DESIGUALDADES E DESOBEDIÊNCIA: MUDANÇAS CLIMÁTICAS E O DIREITO DE RESPIRAR QUE PRECISAMOS AGORA
Foto: Luiz Felipe Sahd, Flickr, 2018.
Há um mês chove todos os dias em Rosário, cidade de quatro séculos de história, separada por uma hora de distância da ilha de São Luís, Maranhão. Enquanto a terra se inunda e verdeia, os animais se esbarram, as árvores se sacodem e a água se reúne para encontrar algum destino, os pés se amontoam em frente à Praça da Igreja Matriz. Em uma corrente moderna, fazem fila para o Auxílio Emergencial [1]. As calçadas não dão conta, os bueiros não comportam, mas a obstinação teima em não dispersar ninguém.
Desde que a palavra pandemia foi ouvida na Região do Munim, norte maranhense que abriga a cidade centenária, as pessoas se dividiram entre sentidos e constatações: o invisível que suspende a normalidade, o calor-frio do olhar amigo, a novidade que está e não chega, o vazio das ruas de famílias, a estranheza com o novo vocabulário – isolamento, COVID, lockdown, álcool em gel. E, claro, a perplexidade da ausência da renda, da troca, da possibilidade da escolha. Os pés seguem e algumas mãos se estendem para aproveitar a água que não cessa – lavar por 20 segundos, dizem especialistas.
Nessa região, durante esse período, é comum que as águas se comportem de maneira a tocar a superfície e criar vida, como reclama a seca da maior parte do ano. Mas os murmúrios da fila observam. O planeta só pode estar dizendo alguma coisa. É claro que de chuva sabe Rosário, que em 1866 viu sua Igreja Matriz desabar pelas forças do céu. E dessa vez é o quê?
Na série histórica entre novembro de 2018 e abril de 2019, ainda que por presença dos fluxos de umidade da Zona de Convergência Intertropical [2], foram registrados variações incomuns e números inéditos nas previsões: segundo o Laboratório de Meteorologia do Núcleo Geoambiental da Universidade Estadual do Maranhão (NuGeo), as chuvas em novembro foram sete vezes mais fortes que o índice base em todo o estado; em janeiro, 62%; em março, somente na capital São Luís, choveu 75% acima da média esperada de 428 milímetros.
Nas estatísticas dos fenômenos naturais intensificados por mudanças do clima [3], a reflexão se volta para uma só questão: quem terá condições de enfrentamento e direitos garantidos em um contexto de vulnerabilidades? Segundo o Corpo de Bombeiros do Estado do MA [4], no cenário de 2019, 71 cidades registraram alagamentos, com 16 em estado de emergência pública e 120.847 pessoas afetadas. Em março de 2020 [5], com apenas um mês de chuva, foram 1.287 desabrigados e 1.169 desalojados.
Contudo, as águas não fazem força somente com a sua presença. A falta delas também pesa. As mudanças climáticas são observadas, sobretudo, nos paradoxos físicos entre a intensificação das chuvas e das secas mais prolongadas. Em outras regiões do Brasil, enquanto no Maranhão mais de 789 famílias foram impactadas pelas chuvas de abril de 2020, o estado do Paraná enfrenta uma das maiores estiagens já registrada em décadas, provocando impactos no acesso a alimentos e na agricultura, incluindo a agricultura familiar [6].
A Organização das Nações Unidas publicou, em março de 2020, a "Declaração da Organização Meteorológica Mundial sobre o estado do clima global em 2019" [7]. O relatório aponta que as inundações são um dos fenômenos climáticos extremos com maior número de afetados em escala global. À lista, soma-se ondas de calor, incêndios florestais, o aumento da temperatura dos oceanos, a elevação do nível do mar, alterações nos ecossistemas terrestres e marinhos, e efeitos como o aumento da fome, migrações e conflitos nos territórios.
Especificamente na área da saúde, os desequilíbrios climáticos são ainda mais alarmantes: a ONU elenca efeitos que incluem doenças como lesões associadas a fortes tempestades e enchentes; ocorrências de doenças transmitidas por mosquitos ou pela água; estresse e trauma mental por migração ou deslocamento, seguidos pela perda de meios de subsistência e propriedade; e aumento de doenças cardiovasculares e respiratórias pela poluição do ar.
Quando as mãos repousam sobre os braços cruzados, o mormaço cintila na pele que aguarda a sua vez. Há uma única agência bancária para o fornecimento do Auxílio Emergencial na cidade. Entre gotas que machucam, as máscaras estampam o imaginário do maranhense: Bob Marley que chega até o queixo, o futebol nacional, azulejos amarelos e azuis, mais cores do reggae. As máscaras têm gente: proteger-se é preciso, lavar as mãos é direito e respirar também.
