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Marianna Albuquerque

NOVAS GUERRAS E PRÁTICAS: OS CONFLITOS ARMADOS CONTEMPORÂNEOS


Guerra e Paz, de Candido Portinari (1956). O trabalho foi encomendado pelo governo brasileiro para presentear a sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, onde os painéis foram instalados no hall de entrada, com acesso restrito ao público.




Nas ciências humanas, afirmar que algo é consensual é em si um contrassenso à ideia de dinamismo e subjetividade que este campo apresenta como uma de suas características principais [1]. Em seus subcampos, também há a impossibilidade de afirmar com precisão que determinado tema ou conceito é aceito por todos. Contudo, nas Relações Internacionais, há algo que se aproxima de uma convergência máxima: a afirmação de que a guerra ocupa um papel central na formação, expansão e manutenção da ordem internacional. Por decorrer historicamente do contato entre diferentes, a guerra é uma instituição internacional, e auxiliou a consolidação de práticas e expectativas nas relações entre Estados. Ainda assim, a concordância é exclusivamente sobre o papel simultaneamente criativo e destrutivo da guerra, e não sobre suas origens, mecanismos ou efeitos.


Para as Relações Internacionais, o sistema de Estados foi ele próprio produto de um conflito [2], a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). Com a assinatura do Tratado de Vestfália, que consolidou o fim da contenda, a observância do direito de liberdade religiosa e de não intervenção nos assuntos internos dos outros Estados originou o conceito de soberania, central para a estruturação do Estado-nação. Por ter sido uma guerra entre impérios europeus, em um contexto histórico circunscrito, o mito de origem do sistema internacional moderno é vinculado a uma ideia de guerra que corresponde a manifestações exclusivas do fenômeno.


Dessa forma, a guerra nos parâmetros europeu e ocidental não é um fenômeno universal, e sim uma experiência particular. A universalização dessa particularidade tornou agudo um eurocentrismo ainda prevalente nos estudos de segurança e na formação de conceitos relacionados (Badie, 2014). Um exemplo é a definição clássica de guerra, fundamento dos estudos de Relações Internacionais, escrita por Carl von Clausewitz. De acordo com o militar prussiano, a guerra é um choque entre grandes potências e um atributo do Estado. Por estar vinculada à condução dos objetivos governamentais, a guerra é a continuação da política por outros meios – apenas uma entre diversas formas de solucionar diferenças (Clausewitz, 1982). Esta é um choque de massas vivas, marcada pela militarização e pela lógica de um jogo de soma zero: a minha vitória gera uma derrota na mesma proporção ao meu inimigo. Nesse sentido, as guerras de descolonização introduzem uma nova gramática dos conflitos internacionais (Badie, 2014).


Outro exemplo da influência do pensamento ocidental para a teorização da guerra foram os debates sobre as possíveis justificativas morais para o conflito. Inicialmente proposta na era pré-Cristã, a moderna teoria da guerra justa foi fortemente influenciada por Santo Agostinho e São Thomas de Aquino. Ela possui, portanto, uma base religiosa e filosófica: conflitos armados precisam ser moralmente aceitos e se enquadrar em um determinado código moral de conduta (Valença, 2016). Em termos contemporâneos, isto significa que a guerra para ser moralmente aceita precisa se adequar ao jus in bellum (direito na guerra) e ao jus ad bellum (direito à guerra). Como a produção de normas também é um campo em disputa e é comumente concentrada nas mãos daqueles que possuem poder, o campo do direito internacional humanitário e as regras de legitimidade da guerra também derivam de uma concepção ocidental e liberal sobre destinatários de direitos.


Com isso, guerras regulares eram aquelas que se desenvolviam em conformidade com as regras estabelecidas: entre Forças Armadas nacionais, com distinção imediata entre combatentes e civis, obediência ao direito internacional e demarcação da área de conflito. À esta “regularidade vestfaliana” (Tenembaum, 2014), opõem-se as guerras irregulares – também chamadas de assimétricas –, na quais ao menos uma das partes em conflito é não-estatal. Erroneamente, costuma-se afirmar que essa modalidade de conflito é recente, do final da Guerra Fria, mas conflitos irregulares já eram identificados em obras clássicas, a exemplo da teoria do partisan de Carl Schmmit (idem, 2014).


A “novidade” do século XX não é a irregularidade, mas sim a extensão de seu uso. O marco de ruptura com a guerra clássica pode ser localizado, inicialmente, na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Com o advento de armas nucleares, tornou-se impensável manter a guerra entre potências como uma prática recorrente [3]. O primeiro sinal de adaptação foi que conflito saiu da lógica de choque de potências e se deslocou para as periferias, com o emprego das guerras por procuração. Por conta da impossibilidade de realizar guerras regulares envolvendo potências nucleares, as guerras por procuração adotaram práticas irregulares. Além da devastação de vidas, sociedades e da economia de países em desenvolvimento, a transferência dos campos de batalha do Norte para o Sul reforçou a narrativa intervencionista do white saviorism [4].


