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Matthew Aaron Richmond e Elizabeth McKenna

REVOLTAS REGIONAIS: DIREITIZAÇÃO ELEITORAL NO BRASIL E NOS EUA


Imagem: Yellow Fan-White Float, Sam Gilliam, 1973



A “revolta do rustbelt” nos Estados Unidos


O período entre 2014 e 2019 produziu vitórias eleitorais para candidatos ultranacionalistas em várias democracias, entre eles os atuais presidentes dos Estados Unidos e do Brasil. No caso dos EUA a surpreendente vitória de Donald Trump em 2016 é considerada técnica, dado que ele perdeu o voto popular para sua adversária, do Partido Democrata, Hillary Clinton. No entanto, ele ganhou o “colégio eleitoral” (uma maioria absoluta de votos alocados por estado) por conta da localização geográfica de eleitores ao seu favor. Crucial nesse processo foi o papel dos “rustbelt five”, ou seja os cinco estados historicamente industriais do “Midwest” (região centro-oeste) do país: Ohio, Michigan, Wisconsin, Iowa e Pennsylvania. O termo “rustbelt” (literalmente “cinturão de ferrugem”) se refere ao estado avançado de desindustrialização, deterioração socioeconômica e declínio populacional dessa região. Esses estados tradicionalmente votavam no Partido Democrata, mas escolheram o Partido Republicano de Trump em 2016.


A coalizão eleitoral que Trump construiu se ancorava no eleitorado Republicano tradicional: desproporcionalmente branca e masculina, e concentrada entre as classes média e alta, residentes de subúrbios nobres, e média e baixa, localizada em cidades pequenas interioranas. Porém, ele também conseguiu alcançar um número significativo de novos eleitores para seu lado – pessoas de origem operária, notadamente brancas, e concentradas no rustbelt. Ou seja, o fator decisivo na vitória do Trump, o que o diferenciou de candidatos Republicanos anteriores, teria sido a “revolta do rustbelt” (McQuarrie, 2017).


Segundo o sociólogo estadunidense Michael McQuarrie, que cunhou esse termo, embora seja importante analisar as mudanças eleitorais a partir das características socioeconômicas e demográficas – como classe social, raça, gênero, religião ou etária – das coalizões construídas, a geografia também precisa ser central nas análises. Isso é particularmente importante nos EUA, onde o sistema político inflaciona o peso de votos nos estados mais disputados. No entanto, McQuarrie não se refere apenas aos números de votos em si, e sim a processos coletivos e altamente espacializados de formação de opinião e subjetividade política. No caso dos rustbelt five, grandes mudanças socioeconômicas de longo prazo contribuíram para o resultado final em 2016, tais como o aumento de desemprego e pobreza, o envelhecimento demográfico e a chamada “crise de opióides” (uso crescente de drogas prescritas viciantes). Ademais, importantes transformações socioorganizacionais ocorreram, em particular o declínio de sindicatos operários e associações cívicas que antigamente capilarizavam a influência do Partido Democrata nesses territórios (Schlozman 2016).


Neste contexto, a população branca dessas regiões parecia mais predisposta a cogitar novas propostas políticas. Muitos enxergavam o Partido Democrata como cúmplice na piora que percebiam em suas vidas. Embora Barack Obama tivesse vencido na maioria dos estados do rustbelt nas eleições de 2008 e 2012, o declínio econômico persistente fez com que a aprovação do presidente diminuísse significativamente durante seu segundo mandato (Saad, 2016). De forma geral, o Partido – e especialmente sua candidata de 2016, Hillary Clinton – eram associados aos acordos de Livre Comércio tais como o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (assinado em 1992 quando o marido da candidata, Bill Clinton, era presidente) e o Acordo Transpacífico (então em vias de negociação), que eram tidos amplamente como culpados pelo declínio do emprego.


