DICAS DE LEITURAS DA EQUIPE HaoS, n.2
Quarentena, Lara Nunes [1].
Como parte da comemoração de dois anos da Horizontes ao Sul, inauguramos uma contribuição coletiva de nossa equipe editorial. Nossa coluna de indicação de leituras pretende reunir, mensalmente, um conjunto de indicações de livros, seguidas de um breve comentário sobre cada obra.
Confira abaixo a segunda edição das dicas de leituras da Equipe HaoS:
O compadre de Ogum
Jorge Amado
O compadre de Ogum, de Jorge Amado, foi publicado originalmente em 1964, como parte da obra Os pastores da noite, e ganhou edição independente na década de 1990. Foi na saída da Casa do Rio Vermelho, onde Jorge Amado morou, que encontrei este livro. Não o conhecia, e decidi comprá-lo. No dia seguinte, o li sentada em uma escadaria do Pelourinho, em frente à Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, cenário importante do enredo. A história, então, se passou por entre as linhas do livro que tinha em mãos, mas também no cenário que estava ao meu redor. O romance trata da dificuldade de Massu em escolher um padrinho para seu filho, Felício. A criança, com quase um ano de idade e ainda não batizada, foi entregue a Massu pela prostituta Benedita, que havia desaparecido por um tempo e voltara a sumir depois de deixar seu filho aos cuidados e afetos de Massu, neto da centenária velha Veveva. Ogum acaba por ser o escolhido para apadrinhar a criança, o que torna o batizado de Felício um grande evento em Salvador. Os entraves para que o orixá comparecesse à Igreja do Rosário dos Pretos no dia do batizado conduzem a trama, marcada pelo entrelaçamento entre santos católicos e orixás, sons de sinos e atabaques - fios do sincretismo religioso, tão presente na obra-trama do autor. Jorge Amado nos conduz por ruas e vielas da capital baiana, e nos tira reflexões e risadas no caminho sagrado-profano que percorre esse curto mas emblemático romance. O compadre de Ogum diz muito das trivialidades do cotidiano soteropolitano, mas também da força de sua ancestralidade.
Por Vitória Gonzalez
Chico Bizarro y las moscas
Mónica Bustos
A jovem autora paraguaia Mónica Bustos, em seu romance de 2010 Chico Bizarro y las moscas, publicado pela editora Alfaguara e agraciado com o prêmio Augusto Roa Bastos, nesse mesmo ano, nos brinda com uma narrativa vertiginosa. A história versa sobre um jovem grupo de criminosos em Asunción, capital do relativamente apagado país da América Latina, Paraguai. O protagonista, Chico Bizarro, é um criminoso profundamente apaixonado – e não correspondido – por uma mulher. Junto a ele, trabalham um artista fracassado e um falso jesuíta, que busca novas missões a partir de cultivos de drogas tornadas ilícitas – e das quais o Paraguai adquiriu protagonismo no tráfico internacional de drogas - e os Niños Cotonetes, irmãos siameses trabalhadores nesse mercado. A história de amor – e drogas – se desenrola de tal maneira que o chefe da facção pensa exclusivamente em se aposentar e viver no campo com sua amada. Chico Bizarro não segue uma narrativa linear e não é um relato simples, com longos parágrafos – sem direito a pausas – e entradas do léxico em guarani, permeado pela história deste país em que uma guerra com os vizinhos Brasil, Uruguai e Argentina, no século XIX, reduziu drasticamente sua população masculina adulta. O ordenamento de cada segundo das vidas campesinas e indígenas dos paraguaios pelos jesuítas é retratado em meio à trama, aos devaneios de um jovem que sonha com o amor, e cuja realidade é a violenta venda a varejo de drogas. Não se deixe enganar pela capa de gosto duvidoso, Chico Bizarro y las moscas é um belo exemplar do realismo mágico latinoamericano, com direito a um duro retrato de um país sobre o qual pouco sabemos.
