DICAS DE LEITURAS DA EQUIPE HaoS, n.3
Colagem por Julia Oliveira Castro (@juliacstr)
Como parte da comemoração de dois anos da Horizontes ao Sul, inauguramos uma contribuição coletiva de nossa equipe editorial. Nossa coluna de indicação de leituras pretende reunir, mensalmente, um conjunto de indicações de livros, seguidas de um breve comentário sobre cada obra.
Confira abaixo a terceira edição das dicas de leituras da Equipe HaoS:
Um Outro Brooklyn
Jacqueline Woodson
Um Outro Brooklyn, de Jacqueline Woodson, foi publicado em 2016 e lançado no Brasil pela Todavia em 2020. A autora, que nasceu em Ohio em 1963 e cresceu em Nova Iorque, é premiada por seus livros para crianças e adolescentes - este ano, recebeu o Hans Christian Andersen, maior prêmio mundial da literatura infanto-juvenil. Em Um Outro Brooklyn (para o público adulto), vemos a história da protagonista, Augusta, desde a sua mudança do Tennessee para o Brooklyn, em 1973, ainda na infância, com seu pai e seu irmão. O livro inicia com o seu retorno, com cerca de 30 anos, ao distrito nova iorquino onde cresceu, quando do falecimento de seu pai - vida e morte se cruzam constantemente no enredo. Antropóloga que pesquisa a morte e seus rituais em diversos locais, ao longo do livro Augusta vai desenrolando fios e nós de suas vivências - isso é memória, repete constantemente. Angela, Gigi e Sylvia são suas amigas de infância e adolescência, e vivem com ela a efervescência das ruas, a potência daquela amizade na transição para a vida adulta, momentos de tensão e também os (des)afetos entre encontros e reencontros. No decorrer das linhas, nos deparamos com o Brooklyn vívido que Augusta almejava conhecer quando o via apenas pela janela do pequeno apartamento, sem autorização do pai para sair, e também com um Brooklyn tenso, perigoso em especial para meninas e mulheres negras. Mais que nada, com um Brooklyn diferente do que existe hoje. Entre memórias e músicas, costuradas de modo não-linear, (re)vivemos com Augusta suas recordações, passando por momentos de leveza e aflição, pela relação com as ruas, suas três amigas e seu núcleo familiar, em especial sua mãe, e pelo constante mistério do luto. Do dia a dia e das subjetividades a questões estruturais de gentrificação, racismo e das marcas da Guerra do Vietnã, Jacqueline nos conduz por um emaranhado de memórias. Memória talvez seja a palavra que conduz este livro, dedicado ao bairro Bushwick (1970-90), onde a autora cresceu.
* Jacqueline Woodson apresenta à leitora e ao leitor diversas músicas que vão compondo o dia a dia de Augusta, Angela, Gigi e Sylvia. Uma dica adicional é escutar a playlist que a Todavia criou para o livro, que contém várias das canções que aparecem ao longo da narrativa.
Por Vitória Gonzalez
Sob três bandeiras: Anarquismo e imaginação anti-colonial
Benedict Anderson
Sob três bandeiras: Anarquismo e imaginação anti-colonial é um livro inusitado. Isso porque, em primeiro lugar, Anderson escolhe tratar do nacionalismo anti-colonial do século XX enfatizando uma revolução particularmente desconhecida, a Filipina. Em segundo lugar, porque ele oferece destaque a dois personagens do movimento nacionalista filipino que também eram respectivamente romancista e folclorista: José Rizal e Isabelo de los Reyes. Por último, o referido livro é inusitado pois analisa os entroncamentos concretos entre ideologias e grupos políticos quase sempre apresentados de forma compartimentada, isto é, anarquistas e nacionalistas anti-coloniais. Em suma, trata-se de um livro que aborda um momento político, social e cultural específico da história da humanidade a partir da notabilização de redes improváveis, articulações invisibilizadas e posições geopolíticas diversas.
Por Rafael Rezende
O avesso da pele
Jeferson Tenório
Se fosse julgar o livro apenas pela capa, O avesso da pele já teria minha simpatia garantida. A leitora(o) ainda não sabe, mas o mergulho que se anuncia no azul da capa, e o receio de cair na água, descrevem perfeitamente a maneira como devemos nos aproximar do novo livro de Jeferson Tenório: com cautela. Recém publicado pela Cia das Letras, o terceiro livro do autor carioca, radicado em Porto Alegre, faz uma descrição minuciosa sobre os processos subjetivos de compreensão do racismo por Pedro, jovem negro que acabou de perder o pai. Através da reconstrução das trajetórias de vida de seu pai, Henrique, e de sua mãe, Martha, Pedro revisita dolorosos processos familiares e afetivos que foram marcados indelevelmente pela violência do racismo, salientando as nuances que o fenômeno adquire ao ser contado a partir do sul do país, uma região que insiste em vender um retrato onde não há pessoas negras. Ainda que nem o racismo e nem a violência policial sejam exclusividade da região, Tenório deixa claro que “no sul do país, um corpo negro será sempre um corpo em risco”. Através de uma escrita envolvente, a narrativa ganha potência justamente pela simplicidade com a qual nos apresenta personagens complexos, ao mesmo tempo em que os reconhecemos, nos identificamos. A delicadeza da escrita de Jeferson Tenório não suaviza a dureza dos eventos vividos por Pedro e sua família. Juntando alguns pedaços de memórias, colhidas aqui ou ali, inventando para si outras, Pedro tenta recriar a vida de seu pai, um homem comum, professor de literatura da rede pública, como forma de lidar com o absurdo da morte. Ao reconstruir a memória paterna, o narrador reconstrói os eventos que culminaram em sua própria existência, desenrolando os fios de sua história familiar. O racismo que mora nos detalhes, para além das abordagens policiais, é narrado de maneira excepcional, o que faz de O avesso da pele um livro indispensável para compreender seus mecanismos estruturais de funcionamento. Ler Jeferson Tenório é preservar o avesso.