A retórica xenofóbica e nacionalista econômica de Trump, com seus ataques contra imigrantes e parceiros comerciais como a China e o México, as promessas grandiosas de trazer empregos “de volta” e construir um muro na fronteira sul do país, e o lema Make America Great Again, encontraram um solo fértil nesse contexto regional. Em outras palavras, a campanha do Trump, embora direcionada para diversos públicos, conseguiu explorar brechas na articulação do Partido Democrata no rustbelt e politizar queixas de declínio bastante difusas na região que até então não tinham sido explicitamente articuladas no debate nacional. É claro que, conforme já mencionado, foi principalmente a população branca do rustbelt que se mostrou receptiva a esse argumento. Porém, McQuarrie aponta que, embora de forma geral a população negra da região não tivesse votado em Trump, sua taxa de abstenção foi mais alta do que em eleições anteriores, o que também sugere um afastamento do Partido Democrata. Isso indica que existe uma relação complexa entre condições locais, formas de articulação política nacional e as categorias demográficas e identitárias que perpassam ambas escalas.


Uma “revolta das periferias” no Brasil?


Há grandes diferenças culturais, sociais, históricas e políticas entre Estados Unidos e Brasil e muitas vezes comparações entre os dois países – como a denominação simplista do Jair Bolsonaro como o “Trump dos Trópicos” – escondem mais do que revelam. No entanto, o que a vitória do Bolsonaro em 2018 converge com a de Trump em 2016 parece ter sido no sucesso do Capitão em construir uma coalizão eleitoral social e geograficamente diversa. Segundo a pesquisa da Datafolha na véspera do segundo turno (Datafolha, 2018), enquanto mais de 60% dos que ganhavam mais de 5 salários mínimos (SM) votaram no Bolsonaro (comparados com cerca de 30% para Haddad), também houve apoio significativo entre as faixas de renda menor: 54% na faixa de 2–5 SM (contra 34% para Haddad) e 35% na faixa de menos de 2 SM (contra 49%).


A pesquisa também mostra que embora Bolsonaro tivesse recebido apoio maior entre homens, brancos e Evangélicos, ele também teve apoio expressivo entre mulheres, negros e Católicos.


Seguindo a linha de McQuarrie, é importante refletir sobre como a geografia brasileira pode ter contribuído para esses processos, uma questão ainda pouco explorada na literatura. À diferença dos EUA, não foi uma revolta localizada que determinou o resultado nacional – no Brasil, o presidente é eleito por voto popular, mudanças em todo o país contribuem igualmente. Segundo o mapa nacional dos segundos turnos de 2014 e 2018 abaixo, de forma geral, Bolsonaro conseguiu ocupar os mesmos territórios vencidos por Aécio Neves do Partido da Social Democracia Brasileiro (PSDB) em 2014, geralmente nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, e aumentar a escala de vitória. Em alguns casos, ele também conquistou novos territórios, incluindo boa parte do sul de Minas Gerais, e grandes áreas em estados como Pará, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul. No entanto, para ver as mudanças que mais contribuíram para o resultado em escala nacional, precisamos olhar nos centros de maior densidade populacional, quer dizer nas grandes regiões metropolitanas.

Resultados dos segundos turnos das eleições presidenciais no Brasil, 2014 e 2018

Fonte: Estadão (https://www.estadao.com.br/infograficos/politica,o-historico-das-disputas-eleitorais-a-presidencia-em-dez-mapas,935856)

A partir dos dados do repositório de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), de 2020, coletamos os resultados de segundos turnos de eleições presidências entre 2002 e 2018 à escala de zona eleitoral para as duas maiores regiões metropolitanas (RMs) do Brasil: São Paulo e Rio de Janeiro. Adotamos as delimitações de regiões metropolitanas definidas por legislação federal e estadual (veja Fórum Nacional de Entidades Metropolitanas). Segundo essas definições, as duas RMs estudadas abrangem um total de mais de 34 milhões de habitantes, o que constitui mais de 16 por cento da população nacional. Ocorreu um rezoneamento das zonas eleitorais em ambas as RMs durante o período da série, mas isso é habitualmente implementado pela subdivisão ou agregação de zonas existentes, sem outras alterações aos seus contornos. Isso fez com que fosse possível agregar os dados à escala alcançada por cada zona eleitoral ao longo do série. Esse procedimento forneceu um total de 96 zonas contínuas em cada das duas regiões metropolitanas. Os resultados são apresentados nos mapas abaixo:

Resultados de segundos turnos em eleições presidenciais na Região Metropolitana de São Paulo, 2002-2018 (votos válidos)