Por Simone Gomes
Baratas
Scholastique Mukasonga
Na memória nacional brasileira, o ano de 1994 é marcado pela vitória da seleção masculina de futebol na Copa do Mundo da Fifa, no entanto, do outro lado do Atlântico, enquanto brasileiros saiam às ruas para torcer e mesmo comemorar seu título, em Ruanda – país da África Oriental, que faz divisa com a República Democrática do Congo, o Burundi, a Tanzânia e Uganda – vivia-se um dos maiores genocídios da história moderna. Este é o centro da história contada pela ruandense, radicada na França, Scholastique Mukasonga. Neste relato autobiográfico, a autora reúne suas memórias pessoais e a memória coletiva de um país marcado pela dor e o trauma. Seu texto nos conta uma história desconhecida para muitos ao redor do planeta, dentre outros motivos porque naquele momento a comunidade internacional fez vista grossa ao horror que tomava Ruanda.
Mukasonga traz a história de sua família, de etnia tutsi, relatando todos os percalços, humilhações e degradações que vivenciaram a partir das ficcionalizações legadas pelo projeto colonial belga. Os tutsis eram considerados como uma etnia superior pela administração colonial belga, assim, possuíam, em geral, cargos de maior status, sendo constantemente colocados em oposição às demais etnias do país, como os hutus e os erroneamente nomeados como pigmeus, sendo estes uma minoria e os hutus a maioria. Porém, a despeito de serem os hutus a maioria da população, eram os tutsis considerados “superiores” pelas narrativas coloniais. Uma administração que, a fim de aperfeiçoar seu mando através da oposição étnica criou, por exemplo, uma carteira de identificação racial a ser carregada pelos habitantes país. Fato é que esta ação colonial causou profundas oposições, especialmente, entre tutsis e hutus. Deste modo, com o fim da colonização belga, hutus se tornaram a população com maior poder no país, quando, então, começaram a se articular, ainda na década de 1960, as ações que entre abril e julho de 1994 trouxeram a morte para cerca de 800.000 pessoas, em sua maioria tutsis.
De fato, Baratas não é uma leitura fácil, mas esta dificuldade se mostra “apenas” em termos emocionais, pois a escrita de Mukasonga nos conduz com brilhantismo por todo o processo que levou ao genocídio de sua família e etnia. Sendo assim, pode ser tomada como uma leitura fundamental – ainda mais se pensarmos acerca da Lei 10.639/03, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história da África e das culturas africana e afro-brasileira no currículo da educação básica. Este livro, publicado em 2006 na França e em 2018 no Brasil pela editora Nós, conta uma história recente e desconhecida, de terror e trauma, deve ser conhecida sobretudo por nos mostrar como a colonização e a colonialidade nunca foram positivas ou brandas. Enfrentar esta história, mesmo que não seja diretamente a nossa, pode nos ensinar muito sobre o que precisamos mudar urgentemente para que fatos como estes não voltem a ocorrer.
Por Guilherme Marcondes
Karl Marx e o nascimento da sociedade moderna: biografia e desenvolvimento de sua obra, volume 1: 1818 - 1841
Michael Heinrich
Amado por muitos e odiado por outros tantos, Karl Marx é qualquer coisa, menos ignorado. Suas contribuições à sociologia, economia política e filosofia o colocaram no restrito grupo de intelectuais que mais influenciaram a história da humanidade. Apesar da sua obra ser muito citada, sua vida, até agora, não era tão bem conhecida. Isso começou a mudar a partir do incremento e publicização da Die Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA), um enorme coleção de escritos de Marx e Engels que incluem cartas, manuscritos e outras produções secundárias. A partir da análise minuciosa desse enorme banco de informações, o professor Michael Heinrich escreveu a mais completa biografia do filósofo renano, cujo primeiro volume foi lançado em português, há quase dois anos, pela Editora Boitempo. A grande virtude do autor é conseguir contextualizar o homem e a obra, localizando-os temporalmente e evidenciando como um período histórico de grande transformações influenciou o filósofo e sua inovadora visão de mundo. Sem dúvida alguma, trata-se de um livro extremamente bem escrito, fruto de rigorosa investigação e de grande serventia tanto para os leitores que já possuem alguma intimidade com a obra de Marx, quanto para os que querem começar a entender o complexo e revolucionário método marxista de interpretação do mundo social.
