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Marina Basso Lacerda

BOLSONARO: ENTRE PINOCHET E REAGAN


Imagem de capa do livro Reagan and Pinochet: The Struggle Over U.S. Policy toward Chile (New York: Cambridge University Press).



Durante a campanha pela derrubada de Dilma Rousseff em 2015, os atores de direita estavam mais coordenados do que em 2013 – ano em que começa a reação conservadora –, mas ainda não havia tendência que os hegemonizasse para além da rejeição ao PT, o que perdurou até as eleições de 2018. O pleito contou com 13 candidatos. Aquele mais bem posicionado em termos de alianças, recursos e tempo de rádio e TV era Geraldo Alkmin, do PSDB. João Amoedo, do NOVO, por sua vez, era alguém fora da “velha política”, ao mesmo tempo em que não pertencia à esquerda. Ambos defendiam uma agenda neoliberal progressista, na expressão de Fraser (2017), ou seja, ortodoxa na economia, com acenos aos temas da igualdade de gênero, às pautas LGBTI e aos defensores de direitos humanos.

Quem hegemonizou a direita, porém, foi Jair Messias Bolsonaro, encampando posições extremas na disputa por um cargo para o qual os postulantes historicamente tendiam a caminhar em direção ao centro. Eleito Presidente do Brasil com 11 milhões de votos de vantagem em relação ao seu oponente em segundo turno, militar da reserva, foi deputado federal entre 1991 e 2018. Sempre pertenceu ao baixo clero. Filiou-se a nove partidos políticos. Nenhum deles teve efetiva chance de encabeçar chapa para o Executivo federal. Bolsonaro apresentou-se ao pleito pelo então pequeno Partido Social Liberal (PSL), cresceu sem dispor de tempo de televisão, recursos vultuosos ou aliança com partidos tradicionais.

O parlamentar sempre foi tributário do regime autoritário iniciado em 1964 e expressamente favorável à tortura. Aliado a uma posição de direita apegada à Guerra Fria, criticou constantemente Cuba e Venezuela. Opositor ferrenho ao Partido dos Trabalhadores durante toda sua trajetória, associou o petismo a outros elementos que repudia: ao desarmamento; à redução da maioridade penal; aos direitos humanos que protegeriam “marginais”. O idealismo punitivo – incluindo o extermínio indiscriminado de suspeitos, que geralmente são negros e pobres – foi permanente e fortemente defendido pelo político.

Bolsonaro quintuplicou seus votos para deputado nas eleições de 2014. A expressiva acumulação de forças ocorreu ao longo do período do primeiro mandato de Dilma Rousseff. O diferencial a partir de 2011 é a mobilização dos temas relacionados à moral sexual, que não tinham destaque em seu repertório anteriormente. O deputado liderou a oposição ao Programa Escola sem Homofobia, material que ele apelidou de “kit gay”.

Em março de 2016, Jair Bolsonaro anunciou sua candidatura à Presidência da República. Como candidato, ele manteve, do repertório anterior, a linguagem bélica, o preconceito aos homossexuais a mentalidade de Guerra Fria. Mas fez duas mudanças importantes. A primeira em direção aos evangélicos, grupo político do qual vinha se aproximando gradualmente. Católico, em 2016 batizou-se, pelas mãos do Pastor Everaldo, nas águas do Rio Jordão. Seu plano de propostas iniciava com uma citação bíblica. “Deus acima de todos”, dizia seu mote de campanha. A família “tradicional” está no centro de seu projeto de governo. Acenando ao “sionismo cristão” (Mearsheimer e Walt, 2007), o candidato disse ser apaixonado por Israel e propôs transferir a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, como fez Donald Trump.

