MACHADO DE ASSIS E JÚLIA LOPES DE ALMEIDA EM DIÁLOGO: GÊNERO E HISTÓRIA EM PERSPECTIVA LITERÁRIA
Arcos da Lapa durante as obras de reurbanização promovidas pelo prefeito Pereira Passos (1903-1906), Rio de Janeiro, c. 1905. Marc Ferrez / Coleção Gilberto Ferrez / Acervo IMS.
Brás Cubas, o defunto-autor de Memórias póstumas de Brás Cubas [1], apareceu ao público carioca pela primeira vez entre março e dezembro de 1880, na Revista Brazileira. Nas memórias narradas, ele se debruça sobre o cotidiano da Corte imperial, habitada por grupos abastados, como a fictícia família Silveira, nascida da pena de Júlia Lopes de Almeida, que, entre abril e maio de 1913, traria uma de suas herdeiras como protagonista de outro folhetim, A Silveirinha: crônica de um verão [2], publicado no famoso Jornal do Comércio e, no ano seguinte, em livro.
Com 33 anos diferença, Memórias póstumas e A Silveirinha marcam o momento da virada entre os séculos XIX e XX, narrando as nuances, hipocrisias, relações sociais e jogos de poder das classes mais altas da então capital brasileira. Na obra machadiana, é contada a história de Brás Cubas, típico homem branco e herdeiro de uma família proprietária de escravizados, cuja vida se desenvolve em meio à esdrúxula participação na política, nos bailes, em investimentos capitalistas e em relacionamentos problemáticos com diferentes mulheres, morrendo, enfim, solteiro e sem filhos. No enredo, o narrador e protagonista além-túmulo utiliza a prerrogativa da morte para contar tudo e criticar a todos, principalmente a hipocrisia da sociedade burguesa carioca de meados do século XIX [3].
Na obra de Júlia, por sua vez, Silveirinha, conhecida pelo seu sobrenome de solteira por sua personalidade determinada, é a personagem central do romance, que busca retratar o cotidiano do verão em Petrópolis e as interações dadas entre diferentes famílias da elite. O foco é a tentativa da jovem protagonista de converter o marido ateu ao catolicismo, enquanto outros personagens dão o tom de uma sociedade interesseira. Nesse sentido, chama atenção o enfoque sobre as mulheres e seu cotidiano, assim como seus laços de amizade e de intriga. Além disso, notam-se as agências femininas possíveis diante de uma sociedade na qual, supostamente, todo o poder social, político e econômico estaria nas mãos dos homens.
Ambos os romances, portanto, preocupam-se com as elites e suas dinâmicas sociais. Os anos de diferença entre as publicações nos transportam de um mundo onde a escravidão ainda não havia sido abolida a outro não muito distinto em que, após a abolição, a burguesia consolidava seus espaços excludentes e atitudes higienistas, racistas e, claro, patriarcais.
Machado de Assis, ao publicar o folhetim Memórias póstumas de Brás Cubas, construiu um narrador memorialista que dialogava com o conteúdo da própria Revista Brazileira, circulando no Rio de Janeiro com grande sucesso, especialmente na fase em que era editada por Nicolau Midosi, entre junho de 1879 e dezembro de 1881, período de crise aguda do sistema escravista e de perda da legitimidade da monarquia de D. Pedro II. A cronologia do romance enfatiza as décadas de 1840 e 1850, ofertando um testemunho irônico da classe senhorial até então segura de si; mas que, a partir de mudanças na legislação escravista, como a aprovação da lei contra o tráfico de escravizados (1850), começou a vislumbrar um período de crise diante da possibilidade do fim da escravidão, viga sustentadora dessa classe social.
Assim, o narrador masculino e portador do ideário senhorial – escravista, misógino, irônico e manipulador – foi uma constante em vários narradores machadianos, como Brás Cubas. Contudo, Machado de Assis também costurou em suas obras as estratégias adotadas pelos dependentes, homens e mulheres livres e pobres, bem como pelos escravizados e escravizadas que conseguiam burlar regras sociais e aproveitar as fissuras produzidas pela violência senhorial, um ponto chave para a construção do enredo de suas obras literárias. Nesse sentido, em Memórias póstumas, o autor criou “narradores que pareciam viver e expressar apenas aquilo que era rigorosamente compatível com as expectativas dos leitores/senhores” (Chalhoub, 2003, p.93). Tal faceta da obra machadiana mostrou-se mais evidente com base em estudos que ressaltaram o peso da vivência do escritor enquanto um homem negro, funcionário público e extremamente crítico em relação à sociedade escravista e monarquista (Pinto, 2018).