Por Luna Campos
No jardim do Ogro
Leïla Slimani
No Jardim do Ogro ("Dans le Jardin de l´Ogre", Ed.Gallimard) é o primeiro livro da jovem autora franco-marroquina Leïla Slimani, publicado no Brasil pela Editora Planeta em 2019, que venceu, em 2016, o renomado Prêmio Goncourt com o romance Canção de ninar. As 192 páginas desse jardim grotesco fazem o/a leitor/a oscilar entre sentimentos de incômodo e fascínio, adjetivos que também poderiam ser utilizados para Canção de ninar. Alguém grita Salope (vagabunda, em uma tradução aproximada) em determinado momento do livro, em um desconforto que permanece em toda a leitura. A protagonista Adèle nos envolve com frequência em suas tramas, suas formas de burlar as convenções sociais presumidas na vida de uma jornalista, especialista em Política Internacional, casada e que vive no coração de Paris. Nada disso parece importar muito para Adèle. O romance é dividido em duas partes e podemos sentir a inflexão na vida da protagonista, suas tentativas de conformidade e adaptação à vida perfeita que todos acham que ela possui. Os demais personagens parecem ofuscados pela jovem, opacos e quase sem nome, se possuem, é tudo que o leitor recebe nesse catálogo de formas de conformação. Só Adèle nos salta à luz e sua necessidade inebriante de sentir alguma coisa. O romance é também uma história de integração social na França contemporânea. Adèle saiu do subúrbio de Boulogne-sur-Mer no qual ainda vivem seus pais para um dos arrondissements em Paris. O Jardim do Ogro conta a vida de Adèle, casada com um jovem cirurgião e com um filho pequeno, mas sobretudo a integração ligeiramente perversa das classes populares na França. Sua sogra, melhor amiga, os amigos de seu marido, todos parecem notar a trajetória ascendente da protagonista. Ela que não se dá conta, retratada como alguém com poucos sentimentos e, em uma busca contínua por sentir alguma coisa. A falsa integração que a faz buscar sexo em grandes quantidades, com estranhos, em condições desfavoráveis, foi o que capturou grande parte da crítica, a julgar pelas capas das edições de bolso francesas e das resenhas publicadas em português. O que pouco se menciona é a doce crueldade das quase duzentas páginas, como elemento central no livro, mas não qualquer crueldade, "a dos que se sabem amados", escreve Leïla.
Por Simone Gomes
Maratona de Domenico Starnone
A primeira coisa que despertou meu interesse para ler Domenico Starnone foram os boatos da relação do autor com a escritora Elena Ferrante. A autora publica a partir de um pseudônimo, o que favorece toda a sorte de suposições sobre sua verdadeira identidade. Quando as traduções de Starnone passaram a circular no Brasil, apareceu a hipótese de que o autor poderia ser a figura por trás do fenômeno Ferrante. Um homem, portanto, daria corpo às ideias que costumam ser associadas à compreensão aguçada do universo “feminino”. Embora essa fofoca não tenha credibilidade, o argumento por trás dela é interessante e se pauta na similaridade da escrita de Ferrante e Starnone, bem como no diálogo entre suas obras. Nesse sentido, é uma forma contundente de oposição ao mito de que existe uma escrita “feminina” ou “masculina” na literatura. Por outro lado, Starnone também representou para mim a retomada da leitura de autores homens depois de uma longa temporada lendo só mulheres. Se a naturalização de papeis de gênero para caracterizar qualidades literárias me parece um equívoco, é também verdade que o cânone literário, dominado por homens brancos, reproduziu historicamente diversos tipos de preconceitos contra outros grupos sociais. Starnone, contudo, mergulha de maneira tão competente na construção de seus personagens que não deixa espaço para incômodos desse tipo. Três livros do autor estão disponíveis no país: Laços (2017), Assombrações (2018) e Segredos (2020), todos editados pela Todavia. As obras são curtas e envolventes, permitindo a sensação prazeirosa, nem sempre presente em nossas leituras, de que as páginas foram engolidas sem exaustivo dispêndio de tempo. Trata-se de uma imersão nas complexas relações interpessoais que vale à pena e prende a atenção. Mas não só isso. Além de aspectos de organização da vida familiar e da criação de ressentimentos individuais, cada um dos livros apresenta detalhes de trajetórias atravessadas pelo mundo acadêmico, artístico ou editorial, assim como pelas desigualdades de gênero. Em Laços, única das obras a ser precedida por um introdução, de autoria de Jhumpa Lahiri, há reflexões sobre a atividade da escrita e a educação. Lahiri pontua que o livro é para ser lido muitas vezes e que a instigou a pensar seu próprio ofício de escritora:
Escrever é um jeito de resgatar a vida, de dar-lhe forma e significado. Escrever expõe aquilo que escondemos, desenterra o que negligenciamos, o que lembramos mal, aquilo que negamos. É um método para capturar, para prender algo num lugar, mas também é uma forma de verdade, de libertação.
Por Marcia Rangel Candido