O SUL GLOBAL COMO PROJETO POLÍTICO
Malala Andrialavidrazana, Figures 1799, Explorers’ routes , 2015.
O termo “Sul”[1] apareceu no vocabulário internacional em 1980 [2] e sua associação com o adjetivo “Global” ocorreu a partir do final da Guerra Fria, com a intensificação do discurso e das dinâmicas da Globalização (DIRLIK, 2007). Devido à referência aos países pobres e “em desenvolvimento” em contraste com os mais ricos e desenvolvidos, o Sul Global é herdeiro do conceito de “Terceiro Mundo”, [3] atualmente em desuso. Em ambas denominações, a classificação hierárquica entre os países considera o estágio de desenvolvimento econômico em direção à modernidade como parâmetro principal. Por sua vez, o entendimento de “modernidade” e “desenvolvimento” é fortemente associado à ideia de progressão ou evolução. Entretanto, assim como o Terceiro Mundo, o Sul Global não pode simplesmente ser visto como um conjunto de países não desenvolvidos e não modernos, localizados nas zonas ex-coloniais do globo. Existem diferentes significados para as duas categorias, as quais não devem ser compreendidas em um sentido exclusivamente geográfico ou territorial. Ambos termos foram capazes de projetar uma identidade geopolítica subalterna, reivindicando um diferente caminho de pertencimento no sistema e na sociedade internacional.
Dessa perspectiva, o Sul Global “funciona mais do que uma metáfora para o subdesenvolvimento” (DADOS; CONNELL, 2012, p. 13). [4] Em meados do século XX, o movimento anticolonial, a Conferência de Bandung (1955), o Movimento dos Não-Alinhados (1961) e a Conferência Tricontinental em Cuba (1966) são alguns exemplos nos quais o Sul Global tem suas origens e influências. Por isso, o conceito pode operar como “uma designação simbólica destinada a capturar uma imagem de coesão que emergiu quando antigas entidades coloniais se engajaram em projetos políticos de descolonização e avançaram para a realização de um internacional pós-colonial” (GROVOGUI, 2011, p. 176). Portanto, o termo alude à história do colonialismo e do imperialismo, assim como à violência sofrida pelos seus diferentes membros.
Por seu turno, os membros do Sul Global não são necessariamente estados-nações, podendo ser definidos “em termos sociais transnacionais” (HURRELL, 2013, p. 206) ou mesmo “como um conjunto de práticas, atitudes e relações” (GROVOGUI, 2011, p. 177). Tais entendimentos sobre o que é o “Sul Global” permitem pensá-lo como uma categoria sem comando central, escala definida ou forma exclusiva; desta forma, é importante reconhecer a grande variedade de atores, discursos, instituições e movimentos agrupados sob seu rótulo. O Sul Global não é uma entidade monolítica, coesa, coerente, homogênea e ausente de conflitos e interesses. Para propósitos analíticos e políticos, é fundamental não simplificar ou romantizar essa ideia. A existência de “Sul(s) no Norte” e de “Norte(s) no Sul” complexificam a reprodução do poder neocolonial e neoimperial, especialmente no contexto atual de aumento das desigualdades globais. Portanto, a rejeição do que está relacionado ao “Norte Global” pode ser uma posição perigosa e sua complexidade deve ser considerada do mesmo modo como em relação ao Sul.
Simplificação, redução e essencialização geralmente decorrem da mobilização de categorias binárias, tais como centro/periferia, ocidente/oriente, primeiro/terceiro mundo. Politicamente, o auto-reconhecimento de sua própria posição subalterna pode operar como um “essencialismo estratégico”, nos termos de Spivak (MORTON, 2004). Portanto, o imaginário em torno do Sul Global é identificado com a história das periferias, do “Oriente” e do Terceiro Mundo. A reafirmação da subalternidade não permite que a diferença colonial seja esquecida, sendo possível verificar posições de subalternidade em relação ao sistema internacional, à dinâmica econômica, às expressões culturais, às estruturas acadêmicas e aos sistemas de pensamento. O caráter eurocêntrico do poder imperial moderno criou a resistência contra a dominação ocidental (HURRELL, 2013).
No começo do século XXI, o Sul Global foi a categoria mais poderosa para apresentar alternativas de futuro à globalização neoliberal, assim como para revitalizar diferentes lutas por descolonização. De um ponto de vista da sociedade civil, “outra globalização é possível” foi o slogan do Fórum Social Mundial, em 2001; as denúncias contra o racismo reverberaram em diferentes instituições; a proteção dos direitos ambientais e das comunidades originárias se tornaram parte da agenda internacional; experiências de descolonização promoveram o “novo constitucionalismo latino-americano” e outras contestações ao redor do mundo, como as demandas por descolonização dos currículos acadêmicos, monumentos históricos e museus. A agenda de pesquisa colocada pela valorização das Teorias e Epistemologias do Sul tem reunido os debates sobre dependência acadêmica, geopolítica do conhecimento e outras lógicas do saber (CONNELL, 2007; SOUSA SANTOS & MENESES, 2010; ALATAS, 2003; MIGNOLO, 2002). Esses exemplos demonstram e reforçam o entendimento do Sul Global como um
Movimento multifacetado que enfatize a necessidade de uma comunidade internacional pós-colonial de interesse e que avance nos objetivos da igualdade, liberdade e mutualidade, na forma de um novo ethos de poder e subjetividade através da política externa, solidariedade internacional, responsabilidade consigo e com os outros, em uma ordem internacional livre dos legados institucionais do colonialismo (GROVOGUI, 2011, p. 176).