Praça da Matriz. Rosário, Maranhão. Maio de 2020.
Angela Davis argumenta que a crise atual nos mostra as perversidades do racismo estrutural e a ineficiência do neoliberalismo econômico em garantir direitos básicos, como moradia, educação e saúde para a população. Em tempos de emergência climática atravessada por uma pandemia, observa-se que essas opressões se potencializam e aprofundam ainda mais as desigualdades de raça, gênero, sexualidade e classe que nos cercam.
Meses mais quentes e mais frios; chuvas que provocam desastres, secas que arriscam a produção e a colheita; pés que se amontoam, que ocupam cidades sem infraestrutura, sem segurança hídrica e energética, sem soberania alimentar, sem acesso a tecnologias do saber à distância e do mundo virtual, sem ar respirável. Entre as zonas rurais e urbanas, essas “ausências” se alternam e se encontram em pontos comuns. Que saúde os territórios – periferias, quilombos, aldeias, favelas, campo, terreiros, margens dos rios – podem desejar?
À medida que a fila se move, sai com seu auxílio um homem jovem com a estatura mediana, cabeça redonda, olhos pretos redondos de ponta puxada como um Tupi; uma mulher de cabelo crespo, cor preta, de braços longos, máscara de bolas azuis; outra mulher preta, a pele um tanto mais clara e mais rachada de sol, chinelo de dedo, saia comprida e traca [8] para segurar o calor. Uma pausa para inspirar o que se pode, depois da ansiedade do espaço fechado, da dúvida do saque, do alívio mental.
O contraste entre vida saudável e os impactos das mudanças climáticas expõe os desafios que possuímos não só em termos geracionais, mas enquanto civilização. Ao combinarmos essas ameaças aos riscos de uma pandemia, nota-se que há uma diferença de categoria entre vulnerável e vulnerabilizado(a), que merece ser pensada nas narrativas sobre justiça climática.
As populações mais periféricas são, na realidade, vulnerabilizadas pelo desenfreado modelo econômico atual, que tanto destrói a natureza, quanto se estabelece de maneira predatória. Pessoas estão vulnerabilizadas pela realidade político-econômica que altera os ecossistemas locais, que realiza constantes ameaças aos mais variados modos de vida e que não desenvolve estratégias de prevenção, cuidado e inclusão social. Estes são fatores cruciais para a eficácia de um sistema democrático, sustentável, saudável e seguro.
Há quanto tempo não nos fazemos perguntas como: quais políticas públicas garantem o acesso e circulação de alimentos mais baratos, orgânicos e nutritivos, essenciais para uma dieta saudável e imunológica; como o poder público tem discutido o tema da segurança hídrica e o acesso à água, item básico para os procedimentos de prevenção de doenças, sobretudo a lavagem das mãos; que medidas são urgentes para o alcance de metas concretas de redução de emissões de gases que poluem as cidades e que esgotam o ar tão disputado atualmente?
A vida em um mundo em transformação tem normalizado esses constrangimentos. De repente nos demos conta de que pessoas sobrevivem sem água tratada todos os dias. De que a cesta orgânica semanal poderia ser regra de todas/os, não só de alguns. De que a existência dos saberes tradicionais também é importante, uma vez que, na ausência de medicamentos, a medicina da terra garante o cuidado da mente, do físico e das relações comunitárias. De que a solidariedade é o cerne da sobrevivência coletiva, que nos assegura proteção e nos conecta uns aos outros quando da distância.
O pau-de-arara que se aproxima da Praça Matriz chega com mais trinta pessoas. Os tijolos espalhados nas calçadas, que abraçavam os pés para não tocar a lama, agora são assento marcado. Lá eles permanecerão no outro dia, na próxima vez, para os próximos pés, para outro alguém que vai chegar.
Lado a lado, os riscos e as oportunidades de um verdadeiro pós-hoje-diferente-de-agora se apresentam. As hipóteses são muitas. O clima pede um futuro que desobedeça a normalidade, que não encare a asfixia como um problema de estação. A sociedade exige uma desobediência que não compactue com os negacionismos, com o fascismo, com as máscaras que escondem o medo, com o racismo que dobra joelhos sobre as nossas cabeças.Como sugere Achille Mbembe, um hoje onde exista o direito universal à respiração.
Durante quatrocentos anos, Rosário foi uma cidade de fluxos migratórios diversos, pois sua proximidade com o Rio Itapecuru ensaiava melhores condições de vida e subsistência a quem chegava. Nessas terras, a adaptação é diaspórica: de algum jeito, embora o poder público se ausente, ou mesmo as epistemologias universais se distanciem, o conhecimento ancestral, os mistérios, a esperança e as histórias continuam resistindo.