No pós-Guerra Fria, os estudos sobre guerra e segurança foram influenciados pelo livro “New and Old Wars: Organised Violence in a Global Era”, publicado em 1999. No trabalho, Mary Kaldor considera que as novas guerras seriam aquelas realizadas no âmbito doméstico dos Estados, com o envolvimento de grupos civis. Assim, não é verdade que estas sejam realmente uma novidade, mas a autora defende que a proliferação contemporânea de guerras irregulares possui uma vinculação com o enfraquecimento do papel do Estado como enunciador legítimo de normas.


Por essa lógica, a fraqueza do Estado ocasiona déficits sociais e políticos, que geram sociedades anômicas. A ausência da garantia da segurança individual e coletiva aos cidadãos por parte do Estado culmina em uma violação do contrato social que o fundou, e os indivíduos deixam de identificar com precisão de onde emanam as ordens legítimas. É a reinvenção da guerra enquanto uma patologia social (Badie, 2014). A sensação de vazio é maximizada em um mundo globalizado, no qual comparações com outras sociedades são facilmente realizadas. Abre-se espaço, então, para contestações articuladas de baixo para cima e para a formação de grupos privados que assumem o papel de produtores e fornecedores de serviços, a exemplo das milícias. Percebemos, portanto, a necessidade de elaborar novas gramáticas para lidar com formas inéditas de conflito, em que se considere o caráter social e as consequências humanas da diversificação da violência.


Mesmo que em menor quantidade, os conflitos entre Estados também persistem e se perpetuam. Segundo Silva e Gomes (2016), podemos identificar dois fatores determinantes para as atuais e futuras disputas armadas inter-estatais: a) questões econômicas relacionadas com a disputa por recursos naturais, sua escassez e degradação ambiental; e b) questões ideológicas, religiosas e étnicas. Ambos ocasionam efeitos indiretos, como o aumento de migrações e perseguições que decorrem no aumento dos pedidos de refúgio. Em ambos os casos, ainda, a fragilidade das instituições estatais pode ampliar as chances de polarização social e risco de instabilidades.


Há, ainda, modalidades de agressão que podem envolver ou não a participação do Estado, e que desafiam a capacidade de resposta efetiva por fugirem dos padrões das normas internacionais. Nesse ponto, o diferencial é o vínculo estreito entre guerra e tecnologia. Podemos citar, como exemplo, as cyberguerras. Estas se caracterizam por atos de guerra contra serviços públicos, cometidos total ou parcialmente por meios informáticos, com fins geopolíticos. Exemplos de atividades que se enquadram nessa categoria são interferência em canais de comunicação ou de infraestrutura críticas, sabotagens, espionagem e manipulação da opinião pública. Os primeiros casos foram creditados à Rússia, em ataque à Geórgia e à Estônia, em 2007, e aos Estados Unidos e Israel, que implementaram o Programa Stexnet (2012) para interferir no programa nuclear iraniano (Douzet, 2014).


Nesse ínterim, a cyberguerra traz desafios sem precedentes, como a dificuldade de personificar a responsabilidade pelos ataques, principalmente porque o remetente pode ou não ser estatal. Há, ainda, uma questão jurídica: a qualificação de um cyberataque como um ato de guerra é um ato discricionário e subjetivo do Estado que o sofre, e as estratégias de resposta das guerras convencionais não se aplicam inteiramente ao cybesespaço (Lobato e Kenkel, 2015).


Apesar de não ter a pretensão de exaurir o tema, cabe apontar, ainda, outros elementos relacionados às “novas” guerras. Com o avanço das mudanças climáticas e a recorrência de ciclos de crises que provocam reprimarizações, a dependência econômica dos recursos naturais já provoca a potencialidade de eclosão de novos conflitos. É digno de preocupação também o aumento da circulação de armas leves, mais difíceis de serem monitoradas pelos Estados. Em conflitos, são estas as que mais matam, e uma parte significativa dos arsenais de grupos não estatais são modelos antigos extraviados dos inventários oficiais, sem rastreio e sem segurança de manuseio. No campo da tecnologia, as recentes intervenções no Oriente Médio mostram o emprego de drones e de práticas de guerras de precisão, que também fogem do arcabouço legal vigente [5]. Por fim, é necessário atentar para o desenvolvimento de tendências de privatização da guerra, com o envolvimento de multinacionais e mercenários.


Referências


ARONSON, B. The White Savior Industrial Complex: A Cultural Studies Analysis of a Teacher Educator, Savior Film, and Future Teachers. Journal of Critical Thought and Praxis, vol. 6, n. 3, 2017, pp, 36-54.