Se, em Memórias póstumas, Machado de Assis já se preocupou em traçar um retrato da hipocrisia burguesa no Rio de Janeiro do século XIX, em A Silverinha, Júlia Lopes de Almeida traz as continuidades e descontinuidades dos hábitos da elite carioca no início do século XX, com aproximações e distanciamentos da obra machadiana. Sobretudo no que tange às diferenças, podemos pontuar a perspectiva masculina e a perspectiva feminina, pois Memórias póstumas, mesmo em sua crítica à cultura patriarcal, assumiu o ponto de vista masculino para a narrativa.
Na obra de Júlia, os bailes e os jantares ainda se mostram essenciais para a consolidação de relações de interesse econômico. Os debates políticos, contudo, mudam de figura: décadas depois, em plena República, aqueles que ainda resistem em defender o monarquismo são poucos. A ciência e a medicina, por outro lado, ganham um espaço cada vez maior na sociedade. Contudo, as permanências são visíveis, como o respeito a títulos nobres, a influência da Igreja e a prática do casamento arranjado.
Ao contrário da obra de Machado, porém, o foco principal e prioritário de A Silverinha são as personagens femininas e suas complexidades, algo frequente na escrita de Júlia Lopes de Almeida (Telles, 2012, p. 455). Assim, se Brás Cubas narra os comportamentos dos homens no mundo tanto público quanto privado, com a escritora, o foco se desloca para figuras como a Silveirinha, personagens entre a autonomia feminina e o moralismo cristão. Por um lado, essa protagonista é posta como uma “carola”, termo para mulheres conhecidas por sua frequência nas missas e pela grande inserção nas atividades das igrejas católicas. Por outro lado, expõe opiniões de independência, como na discussão em que pergunta, de forma irônica: “Mas uma mulher casada não deve ter opiniões próprias, não é verdade?” (Almeida, 1997, p.10).
Assim como Brás Cubas, narrador contraditório machadiano que, por vezes, afirma sua falta de ética, e, por outras, tece críticas essenciais às práticas burguesas, Silveirinha encontra-se no lugar entre o normativo e a transgressão. Em ambos os casos, nota-se, da parte dos autores, a preocupação em apresentar a complexidade humana e em criticar as classes sociais abastadas, mostrando as práticas caricaturadas e paradoxais de seus protagonistas. Contudo, vale reforçar que as duas narrativas são marcadas também pela diferença de gênero dos autores: se, por um lado, Brás apresenta uma perspectiva masculina sobre as dinâmicas sociais e as agências das mulheres na elite, por outro, Júlia Lopes de Almeida cria Silveirinha e outras personagens femininas que protagonizam o enredo nesse mundo burguês e são o centro da obra, apresentando como a importância dos jogos de poder articulados pelas mulheres é muito maior do que poderíamos supor. Há uma percepção das próprias personagens da obra sobre essa dimensão, ao exporem que “nenhuma cidade do mundo tem durante tantas horas uma sociedade quase exclusivamente feminina como Petrópolis, de dia, no verão”, e alegando que a vida longe dos maridos “era uma das vantagens daquela estação” (Almeida, 1997, p. 126).
Um dos outros grandes pontos privilegiados por Machado de Assis e Júlia Lopes de Almeida é a questão do adultério, via de entrada para a problematização da hipocrisia reinante na sociedade brasileira do entresséculos. Em Memórias póstumas, Virgília, namorada da juventude e amante do narrador-personagem por muitos anos, percebe que seu caso amoroso é assunto de “suspeita pública”. Para manter as aparências e fugir ao julgamento da opinião alheia, os amantes arranjam uma casinha para encontros, o que dava a Brás “uma aparência de posse exclusiva, de domínio absoluto, alguma coisa que me faria adormecer a consciência e resguardar o decoro”. Para ele, solteiro e desimpedido, a casinha significava um mundo à parte, uma utopia sem normas sociais; para Virgília, a possibilidade de manter tanto seu caso extraconjugal como seu casamento com Lobo Neves, político promissor que lhe proporcionava uma situação social e econômica de destaque.
Contudo, se no romance machadiano a perspectiva da agência feminina pode ser capturada a contrapelo da perspectiva de um narrador masculino, em A Silveirinha, Júlia aborda o próprio posicionamento das mulheres. Dessa forma, a literata preocupa-se em apresentar, em tom crítico, a sociabilidade feminina burguesa, muitas vezes supérflua, porém, por outro lado, retrata um mundo de mulheres responsáveis por costurar redes de sociabilidade que influenciam o cotidiano privado e público do ambiente urbano.