NOTAS
[1] O Auxílio Emergencial é um benefício financeiro oferecido pelo Governo Federal Brasileiro e destinado aos trabalhadores informais, microempreendedores individuais (MEI), autônomos e desempregados, e tem por objetivo fornecer proteção emergencial no período de enfrentamento à crise causada pela pandemia do Coronavírus - COVID 19. Fonte: Caixa Econômica Federal.
[2] Zona de Convergência Intertropical é um cinturão de nuvens formado pelo encontro dos ventos alísios na faixa equatorial do globo. Provoca chuvas na região em que atua. Fonte: NuGeo-UEMA. Disponível em: <https://www.nugeo.uema.br/wp-content/uploads/2018/04/informe-JAN_18.pdf>.
[3] As mudanças do clima são provocadas pelo aquecimento da temperatura média do planeta em decorrência, principalmente, de atividades humanas que resultam na emissão e concentração de gases de efeito estufa na atmosfera, como o dióxido de carbono, óxido nitroso, etc. Esses gases poluentes são provenientes de diferentes fontes, como os combustíveis fosseis da indústria, de transportes, do desmatamento, dos padrões de vida que estabelecemos. A não redução de gases de efeito estufa provocará efeitos significativos para a sobrevivência dos ecossistemas e das populações.
[4] Fonte: O Estado do Maranhão. “Por causa dos temporais, 13 cidades em estado de emergência e mais de 120 mil afetados”. Disponível em: <https://imirante.com/oestadoma/noticias/2019/04/06/13-cidades-em-estado-de-emergencia-e-mais-de-120-mil-afetados/>.
[5] Fonte: Governo do Estado do Maranhão. “Bombeiros seguem retirando famílias de áreas afetadas por enchentes no Maranhão”. Disponível em: <https://www.ma.gov.br/agenciadenoticias/?p=273277>.
[6] Fonte: Central Única dos Trabalhadores (CUT). “Sem auxílio dos governos, Agricultores Familiares do Sul sofrem com seca e Covid-19”. Disponível em: <https://www.cut.org.br/noticias/sem-auxilio-dos-governos-agricultores-familiares-do-sul-sofrem-com-seca-e-covid-0557>.
[7] Disponível em: <https://library.wmo.int/doc_num.php?explnum_id=10211>.
[8] Palavra do dicionário maranhense para item que se usa no cabelo, como uma tiara.
REFERÊNCIAS
DAVIS, Angela. (2020), Interview, COVID-19 Chronicles with Angela Davis, ROAR. Disponível em: <https://roarmag.org/2020/05/11/covid-19-chronicles-with-angela-davis/>.
FANON, Franz. (2010), Os Condenados da Terra, Editora UFJF, Juiz de Fora.
MBEMBE, Achille. (2020), O direito universal à respiração, Mukanda, Buala. Disponível em: <https://www.buala.org/pt/mukanda/o-direito-universal-a-respiracao>.
MILANI, Carlos R. S. (2020), "Covid-19 between Global Human Security and Ramping Authoritarian Nationalisms". Geopolítica(s) Revista de estudios sobre espacio y poder, n 11, pp 141-151.
RIGOTTO, Raquel Maria; Aguiar, Ada Cristina Pontes; Ribeiro, Lívia Alves Dias. (2018), Tramas para a justiça ambiental: diálogo de saberes e práxis emancipatórias, Edições UFC, Fortaleza. Disponível em: <http://www.tramas.ufc.br/wp-content/uploads/2018/07/Tramas-para-a-Justi%C3%A7a-Ambiental-E-BOOK.pdf>.
UNTERSTELL, Natalie; STEC, Taciana. (2019), Leis climáticas dos estados brasileiros, Instituto Clima e Sociedade. Disponível em: < https://59de6b5d-88bf-463a-bc1c-d07bfd5afa7e.filesusr.com/ugd/d19c5c_1b1a5c5565e54dd2b421d815fca253b5.pdf>.
Leonildes Nazar Chaves é Maranhense, ativista e pesquisadora. Doutoranda e Mestre em Ciência Política (IESP-UERJ), integrante do Laboratório de Análise Política Mundial (Labmundo/Antena Rio), Pesquisadora Visitante do Centro de Estudos Latinoamericanos da Universidade da California – Berkeley, membro da Associação Brasileira de Pesquisadores(as) Negros(as) – ABPN.
Como citar esse texto: CHAVES, Leonildes Nazar. (2020), "Desigualdades e desobediência: mudanças climáticas e o direito de respirar que precisamos agora". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/06/01/DESIGUALDADES-E-DESOBEDIENCIA-
Editora Responsável: Luna Ribeiro Campos