BADIE, B. Introduction: Guerres h’ier et d’aujourd’hui. In BADIE, B; VIDAL, D. (orgs.). Nouvelle Guerres: L’État du monde 2015. Paris, Édition La Découverte, 2014, pp. 11-23.


CLAUSEWITZ,C. Da Guerra. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982.


DOUZET, F. Cyberguerres et cyberconflict. In BADIE, B; VIDAL, D. (orgs.). Nouvelle Guerres: L’État du monde 2015. Paris, Édition La Découverte, 2014, pp. 11-23.


KALDOR, Mary. New and Old Wars: Organised Violence in a Global Era. Cambridge/Stanford: Polity Press/Stanford UP, 1999.


LOBATO, L.; KENKEL, K.M. A Ciberguerra é moderna! Uma investigação sobre a relação entre tecnologia e modernização da guerra. Contexto Internacional, vol. 37, n. 2, 2015, pp. 629- 660.


PERON, A.R.E; DIAS, R.B. ‘No Boots on the Ground’: Reflections on the US Drone Campaign through Virtuous War and STS Theories. Contexto Internacional, vol.40, n.1, 2018, pp. 53-71.


SILVA, A.; GOMES, M.S. Contemporary inter-state armes conflicts: factors and processes involved. In WOISCHNIK, J. (ed.). Might and Right in World Politics. Rio de Janeiro, Konrad-Adenauer Stiftung, 2016.


TENEMBAUM, E. Des guerres “nouvelles”? Petite généalogie des guerres irrégulières. In BADIE, B; VIDAL, D. (orgs.). Nouvelle Guerres: L’État du monde 2015. Paris, Édition La Découverte, 2014, pp. 43-53.


VALENÇA, M. The role of international law in the current upsurge of conflicts. In In WOISCHNIK, J. (ed.). Might and Right in World Politics. Rio de Janeiro, Konrad-Adenauer Stiftung, 2016.



NOTAS


[1] Uma versão em inglês desse texto pode ser lida em: https://www.e-ir.info/2020/05/26/new-wars-and-new-practices-in-contemporary-armed-conflicts/


[2] Há uma distinção conceitual entre guerra e conflito armado, pautado principalmente na quantidade de mortos. De acordo com as definições utilizadas por grandes bases de dados de segurança internacional, como o Sipri e o Upsala Conflict Data Program, guerra é um conflito armado que opõe, pela conquista do território ou do poder, duas Forças Armadas, e ao menos uma pertence ao Estado, e que ocasiona ao menos 1000 mortes em um ano. Como nesse texto o objetivo é mostrar a evolução do fenômeno, usarei os termos de forma intercambiável.


[3] Os Estados Unidos foram o primeiro país a tornar pública a obtenção de armas nucleares, em 1945, após os bombardeiros às cidades japoneses de Hiroshima e Nagazaki. A União Soviética obteve poucos anos depois, em 1949. Atualmente, há nove países nuclearmente armados. Cinco destes são considerados “legítimos”, por terem construído seus arsenais antes da entrada em vigência do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), de 1968: Estados Unidos, União Soviética/Rússia, França, Reino Unido e China. Os outros quatro obtiveram seus arsenais às margens do TNP: Coreia do Norte, Paquistão, Índia e Israel.


[4] No sentido aqui empregado, o conceito de white saviorism descreve práticas nos quais indivíduos ou governos de países com população majoritariamente branca adotam narrativas de provedores de ajuda humanitária. Essa postura, muitas vezes acompanhadas de práticas intervencionistas, reifica desigualdades raciais e sociais, em uma espécie de “missão civilizatória” a países ou regiões menos desenvolvidas economicamente. De acordo com Aronson (2017), os white saviors buscam reconhecimento da boa ação e são socialmente recompensados por seus atos. A principal crítica é que estas ações pontuais desconsideram e reforçam a estrutura social e política que criou e que mantém o sistema de opressões e desigualdades.


[5] Desde o início dos anos 2000, os Estados Unidos incluíram os ataques aéreos por drones em sua estratégia militar. Inicialmente uma resposta aos ataques de 11/09, seu uso foi estendido para outros conflitos. Já foram realizados ataques desse tipo nos Síria, no Paquistão, na Somália e no Iêmen, por exemplo. Para saber mais, ver Peron e Dias (2018).



Marianna Albuquerque é Doutora em Ciência Política e Coordenadora do Observatório Político Sul-Americano (OPSA).

Contato: marianna_raa@yahoo.com.br

Instagram: @onuempauta

Como citar esse texto: ALBUQUERQUE, Marianna. (2020), "Novas Guerras e Práticas: Os conflitos armados contemporâneos". Horizontes ao Sul. Disponível em:https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/05/26/NOVAS-GUERRAS-E-PR%C3%81TICAS-OS-CONFLITOS-ARMADOS-CONTEMPOR%C3%82NEOS

Editora Responsável: Simone Gomes

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