De uma perspectiva governamental e intergovernamental, a primeira década do século XXI testemunhou os poderes emergentes de países como o Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul e seu agrupamento em torno dos “BRICS”. A América Latina vivenciou o que ficou conhecido como “maré/onda rosa”, devido às eleições democráticas de lideranças à esquerda em vários países. Em um contexto mais amplo, a cooperação Sul-Sul foi estimulada como um novo paradigma de desenvolvimento proposto pela Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas “Forging a Global South”, publicado em 2003 (DIRLIK, 2007). De acordo com Gray e Gills (2016, p. 557), “a cooperação Sul-Sul tem sido um conceito chave e um conjunto de práticas em busca dessas mudanças históricas através de uma visão de benefício mútuo e solidariedade entre os menos favorecidos do sistema internacional”. O limite e a transformação provocado por este novo arranjo é claro: “o Sul teve que buscar desenvolvimento na economia capitalista global. Isso também significou uma mudança importante no conteúdo do desenvolvimento, distante de uma ênfase do desenvolvimento como desenvolvimento nacional (ou o desenvolvimento de toda a nação)" (DIRLIK, 2007, p. 15).
Devido aos obstáculos e reforço da agenda capitalista neoliberal global, a cooperação Sul-Sul tem um potencial limitado quanto à possibilidade de desvinculação ou de descolonização da ordem internacional pós-colonial. Em passada conjuntura, tal possibilidade animou a inflexão decolonial na dinâmica bipolar da Guerra Fria realizada pelo “Terceiro Mundo”. Contudo, hoje o contexto é bastante diferente. Se “as soluções dos problemas do Sul devem fazer parte das soluções globais” como apontou Dirlik (2007, p. 15), a ausência de alternativas fora da competição orientada pelo livre-mercado e da ideologia do neoliberalismo oferece possibilidades reduzidas na construção de novos caminhos ao desenvolvimento, assim como o questionamento de seu modelo principal ou mesmo de sua necessidade. Além disso, os diferentes constrangimentos estruturais da ordem internacional pós-colonial – incluindo o próprio modelo estadocêntrico – despertam desconfiança das vozes mais críticas e radicais, as quais enxergam o “Sul Global” como um produto do próprio “Norte Global”.
O Sul Global é um projeto político permanentemente em disputa por forças progressistas e regressivas da sociedade internacional multipolar. Atualmente, ele possui muitos desafios para permanecer como projeto político indispensável em direção a um mundo mais justo e igual. A retração das democracias junto ao ressurgimento do fascismo, a pandemia e a percepção das consequências do Antropoceno estão modificando rapidamente a já frágil ordem internacional forjada pós-1989. A reconstrução da ideia de humanidade, a continuidade dos projetos de descolonização, a retomada da democracia e o enfrentamento do neoliberalismo são tarefas profundas, urgentes e desafiadoras para o Sul(s).
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A versão em inglês deste texto está disponível em: https://www.e-ir.info/2020/07/03/the-global-south-as-a-political-project/?preview=true&_thumbnail_id=85885
NOTAS
[1] Anteriormente, o termo “sul” já havia sido utilizado em diferentes situações para descrever posições marginalizadas. Em 1943, a ilustração do mapa América Invertida feita pelo artista uruguaio Joaquín Torres García recriou o imaginário subalterno com sua proposta “nosso norte é o sul”.
[2] A referência é ao relatório intitulado “Norte-Sul: um Programa para Sobrevivência”, escrito pela Comissão Independente de Assuntos de Desenvolvimento Internacionais”, constituída em 1977 e presidida por Willy Brandt.
[3] Alfred Sauvy cunhou o termo em 1952 que se refere à parte do mundo não identificada com os projetos de desenvolvimento da modernidade capitalista, nem da comunista – apesar da influência do bloco socialista sobre diferentes movimentos de libertação nacional. A tradição terceiro-mundista é associada à agenda da esquerda em busca da autonomia, independência e autodeterminação.
[4] Todas as traduções são próprias e livres da autora.
REFERÊNCIAS
ALATAS, Syed Farid. (2003), "Academic dependency and the global division of labour in the social sciences". Current Sociology, v. 51, n. 6, pp. 599-613.
DADOS, Nour; CONNELL, Raewyn. (2012), "The Global South". Contexts, vol. 11, n. 1, pp. 12-13.
DIRLIK, Arif. (2007), "Global South: Predicament and Promise". The Global South, vol. 1, n. 1 &2, pp. 12–23.
GRAY, Kevin; GILLS, Barry. (2016), "South-South cooperation and the rise of the Global South". Third World Quarterly, vol. 37, n. 4, pp. 557-574.
GROVOGUI, Siba. (2011), "A Revolution Nonetheless: The Global South in International Relations". The Global South, vol 5, n 1, pp. 175-190.
HURRELL, Andrew. (2013), "Narratives of emergence: rising powers and the end of the Third World?" Brazilian Journal of Political Economy, vol. 33, nº 2 (131), pp. 203-221.
MIGNOLO, Walter. (2002), "The geopolitics of knowledge and the colonial difference". The South Atlantic Quarterly, v. 101, n. 1, pp. 57-95.
MORTON, Stephen. Gayatri Chakravorty Spivak (Routledge Critical Thinkers). London & New York: Routledge, 2004.
SOUSA SANTOS, Boaventura; MENESES, Maria Paula (orgs). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.
Luciana Ballestrin é Professora Associada de Ciência Política no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e no Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Pelotas. É Editora da Revista Sul-Americana de Ciência Política e Coordenadora do Grupo de Pesquisa Teoria Política Global.
E-mail: luciana.ballestrin@ufpel.edu.br
Como citar esse texto: BALLESTRIN, Luciana. (2020), "O Sul Global como projeto político". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/06/30/O-SUL-GLOBAL-COMO-PROJETO-POLITICO
Editora Responsável: Simone Gomes