OS "PRETEXTOS" DE GUEDES E AS REVOLTAS
Imagem: Marcela Lins
Em reunião com representantes dos setores de comércio e de serviços, no dia 12 de junho, o atual ministro da economia, Paulo Guedes, afirmou que o auxílio emergencial evitou um “quebra-quebra” no Brasil. O suposto intelectual do governo Bolsonaro prosseguiu em seu comentário com uma comparação com os Estados Unidos. O erro dos estadunidenses teria sido implementar um programa de auxílio entregue pelos correios e a demora, na chegada das cartas, teria causado uma “comoção social” que só precisou de um “pretexto” para explodir: “esse problema do assassinato do jovem negro”. Em sua análise, “não foi só um problema por racismo” porque o que está ocorrendo, nos Estados Unidos, é uma “explosão social” causada pelo governo Trump ao não ter tido a “prudência de jogar todas as camadas de proteção social”, ao contrário do que foi feito no Brasil, segundo o ministro.
É evidente que esse comentário é mais um movimento na disputa pela paternidade do programa de auxílio emergencial. Em um governo baseado na inação/destruição de políticas públicas e na construção de narrativas, faz sentido reivindicar os louros de uma política de emergência que tem permitido a subsistência, mesmo que precária, de cerca de 64 milhões de brasileiros. Essa disputa se dá em um momento de queda de popularidade de Bolsonaro, na qual analistas apontam que o auxílio teria sido um fator relevante para frear tal declínio.
Sabe-se o quanto é necessário deturpar os fatos para que o governo federal seja o pai de um programa que não quis implementar e que, quando se viu forçado, defendeu fornecer um benefício de apenas 200 reais. É necessário também distorcer a realidade para acreditarmos no discurso de Guedes, que sublinha a eficiência do governo em implementar rapidamente o programa. O sucesso do programa é duvidoso devido aos relatos de demora na avaliação do pedido, de pessoas que têm direito, mas veem o auxílio ser negado, de concessão de auxílios a 73 mil militares – que não têm direito por terem emprego público– e até mesmo de um pedido negado a uma capixaba por ser, segundo o sistema da Caixa, presidente da república –provavelmente mais indicado para o cargo. Porém, visto como Bolsonaro aceita os pequenos desvios da sua prole, não é de estranhar que mesmo um programa tão falho já seja um filho a ser disputado por esse governo.
Para além dessa disputa, há algo problemático na redução da complexidade da questão da revolta feita por Guedes. Na análise do economista liberal, seria possível encontrar uma causalidade simples e definitiva para os quebra-quebras: se o povo tem dinheiro para comida, logo não há motivos para uma “explosão social”. O comentário anterior sobre as documentadas falhas do programa em atender a todos já seria um bom contra-argumento a essa análise. A cínica defesa de que não há pessoas passando fome atualmente no Brasil e que essa situação não piorou com a pandemia só é possível no atual governo federal. Ademais, a historiografia nacional já demonstrou que a fome não é fator suficiente para a existência de uma revolta. Basta lembrarmos que o sertão nordestino já viveu vários momentos de escassez que não resultaram em saques e em “ações de massas” (NEVES, 2000). Para além da refutação empírica de um raciocínio tão simplista, vale retomar alguns aprendizados provenientes das teorias sociais sobre revoltas para melhor criticarmos a posição de Guedes.
Sabe-se que Thompson (1998), ao analisar os “motins da fome” do século XVIII na Inglaterra, defendeu que entender saques e quebra-quebras como uma resposta natural à fome é utilizar uma estratégia discursiva que se vale de um argumento biologizante para retirar dos que se insurgem a capacidade de agirem politicamente. Thompson chamou essa despolitização da questão de “visão espasmódica da história popular”: aquela que não pensa o sujeito popular como histórico. Nessa, os motins são “intromissões antes compulsivas que conscientes ou autoativadas: não passam de reações aos estímulos econômicos” (THOMPSON, 1998, p. 150). O discurso liberal de Guedes recorre ao argumento de que a revolta é fruto apenas do desespero frente à privação material e, portanto, não tem motivação e relevância política. Thompson fornece importantes subsídios para a negação dessa hipótese economicista e mecanicista que busca interpretar distúrbios como respostas automáticas de determinados contextos socioeconômicos. O seu enfoque nos padrões comportamentais e nos elementos culturais demonstra que é preciso algo mais do que isso – um algo mais que é central e não apenas um “pretexto”, como diz Guedes. Nesse sentido, a defesa é a de que as revoltas necessitam de uma “economia moral” na qual é preciso que os revoltosos realizem escolhas estratégicas baseadas em crenças de que têm direito daquilo que reivindicam. Se não houve quebra-quebra no Brasil na pandemia, até agora, Thompson defenderia ser preciso investigar os motivos dos sujeitos não decidirem por agir dessa forma, mesmo com uma população cada vez mais expropriada, e se isso está articulado com eles não considerarem tal ação legítima nesse momento.