A outra guinada foi na economia. Apesar de sempre desprezar medidas redistributivas, o deputado Bolsonaro nunca foi um neoliberal. Entre 2000 e 2018 sua única menção às privatizações foi para criticar aquelas realizadas na gestão de Fernando Henrique Cardoso. Ao longo das gestões petistas, Bolsonaro não defendeu posições ideológicas nítidas em relação à política econômica. Mas no final de 2017 ele passou a sinalizar para o mercado e em abril de 2018 ele escolheu Paulo Guedes como conselheiro. Guedes, Doutor pela Universidade de Chicago, foi até mesmo professor do Departamento de Economia da Universidade do Chile no começo dos anos oitenta, atuando no experimento neoliberal no regime de Pinochet, ditador elogiado por Bolsonaro durante toda sua trajetória pública.

Argumentei, em O Novo Conservadorismo Brasileiro: de Reagan a Bolsonaro (Lacerda, 2019), que o atual presidente brasileiro encarna uma reedição do neoconservadorismo. Neoconservadorismo se refere originalmente ao movimento de reação às políticas de bem-estar social (e, portanto, de consolidação do neoliberalismo) e ao avanço de movimentos feministas, pelos direitos dos homossexuais e pelos direitos civis da população negra, que levou à eleição de Ronald Reagan como presidente dos Estados Unidos em 1980. Esse ideário político aliou anticomunismo, law-and-order, à agenda direita cristã – incluído o apoio à Israel – e absolutismo de livre mercado (Brown, 2006; Diamond, 1995; Grandin, 2006; High, 2009; Mueller, 1981; Steinfels, 2013 [1979]). São elementos que aparentemente constituem um “Frankenstein” (Brown, 2018), mas cuja unidade é entendida a partir da ideia de que a família, a religião e a autoridade – e não políticas distributivas – são os mecanismos para uma boa sociedade.

As semelhanças entre os processos, que justificam a reedição do neoconservadorismo 40 anos depois, residem em dois aspectos. O primeiro deles é a força da direita cristã – central na política dos EUA na década de 1970 e no Brasil mais recentemente. Explicam a ascensão do grupo, evidentemente, elementos endógenos de cada país e os motivos intrinsecamente religiosos. Mas o que há de parecido, nos EUA e aqui, é que o protagonismo político desses atores ocorreu em grande medida em reação ao avanço feminista e do movimento LGBTI. O segundo aspecto é a força do argumento neoconservador, associado à construção de um projeto de hegemonia que viabilizasse o neoliberalismo.

Depois da Segunda Guerra Mundial, diversos países, incluindo os Estados Unidos, desenvolveram modelos de restrições ao livre mercado para fins do bem-estar social dos seus cidadãos. Esse liberalismo encapsulado, ao longo dos anos, provocou diminuição da concentração de renda e queda dos lucros das camadas mais altas – processo cuja reação foi cristalizada no neoliberalismo, testado no Chile e depois implantado na Inglaterra de Thatcher e nos Estados Unidos de Reagan. A virada neoliberal nos Estados Unidos exigiu a construção de um projeto de hegemonia que foi a costura da aliança neoconservadora (Brenner, 2007; Harvey, 2005; Noble, 2007).

A “ideologia antiestatal, fundada na supremacia branca, na defesa da família patriarcal e no fundamentalismo protestante” substituiu a solidariedade classista e deu suporte ao desmonte de políticas distributivas que eram do interesse da grande massa da população (Brenner, 2007, p. 47-48). Por outro lado, na filosofia do bem-estar vigorava o paradigma da segurança social, na sociedade neoliberal, com elementos desintegradores e excludentes, prevalecendo o princípio da “insegurança coletiva” (Dornelles, 2008, p. 19), contrabalanceado pelo incremento dos sentimentos vingativos e punitivos (Argüello, 2005). Os indivíduos, desesperados e sem poder, devem prover a si mesmos, através da livre iniciativa, organizados pela família; na falha desses mecanismos, há o direito penal rígido.

Exponho, no meu livro – resultado da tese de doutorado que defendi no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) em 2018 –, que no Brasil e nos Estados Unidos o argumento neoconservador se repete devido à sua força: se as respostas baseadas em políticas públicas de bem-estar social parecem longínquas, as respostas neoconservadoras se mostram imediatas. E isso, exatamente, em ambos os casos, quando o neoliberalismo tem passagem: lá, em sua implantação; aqui, em seu resgate. O neoliberalismo, que no Brasil não fora vitorioso em eleições desde os anos 1990, consegue novamente se legitimar pelo voto popular, agora com roupagem autoritária e moralmente conservadora.