Fonte: Elaborado pelos autores

Resultados de segundos turnos em eleições presidenciais na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, 2002-2018 (votos válidos)

Fonte: Elaborado pelos autores

Os mapas demonstram, em primeiro lugar, um processo de descolamento das zonas eleitorais mais centrais e, mais tarde, da maioria das zonas mais periféricas do Partido dos Trabalhadores (PT), embora em ritmos diferentes nas duas RMs. Em São Paulo (RMSP) as zonas eleitorais do centro expandido nunca votaram em sua maioria no PT, mas entre 2002 e 2006 a oposição endureceu e continuou forte até 2018. Por contraste, as periferias metropolitanas (com a exceção de algumas cidades satélite mais distantes da capital) mantém seu apoio ao PT até o início de uma leve diluição em algumas em 2010. Em seguida, há um afastamento do partido na maioria das zonas periféricas em 2014 que se intensifica ainda mais em 2018, embora ainda com maiorias menores do que no centro expandido. No Rio de Janeiro (RMRJ), todas as zonas mais nobres da RM (da Zona Sul, Barra da Tijuca, Niterói, e algumas do Centro e Zona Norte) votaram no PT em 2002, mas começaram a abandonar o Partido aos poucos entre 2006 e 2010. Essa oposição se cristalizou em 2014 e se manteve em um nível parecido em 2018. Enquanto isso, as periferias continuaram a entregar grandes maiorias para o PT entre 2002 e 2014, ainda que cada vez menores. Em 2018, ocorreu uma virada dramática. Todas as zonas periféricas votaram no Bolsonaro, em muitos casos em escalas maiores do que nas zonas do centro expandido – uma inversão total da lógica anterior quando a periferia votava mais à esquerda e o centro mais à direita.

É evidente que as metrópoles – especialmente as duas maiores do país – são entidades complexas e heterogêneas. Não é possível agrupar todos os seus diferentes subterritórios em uma dicotomia simples: “centros” e “periferias”, e existe grande diversidade entre os territórios que poderiam se encaixar na categoria de “periferia” (por exemplo, Nery et al., 2019). Ademais, existem enormes diferenças socioeconômicas, geográficas e políticas entre as duas metrópoles estudadas. Enquanto São Paulo é tipicamente caracterizada como tendo um modelo de organização socioespacial radial e concêntrica, com “periferias” de vários graus de consolidação e integração, o Rio de Janeiro figura como uma metrópole partida notadamente entre o “morro” e o “asfalto”, com a categoria de “subúrbio” ocupando um lugar ambíguo entre os dois. Embora essas lentes analíticas tradicionais possam esconder semelhanças importantes, seguramente refletem diferenças reais de organização socioespacial que exercem influencia sobre processos de formação de subjetividade e de articulação política.


No entanto, as tendências eleitorais nas periferias dessas duas e outras metrópoles merecem maior atenção. Embora ainda não disponhamos dos dados necessários para expandir a análise, existem evidências de que processos parecidos de direitização podem ter ocorrido nas periferias de outras metrópoles importantes no Sudeste e Sul do país como Belo Horizonte e Porto Alegre, embora não nas principais do Nordeste, Salvador, Recife e Fortaleza (veja, por exemplo, Almeida, 2018). No caso, vale perguntar se uma “revolta das periferias” – comparável em sua dinâmica de articulação entre processos geográficos e mudanças políticas (embora não em suas causas específicas) com a “revolta do rustbelt” dos EUA – pode ter ocorrido no Brasil durante a última década, materializada em 2018. Se houve uma revolta das periferias das grandes metrópoles do Sudeste e Sul do país, resta explicar quais seriam as causas sociais, econômicas, políticas e institucionais que podem ter a impulsionado.


