativa de emergência de saúde pública do Centro de Controle e Prevenção de Doenças bane a entrada de estrangeiros, considerados um risco grave à disseminação de doenças contagiosas. Não há análise sobre a seriedade das ameaças sofridas pelos migrantes aglomerados na fronteira do México com os Estados Unidos, nem do impacto que essas medidas de restrição de entrada e de deportação podem trazer à segurança dessas pessoas. A grande maioria desses migrantes é originária da Guatemala, de Honduras e de El Salvador. Em razão disso, recebem parca ou nenhuma proteção das autoridades mexicanas.
Na Europa, a situação é similar. A Turquia, país que recebeu o maior número de solicitantes de refúgio e refugiados desde a deflagração do conflito na Síria, havia assinado um acordo com a União Europeia se comprometendo a limitar o número de migrantes que deixavam aquele país para solicitar asilo na Europa. Em fevereiro de 2020, devido ao surto da Covid-19, a Turquia anunciou a abertura de suas fronteiras, já que não seria capaz de manter os migrantes em seu território sem comprometer a saúde de seus nacionais[4]. A Grécia, país que faz fronteira seca com a Turquia, recrudesceu estruturas de monitoramento a fim de impedir a entrada de refugiados e migrantes forçados em seu território. O que se vê hoje é a presença de milhares de migrantes aglomerados na fronteira entre os dois países, sem qualquer atenção social ou sanitária.
Muitos países da América Latina também impuseram medidas de fechamento de fronteiras. Essas ações afetaram em cheio milhões de venezuelanos que tentam ingressar em países como o Peru, a Colômbia, o Brasil, o Equador e a Argentina, e fizeram com que mais pessoas ficassem presas em regiões de fronteira sem condições mínimas de assistência sanitária. Um perigo constante, já que as grandes aglomerações são ambiente fértil de propagação do vírus[5].
No Brasil, a situação é agravada pelas circunstâncias políticas em que o país se encontra. O tratamento dado pelo governo federal à crise da Covid-19 vai de encontro às medidas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que preconiza isolamento social, testagem em massa e medidas rígidas de higiene e de proteção. Não há muitas certezas com relação às formas mais adequadas de fazer frente à pandemia do novo coronavírus, mas uma delas, o isolamento social, emerge com fundamento em estudos científicos baseados em análises de modelos que estimam a severidade do contágio da doença com e sem a imposição de tal medida de restrição de circulação. Não é por acaso que a grande maioria dos Estados afetados pela pandemia declarou isolamento social, nas formas de quarentena e/ou lockdown, por um período médio de três meses (VERITY et al., 2020). Porém, ao contrário do que preceitua a comunidade científica e a OMS, o governo federal brasileiro, por meio de manifestações recorrentes do Presidente da República[6], insta a população a voltar ao trabalho, estabelecendo uma falsa dicotomia entre a proteção da vida e manutenção da economia.
Neste contexto político e sanitário turbulento, as populações migrantes são, mais uma vez, corpos esquecidos, relegados à precariedade e à desinformação. A situação dos refugiados e solicitantes de refúgio venezuelanos ilustra o drama de milhares dessas pessoas. Roraima é o estado brasileiro que recebe, hoje, o maior contingente de solicitantes de refúgio da Venezuela – mais de 50 mil cidadãos daquele país solicitaram refúgio no estado em 2018. A estratégia de enfrentamento da situação foi o estabelecimento de um programa de interiorização de refugiados que foi levado a cabo pela Operação Acolhida[7]. Com o início da pandemia, os obstáculos nos processos de interiorização se intensificaram em razão das limitações à circulação no território nacional. Nesse contexto, as tentativas de estabelecimento de normativas mais restritivas no que concerne à circulação e ao controle da migração no país também se acumulam. Uma delas é o Projeto de Lei 1056/2020, apresentado pelo Senador Chico Rodrigues (DEM/RR) no final de março. O texto propõe a criação de campos de refugiados nas fronteiras brasileiras (BRASIL, 2020). Além de incorrer em inconstitucionalidade e ilegalidade, o texto do PL também vai de encontro às recomendações do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) para a região da América Latina. De acordo com Eduardo Stein, Representante Especial Conjunto do ACNUR-OIM para Refugiados e Migrantes Venezuelanos, a existência de campos de refugiados não constitui uma tradição nacional, regional ou continental, sendo desconsiderada como uma opção viável no caso dos venezuelanos[8].