E pesquisas mais recentes o confirmam. Familismo religioso e idealismo punitivo são os aspectos que mais contribuíram para a eleição de Bolsonaro. Messenberg (2017), investigando os formadores de opinião, identificou, no polo conservador, o superdimensionamento da criminalidade e da violência no país e a defesa da família tradicional e da fé cristã como ideias motrizes. Estudos de antropologia (Machado; Scalco, 2018; Setubal, 2019) apontam o medo da violência urbana, do desemprego e da precarização das condições de vida, somados ao ressentimento dos homens pela perda de poder e espaço decorrente do avanço de movimentos identitários, como características centrais dos eleitores de Bolsonaro.

Mas há diferenças entre o reaganismo e o bolsonarismo, que fazem o segundo pior do que o primeiro. Uma delas é que estamos na era das mídias digitais. Os algoritmos potencializam o engajamento a partir de mentiras e de sentimentos negativos como ódio, medo e ressentimento (Carvalho, 2019; Empoli, 2019). Isso leva a extremos: defesa dos valores tradicionais no nível da falsidade e do pânico moral (lembremos da suposta mamadeira com bico peniano que Haddad distribuiria nas escolas) e ao idealismo punitivo associado à celebração da morte de suspeitos (“vão morrer que nem barata”, frase proferida por Bolsonaro semanas antes da execução da menina Ághata) e mesmo de inimigos políticos (a expressão de êxtase ao bradar “vamos fuzilar a petralhada”).

A segunda diferença é que lá o tecido neoconservador defendia a sobreposição à União Soviética para afirmar os Estados Unidos como potência hegemônica. Mas o Brasil é um país de periferia, cujas capacidades são limitadas em relação às potências. Não faria sentido no nosso caso, portanto, falar em disputa pela hegemonia global. Mas faria sentido falar em inserção global ativa, com vistas a criar espaços para serem ocupados por países emergentes (Lima, 2005). A mentalidade de Guerra Fria, porém, leva a críticas às parcerias com Venezuela, Equador, Bolívia e Cuba e ao próprio Mercosul, o que afeta a perspectiva autonomista de política externa. O neoconservadorismo brasileiro nos levou, inclusive, a um alinhamento automático, assimétrico e desvantajoso com os Estados Unidos. O “nacionalismo” de Bolsonaro é subalterno, uma contradição em seus próprios termos.

A terceira diferença é a do limite do autoritarismo. Wendy Brown (2006) argumenta que a conjunção entre neoconservadorismo e neoliberalismo rompe com o modelo de Estado democrático liberal, por defender uma concepção parcial de direitos. Mas nunca floresceu, nos Estados Unidos, a possibilidade de implantação de um regime ditatorial. As instituições da democracia representativa naquele país jamais estiveram realmente em xeque; não se comparado à realidade da América do Sul, onde as rupturas são constantes. O neoconservador Reagan apoiou a ditadura de Pinochet iniciada anos antes de seu governo, regime admirado por Bolsonaro. E, agora, Bolsonaro e seus apoiadores defendem expressamente uma ruptura constitucional, o fechamento de outros poderes e até mesmo o resgate do Ato Institucional n.5 (AI-5).


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REFERÊNCIAS

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Para conhecer o livro de Marina Lacerda, O Novo Conservadorismo Brasileiro, lançado em 2019 pela editora Zouk, acesse: http://www.editorazouk.com.br/pd-6892e4-o-novo-conservadorismo-brasileiro-de-reagan-a-bolsonaro.html

Marina Basso Lacerda é Doutora em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj). Analista legislativa da Câmara dos Deputados.

Como citar esse texto: LACERDA, Marina. (2020), "Bolsonaro: entre Pinochet e Reagan". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/07/22/BOLSONARO-ENTRE-PINOCHET-E-REAGAN


Editora Responsável: Marcia Rangel Candido










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