Entretanto, é preciso ir além até mesmo de Thompson, pois as relevantes contribuições relevantes do historiador britânico podem também ocasionar na redução das revoltas a fatores predeterminados que nem sempre se dão nas múltiplas experiências históricas. Essa é uma ressalva que o próprio autor tinha em mente quando analisou a utilização de seus conceitos em outros contextos históricos. Assim, é possível defender que a questão da causalidade das revoltas está mal colocada – ainda mais se for com intuitos preditivos como os do ministro da economia, que ao refletir sobre a não existência do processo tem um raciocínio implícito que ousa prever quando podem ocorrer revoltas. Como um acontecimento sobredeterminado, a revolta pode sim ter suas determinações mais importantes identificadas e analisadas, porém apenas retrospectivamente. A sobredeterminação desses eventos aponta para a abertura do social que é composto por uma articulação de diferentes práticas e processos que não tem um princípio único que o guiaria teleologicamente (LACLAU & MOUFFE, 2001). A revolta deve ser vista como um excesso e, como tal, são problemáticos os esquemas causais que buscam reduzi-las a um padrão preestabelecido. Ela está articulada com o contexto econômico, o cotidiano vivido pelos seus participantes, os repertórios partilhados de ação coletiva, as múltiplas relações de poder e dominação, a percepção de legitimidade da ação, as decisões estratégicas realizadas no momento, os processos afetivos individuais ou coletivos e muitos outros fatores. Por isso, em vez de tentar predizê-las, percebê-las como um acontecimento sobredeterminado é um antídoto contra a retirada de sua potência política de apontar para novas configurações do social sempre que surgem (BENZAQUEN, 2020).
Além disso, é necessário ir mais a fundo na fala de Guedes para desenvolver como essa visão espasmódica tem traços demofóbicos e racistas. Não seria difícil contra-argumentar empiricamente que não é possível reduzir os relevantes, complexos e grandiosos protestos que vêm ocorrendo desde o assassinato de George Floyd, em 25 de maio, à ineficiência dos correios em entregar o auxílio emergencial dado pelo governo Trump. Mais importante agora, entretanto, é destacar o quão sintomático é o fato de que a “visão espasmódica” de Guedes esteja voltada para protestos relacionados com a violência contra corpos negros. Os sujeitos instintivos e animalizados são novamente os negros. A eles não caberia se manifestar politicamente porque, mesmo quando são assassinados sistematicamente pela polícia, suas demandas não são capazes de gerar revolta. O animal que se revolta sente apenas fome, nada mais. O resto vira apenas “pretexto”: um disfarce para o que é realmente importante e que cabe ao liberal definir.
Negando Thompson, Guedes ecoa em seu discurso alguns pontos formulados por Le Bon no final do século XIX. O liberalismo conservador de Le Bon (2016) tinha uma visão elitista e aristocrática do mundo e sua leitura das lutas sociais era bastante depreciativa. Seu nojo do povo se refletiu em uma concepção de que qualquer ação multitudinária, independente do conteúdo, é sempre prejudicial à coesão social e inferioriza o sujeito que dela participa. Essa visão demofóbica – no duplo sentido da palavra fobia como aversão e medo – estava atrelada a uma defesa de que a multidão deve ser governada, pois não sabe agir por si só. Vemos assim o quão proveitoso é para a equipe de Bolsonaro defender o caráter apolítico e instintivo das revoltas, pois conseguem, desse modo, mais um argumento a favor do projeto de implementação de um governo autoritário. Podemos, portanto, falar sim de um “pretexto”, mas dessa vez por parte de Guedes. A fraca capacidade de raciocínio da multidão é um argumento comum entre os autoritários que querem criticar a participação popular. Diante dessa suposta incapacidade inata da plebe em agir politicamente, só restaria o mando daqueles que não agiriam instintivamente. Não devemos, portanto, atribuir ao governo Bolsonaro nenhuma legitimidade de definir o político, pois o faz no intuito de expandir, ao máximo possível, sua dominação sobre os que o antagonizam.
Um último comentário deve ser feito a respeito do discurso aqui analisado. Frente a tantos absurdos ditos por Guedes, é de se perguntar como reagiram os representantes dos setores de comércio e de serviços que com ele se reuniram – informação não veiculada na mídia. Talvez sigam com a impressão que trata-se de um grande analista ou talvez relevem os impropérios como uma mera bobagem frente ao possível aumento da exploração dos seus empregados. De qualquer maneira, no consenso que estão tentando construir para derrubar o governo Bolsonaro, é preciso que não esqueçamos que o capital também se deixa ver na demofobia e racismo explicitados pelas palavras de Guedes.
REFERÊNCIAS
BENZAQUEN, Guilherme. (2020), Os saques em Abreu e Lima na greve da Polícia Militar de Pernambuco em 2014. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife.
LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. (2001), Hegemony and socialist strategy: towards a radical democratic politics. London: Verso.
LE BON, Gustave. (2016), Psicologia das multidões. São Paulo: WC Martins Fontes.
NEVES, Frederico. A multidão e a história: Saques e outras ações de massas no Ceará. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.
THOMPSON, Edward P. (1998), Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras .
Guilherme Benzaquen é doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE.
Contato: benzaquenguilherme@gmail.com
Como citar esse texto: BENZAQUEN, Guilherme. (2020), "Os "pretextos" de Guedes e as revoltas ". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/06/28/Ospretextos-de-Guedes-e-as-revoltas
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