Em circunstâncias normais, os campos de refugiados não representam solução ideal para o tratamento das pessoas migrantes e refugiadas. Esses espaços precários, que costumam durar mais do que seria necessário, segregam populações já vulneráveis e desassistidas e tornam os processos de integração virtualmente inexistentes, além de limitarem direitos e liberdades (ACNUR, 2014). Entretanto, na justificação do referido PL, ao contrário do que preceitua a Agência, o Senador requer a aprovação da “instituição de campos de refugiados nas fronteiras brasileiras, buscando desafogar os serviços públicos dos estados afetados e a combater a permanência ilegal dos imigrantes que aguardam pelo seu reconhecimento como refugiados” (BRASIL, 2020). Além de incorrer em imprecisão técnica ao qualificar solicitantes de refúgio, que têm seu direito de permanência no território nacional garantido pela Lei n. 9.474/97 (Estatuto dos Refugiados), como imigrantes ilegais, resta clara a intenção de segregação dessas populações, que terão acesso dificultado a centros de saúde e a locais de registro e prestação de serviços de assistência social básica. Em tempos de pandemia, a criação de espaços precários de aglomeração de pessoas pode ter consequências dramáticas na disseminação do vírus, podendo causar o adoecimento e a morte de milhares de migrantes e refugiados.
Em Bangladesh, a situação dos Rohingya em campos de refugiados se prolonga no tempo. No Cox’s Bazar, campo no qual um milhão de pessoas se amontoam, não há informação suficiente para alertar os habitantes sobre os riscos do novo coronavírus. Além disso, as condições sanitárias são precárias. Impossível pensar em isolamento para uma população que se aglomera em 100 mil pessoas por quilometro quadrado (PINCHIN, 2020). ONGs internacionais, como a Save the Children, tentam realizar campanhas de informação sobre a necessidade de medidas de higiene e do uso de máscaras de proteção, mas obviamente não há material disponível para a distribuição em massa.
Além das situações de exclusão em que se encontram nas fronteiras e nos campos de refugiados, as comunidades migrantes vivendo em grandes cidades nos países de destino também são afetadas pela marginalização e pelo abandono. Tanto é assim que, nas fases iniciais de disseminação da Covid-19, as informações sobre medidas preventivas de higiene e isolamento eram fornecidas pelos Estados apenas na língua oficial, ignorando a barreira linguística imposta a muitos migrantes. Ainda mais grave é a situação dos migrantes indocumentados que, em muitos países, não têm acesso à saúde pública garantido.
O surto do novo coronavírus exige dos governantes medidas de enfrentamento coletivas e coordenadas, já que as fronteiras artificiais que conformam os Estados não impedem a mobilidade humana, especialmente aqueles movimentos forçados de pessoas que migram para proteger sua vida e sua integridade física. Assim, qualquer atuação isolada não é suficiente para conter o surto de uma doença extremamente contagiosa. Sob a coordenação do OMS, os Estados devem atuar em cooperação para que a doença seja controlada em todos os rincões do mundo, principalmente naqueles lugares recorrentemente esquecidos, nos quais vivem pessoas que não são consideradas cidadãs de parte alguma. De acordo com a professora Deisy Ventura,
se cada Estado adotar medidas por conta própria, em uma escala que pode ir da negligência ao exagero, sem levar em conta informações e recursos compartilhados por centros de pesquisa, agências internacionais e outros Estados, as possibilidades de controle da doença serão radicalmente diminuídas, enquanto as de causar danos desnecessários serão muito aumentadas (VENTURA, 2020).
As circunstâncias requerem a cooperação e o intercâmbio de informações entre Estados, Organizações Internacionais e centros de pesquisa. Não se pode pensar em uma solução para o problema da pandemia que passe por imunizar ou tratar apenas parte da população mundial ou apenas nacionais de um determinado Estado. Também é incorreto imaginar que manter hordas de refugiados e migrantes presos em espaços mínimos entre fronteiras é a solução adequada para a proteção dos nacionais de qualquer país. As pessoas seguirão migrando, cruzando fronteiras, a despeito da vontade dos Estados e da própria pandemia. Se esses movimentos não forem regulares e controlados, a ameaça de contágio persiste. Além disso, como sustenta Ventura (2020), a limitação de direitos e garantias fundamentais deve ser evitada, principalmente nos casos em que essa limitação gera uma ameaça ainda mais séria. Nesse sentido, a OMS ressaltou, em suas recomendações, a importância de evitar a discriminação e o estigma por conta da origem. Portanto, assim como ocorre com o tema das migrações forçadas, não há solução duradoura para a pandemia que não passe pela cooperação e pela solidariedade na atuação dos Estados. Resta saber se dessa vez os líderes mundiais aprenderão com a experiência.