Por Rafael Rezende
Primavera no espelho partido
Mario Benedetti
O livro do escritor uruguaio Mario Benedetti, escrito em 1982, e lançado no Brasil apenas em 2009, pela editora Alfaguara, narra a história de uma família separada pela experiência do exílio e da prisão durante a ditadura no Uruguai. A narrativa se desenrola articulando a perspectiva dos personagens principais com as memórias de Benedetti sobre seu próprio exílio, que durou 12 anos. Santiago, preso por ter participado da luta armada contra a ditadura, tenta manter a sanidade através das cartas trocadas com sua esposa (Graciela) e seu pai (Dom Rafael). A dureza e a solidão do cárcere, as memórias da militância, são intercaladas pela vida do resto da família que foi obrigada a se (re)construir no exílio. Beatriz, filha de Santiago e Graciela, tem dificuldades para se entender como exilada, pois não lembra de sua terra natal. Graciela, que não vê Santiago há cinco anos, vive dividida entre manter a fidelidade ao marido preso e aceitar novas formas de amor. Dom Rafael segue estranhando os itinerários que levam à casa, por de alguma maneira não serem seus.
Benedetti nos envolve com muito afeto e delicadeza no cotidiano dessa família, que funciona como um espelho, partido, de sua própria história e de tantas e tantos outros latino-americanos. A luta contra governos autoritários e todas as formas de desigualdade - e o imenso repertório de repressão que sempre as acompanham - parece nunca perder a atualidade. Ao se deparar com as experiências de pessoas que lutaram contra as ditaduras na América Latina, é inevitável não pensarmos em nosso próprio momento político. Se, por um lado, podemos nos sentir um pouco impotentes frente a uma conjuntura tão particular, que articula o avanço de um governo autoritário com uma pandemia mortal, por outro, ler Benedetti e tudo o que sua escrita representa faz a gente ter certeza de que está do lado certo da história, e que seguiremos forjando novas primaveras.
* Uma dica complementar à Primavera é assistir ao filme Uma noite de doze anos, de Álvaro Brechner, que estreou em 2018. O filme conta a história da prisão, das torturas e do total isolamento de três membros dos Tupamaros, grupo guerrilheiro que lutava contra a ditadura no Uruguai - entre os quais Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai - durante intermináveis doze anos. Tanto o livro quanto o filme são atravessados por uma expectativa de liberdade que não abandona suas convicções políticas. A doçura da narrativa de Benedetti se encontra e se complementa com a aridez e a violência da experiência imagética do cárcere.
Por Luna Ribeiro Campos
Se a rua Beale falasse
James Baldwin
Se uma rua pudesse falar, seriam tantas e tão diversas as histórias contadas. Todas, entretanto, sem exceção, estariam vinculadas às características do local em que ela se encontra, às suas memórias. É sobre a intimidade das vidas e de seus cruzamentos que o espaço fala. A rua Beale do título do livro fica originalmente em Memphis, sul dos Estados Unidos, local onde Martin Luther King Jr. foi assassinado. No livro de James Baldwin (1924-1987), o espaço em que se passa grande parte das cenas é um bairro predominantemente negro e pobre da Nova York dos anos 1970, geograficamente distante, mas simbolicamente muito próximo daquela rua que testemunhou a morte de uma das figuras centrais da luta por direitos civis dos negros no país. Quinto romance do escritor, publicado originalmente em 1974, a história é narrada por Tish, uma jovem negra de 19 anos que vive sua primeira gravidez enquanto tenta tirar seu companheiro Fonny da cadeia, preso injustamente depois de ter ido morar em um bairro branco da cidade: “Ele não era o preto de ninguém. E isso é um crime na porra deste país livre. Supõe-se que você seja o preto de alguém. E se você não for o preto de alguém, então você é mau: e foi isso que os policiais decidiram quando o Fonny se mudou para downtown”. Entre lidas com advogado, conflitos familiares e a tentativa de manter a esperança, o romance aborda, numa linguagem ritmada e fluida, temas como racismo, sistema prisional, religião, violência, juventude e amor, trazendo para compor a cena elementos da cultura negra estadunidense do período. Há música, sobretudo Billie Holiday, B.B. King, Marvin Gaye, Aretha Franklin, Ray Charles.