Embora a questão ainda tenha recebido pouca atenção na literatura, já existem algumas pistas. Não obstante a grande heterogeneidade já mencionada, existem processos de longo prazo que tem atingido todos os espaços periféricos dessas metrópoles em diferentes graus e formas: a precarização do trabalho e a perda de influência de sindicatos (Braga, 2019); o papel cada vez maior de igrejas evangélicas como articuladores políticos (Machado, 2020); a “suburbanização” de periferias mais antigas e consolidadas (D’Andrea, 2020); mudanças intergeracionais a respeito de atitudes políticas (Rocha, 2018); os limites do modelo de inclusão social pelo consumo do PT, revelados pela eclosão de frustrações no contexto da recessão econômica (Pinheiro-Machado, 2019); a difusão do populismo penal frente às condições de insegurança crônica (Feltran, 2020); e desafios cotidianos relacionados à insegurança, orçamentos domiciliares exprimidos e serviços públicos deficientes, alguns dos quais Bolsonaro conseguiu “articular” em 2018 com contra crime e corrupção (Richmond, 2020). Esses e outros estudos indicam que as periferias metropolitanas do Sudeste e Sul do país são espaços de grande complexidade, perpassados por diferentes processos sociais, políticos, e organizacionais, mas também com algumas tendências de longo prazo em comum. Dada a sua importância para a política nacional, estudar esses processos não é essencial apenas para entender as mudanças recentes, mas também para termos possibilidades de alterar o caminho atual.




REFERÊNCIAS


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BRAGA, Ruy (2019), ‘From the Union Hall to the Church’, Jacobin. Disponível em https://www.jacobinmag.com/2019/04/bolsonaro-election-unions-labor-evangelical-churches


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FELTRAN, Gabriel de Santis (2020), "Formas elementares da vida política: Sobre o movimento totalitário no Brasil (2013-)". Blog do Novos Estudos CEBRAP. Disponível em http://novosestudos.uol.com.br/formas-elementares-da-vida-politica-sobre-o-movimento-totalitario-no-brasil-2013/


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MACHADO, Carly (2020), "Samba gospel: Sobre pentecostalismo, cultura, política e práticas de medição nas periferias urbanas do Rio de Janeiro". Novos Estudos CEBRAP, v. 39, n. 1, p. 81–101.


MCQUARRIE, Michael (2017), "The revolt of the Rust Belt: Place and politics in the age of anger". British Journal of Sociology, v. 68, p. S120–S152.


NERY, Marcelo Batista, SOUZA, Altay Alves Lino de e ADORNO, Sérgio (2019), "Os padrões urbano-demográficos da capital paulista". Estudos Avançados, v. 33, n. 97, p. 7-36.


PINHEIRO-MACHADO, R. (2019), Amanhã Vai Ser Maior: O Que Aconteceu com o Brasil e Possíveis Rotas de Fuga para a Crise Atual. São Paulo, Planeta do Brasil.


RICHMOND, Matthew Aaron (2020), "Narratives of crisis in the periphery of São Paulo: Place and political articulation during Brazil’s rightward turn". Journal of Latin American Studies, v. 52, p. 1–27.


ROCHA, Camila (2018), "Petismo e lulismo na periferia de São Paulo: Uma abordagem qualitativa". Opinião Pública, v. 24, n. 1, p. 29–52.


SAAD, Lydia (2016), "Obama Rated Best in Hawaii in 2015, Worst in West Virginia". Gallup. Disponível em https://news.gallup.com/poll/189002/obama-rated-best-hawaii-2015-worst-west-virginia.aspx


SCHLOZMAN, Daniel (2016), When Movements Anchor Parties. Princeton, NJ, Princeton University Press.


TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL (TSE), Repositório de Dados Eleitorais. Disponível em: http://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/repositorio-de-dados-eleitorais


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*Agradecemos o apoio técnico do Daniel Waldvogel Thomé da Silva do Centro de Estudos da Metrópole (CEM).

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Matthew Aaron Richmond é Pesquisador do Latin American and Caribbean Centre da London School of Economics e Secretário do Grupo de Pesquisa Geografias Latino-Americanas da Royal Geographical Society, Reino Unido.

Contato: m.a.richmond@lse.ac.uk

Elizabeth McKenna é pós-doutoranda no Instituto SNF Agora-Johns Hopkins University.

Contato: emckenna@jhu.edu

Como citar esse texto: RICHMOND, Matthew, McKENNA, Elizabeth (2020), "Revoltas regionais: As geografias de direitização eleitoral no Brasil e Estados Unidos". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/08/01/REVOLTAS-REGIONAIS-DIRETIZACAO-ELEITORAL-NO-BRASIL-E-EUA

Editores responsáveis: Simone Gomes e Felipe Munhoz de Albuquerque

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