NOTAS
[1] Migration Data Portal. IOM. Disponível em: https://migrationdataportal.org/?i=stock_abs_&t=2019
[2] Organização Mundial da Saúde. Coronavirus disease (COVID-19) advice for the public. Disponível em: https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/advice-for-public
[3] US-Mexico border: Thousands of migrants expelled under coronavirus powers. BBC News, 10/04/2020. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-us-canada-52244039
[4] As Turkey locks down, refugees are the first to suffer. The Economist, 23/04/2020. Disponível em: https://www.economist.com/europe/2020/04/23/as-turkey-locks-down-refugees-are-the-first-to-suffer
[5] Refugiados y Migrantes de Venezuela Durante la Crisis del COVID-19: mientras aumentan las necesidades, son esenciales más medidas inclusivas y ayuda. Comunicado conjunto ACNUR-OIM, 01/04/2020. Disponível em: https://www.iom.int/es/news/refugiados-y-migrantes-de-venezuela-durante-la-crisis-del-covid-19-mientras-aumentan-las
[6] Bolsonaro volta a criticar isolamento social contra o coronavírus. O Globo, 16/05/2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-volta-criticar-isolamento-social-contra-coronavirus-24430964.
[7] BRASIL. Operação Acolhida. Histórico. Disponível em: https://www.gov.br/acolhida/historico/.
[8] ACNUR descarta constitución de campos de refugiados en América Latina. El Nacional, 18/05/2019. Disponível em: https://www.elnacional.com/mundo/latinoamerica/acnur-descarta-constitucion-campos-refugiados-america-latina_282726/. ACNUR no considera campos de refugiados en América. Voa, 17/05/2019. Disponível em: https://www.voanoticias.com/a/venezuela-acnur-compos-refugiados-latinoamerica-eduardo-stein-entrevista-inmigracion/4922303.html.
REFERÊNCIAS
ACNUR. (2014), “Política de ACNUR de alternativas a los campamentos”. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/BDL/2015/9905.pdf.
BRASIL. (2020). Senado Federal. Projeto de Lei 1056/2020. Acrescenta dispositivo à Lei no 9.474, de 22 de julho de 1997, para dispor sobre a instituição de campos de refugiados nas fronteiras brasileiras. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8078576&ts=1587077432636&disposition=inline.
REIDY, Eric. (2020), “The COVID-19 excuse? How migration policies are hardening around the globe”. The New Humanitarian Journal. Disponível em: https://www.thenewhumanitarian.org/analysis/2020/04/17/coronavirus-global-migration-policies-exploited
PINCHIN, Karen. (2020), “Facing COVID-19 in the World’s Largest Refugee Camp, Young Rohingya Help Prepare for an Outbreak”. Frontline. Disponível em: https://www.pbs.org/wgbh/frontline/article/covid-coronavirus-rohingya-coxs-bazar-bangladesh/
VENTURA, Deisy. Coronavírus: não existe segurança sem acesso universal à saúde. Jornal da USP, 31/01/2020. Disponível em: https://jornal.usp.br/artigos/coronavirus-nao-existe-seguranca-sem-acesso-universal-a-saude/
VERITY, Robert et al. “Estimates of the severity of coronavirus disease 2019: a model-based analysis”. Lancet Infect Dis 2020. 30/03/2020. Disponível em: https://www.thelancet.com/pdfs/journals/laninf/PIIS1473-3099(20)30243-7.pdf.
O livro de Laura Sartoretto Direito dos refugiados: do eurocentrismo às abordagens de Terceiro Mundo está disponível para compra no site da Livraria da Travessa.
Laura Madrid Sartoretto é Doutora e Mestra em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Mestra em Direito Internacional Público pela University College London. É membro da Cátedra Sérgio Vieira de Mello da UFGRS e trabalhou em diversos projetos com imigrantes e refugiados na Inglaterra, na Itália e no Brasil. É autora do livro Direito dos refugiados: do eurocentrismo às abordagens de Terceiro Mundo, publicado pela Arquipélago Editorial.
Como citar esse texto: SARTORETTO, Laura. (2020), "Vulnerabilidade e abandono: a situação das populações migrantes e refugiadas frente à crise da Covid-19". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/05/25/VULNERABILIDADE-E-ABANDONO-A-SITUACAO-DAS-POPULACOES-MIGRANTES-E-REFUGIADAS-FRENTE-A-CRISE-DA-COVID-19
Editora Responsável: Vitória Gonzalez