A edição brasileira, lançada pela Companhia das Letras em 2019, ano de divulgação do filme homônimo, se deu um ano depois de terem sido postos em circulação os livros Terra Estranha e O Quarto de Giovanni. A retomada da leitura de James Baldwin por uma nova geração se dá junto ao lançamento do filme I´m not your negro, documentário do cineasta haitiano Raoul Peck. Tendo como base um manuscrito não concluído de Baldwin com escritos sobre a vida e a morte de seus amigos e líderes na luta por direitos civis Malcolm X, Martin Luther King Jr. e Medgar Evers, o filme apresenta um intelectual certeiro e capaz de convencer as plateias mais diversas com discursos fortes e contundentes contra o sistema de segregação racial. Seja nas páginas ritmadas do livro ou na força dos discursos apresentados em vídeos, James Baldwin merece ser lido e ouvido hoje e sempre, tamanha a força de suas palavras e a forma com que elas ecoam ainda hoje ao tratar de questões que continuam insistentemente a definir nossa sociedade.
Por Leonardo Nóbrega
O andar do bêbado: Como o acaso determina nossas vidas
Leonard Mlodinow
Quando eu participava de bolões de loteria no trabalho, gostava de marcar sequências como 11, 12, 13, 14, 15 e 16 ou 04, 14, 24, 34, 44 e 54. E, em conformidade com um de meus objetivos, isso aperreava um pouco alguns do meus amigos de bolão. Eles argumentavam que eu estava desperdiçando o cartão de aposta, pois, segundo o entendimento deles, seria mais improvável um sorteio em sequência do que as combinações que eles gostavam de fazer. Essa interpretação das probabilidades do sorteio da loteria é um exemplo do problema de viés cognitivo muito presente no funcionamento da nossa mente, que, embora muito poderosa, tem limitações.
No livro O andar do bêbado, publicado em 2008, Leonard Mlodinow demonstra como o cérebro humano, preparado para identificar padrões, falha de maneira grave ao tentar lidar intuitivamente com a aleatoriedade. E, em contrapartida, apresenta ferramentas que podemos lançar mão ao interpretarmos as informações do mundo ao nosso redor para tomarmos decisões. Por meio de anedotas e de paralelos concretos com a vida cotidiana, o autor abre mão da fauna de símbolos matemáticos e torna simples e agradável a exploração e aplicação de conceitos abstratos como a lei de regressão às médias e as probabilidades condicionadas.
Apesar de me divertir marcando números em sequência nos cartões de loteria, meu objetivo primário era suscitar discussões sobre como os números ordenam nossas vidas. Não como se tais abstrações criadas pela mente humana tivessem agência, como alguns de meus então colegas pareciam acreditar. Pelo contrário, meu intuito era jogar luz sobre a necessidade de dominarmos o entendimento da aleatoriedade para tomarmos decisões melhores. Nesse livro, Mlodinow empreende essa tarefa com sucesso. O autor apresenta, por exemplo, o problema dos erros de medição inerente a todo processo de coleta de dados e o que ele chama de autoridade dos números. Como no caso da quase infalibilidade estatística de 1/1 milhão de testes de DNA apresentadas como provas em tribunais que não leva em consideração as falhas humanas no processo de manipulação das amostras. No meu entender, a discussão sobre a influência que o entendimento de matemática e probabilidade exerce sobre as decisões da nossa sociedade, em um espectro que vai desde eleições até sentenças judiciais, é a qualidade distintiva deste livro.
Por André Felix
NOTAS
[1] Agradecemos à Lara Nunes (Instagram @laranunesr), que gentilmente nos cedeu essa arte.