No desenrolar da história, o adultério mostra-se parte fundamental dos laços que compõem essa sociedade elitizada. Em uma cena que apresenta um encontro de amigas para um almoço, por exemplo, uma das damas presentes conta sobre suas experiências em uma viagem ao exterior. Dessa forma, o assunto recai sobre um flirt que teria ocorrido com um príncipe indiano. Ela conta que, em Nice, fora apresentada ao nobre, com quem teria passeado de carro pela cidade. “À noite, dançamos num baile e trocamos sorrisos num terraço civilizado, sombreado de mimosas”, conta ela, afirmando que, após uma semana, cada um voltaria a seu país e “mais nada” aconteceria. Ao fim da sua narrativa, a personagem é perguntada sobre o esposo pelas amigas, ao que ela responde: “meu marido tem muito espírito para me proibir um flirt inocente” .
Outra situação de destaque na cena do almoço é a história das irmãs Guimarães – ambas casadas – sobre uma viagem a Paris e a Viena. Na ocasião, elas comentam terem ido a um sanatório tomar “banhos de ar”, ou seja, andarem nuas em recintos abertos separados por sexo como forma de tratamento de saúde. A experiência causa riso entre as colegas, em especial quando as mulheres comentam sobre as fotografias dos homens que frequentavam o espaço. Segundo elas, apenas eles se deixavam fotografar nus, ao que outra zomba: “percebo agora! [...] porque vocês gostavam de folhear os álbuns de fotografias…”.
As referências desinibidas à sexualidade feitas pelas personagens femininas podem, muitas vezes, causar um estranhamento diante de um momento histórico largamente trabalhado pela historiografia, conhecido pela emergência de discursos científicos que associavam os corpos das mulheres à domesticidade. Como Margareth Rago (2014) comenta, porém, diversas foram as disputas diante desses discursos médicos, tanto da parte das classes mais baixas, foco das políticas higienistas do momento, quanto das mulheres. A própria Júlia Lopes de Almeida é um exemplo, ao lado de outras escritoras da época, já que se posicionava sobre assuntos caros ao debate feminista da época, como o direito ao divórcio e a ampliação da educação feminina.
Retomando a temática do adultério, também são perceptíveis as aproximações entre personagens masculinos e situações dos dois romances. Em Memórias póstumas, Brás Cubas se envolve com Virgília por orgulho, por ter sido trocado, na juventude, por outro homem de futuro mais promissor. Em A Silveirinha, temos Ludgero, jovem ambicioso que passa a frequentar Petrópolis como um familiar distante de Madame Z, conhecida por seu comportamento reservado. Vendo nas redes da elite carioca uma oportunidade de ascensão social, Ludgero passa a jogar com as especulações de que teria um caso com a parente, ao mesmo tempo em que marca encontros amorosos com Xaviera, amiga de Z.
Contudo, Júlia não nos priva da interpretação das próprias mulheres sobre a situação. No caso, Xaviera destaca, em seus pensamentos, que em momento algum acredita em um sentimento da parte de Ludgero e, pelo contrário, afirma que o conquistaria apenas pois “quereria disputá-lo à amiga, não por ele, que lhe parecia insignificante de tipo e acanhado de ideias; mas pela outra, a Zélia, silenciosa, que a enganava há tanto anos com uma pele de honestidade” (Almeida, 1997, p. 93).
Assim, à guisa de conclusão, percebemos que, nas duas obras, encontramos temáticas comuns e críticas que dialogam entre si. Contudo, percebemos diferentes olhares sobre o mundo burguês: enquanto Machado de Assis prioriza a crítica da perspectiva masculina sobre personagens femininas, Júlia Lopes de Almeida oferece protagonismo às movimentações das próprias mulheres em uma sociedade permeada de moralismos e hipocrisias, mas na qual construíam espaços de relativa agência e autonomia. Como já pontuado por Rita T. Schmidt (2017, p.57), a construção “de categorias denominadas ‘universais’ ou básicas à condição humana, não deixa de ser uma forma de neutralizar a importância e a diferença da experiência feminina”, ou seja, há uma invisibilização das potências transgressoras da escrita de autoria feminina. Portanto, ressaltamos que, se ambos os autores propõem uma crítica à sociedade de sua época, suas narrativas são marcadas por perspectivas de gênero e tratam de formas diferentes a insubordinação feminina no interior do núcleo familiar burguês carioca.
NOTAS
[1] ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo, FTD, 1997 [1ª publicação em 1881].
[2] ALMEIDA, Júlia Lopes de. A Silveirinha. Florianópolis: Editora Mulheres, 1997 [1ª publicação em 1914].
[3] A intenção mostra-se já no epílogo da primeira versão do romance, publicada em folhetim, com uma citação de William Shakespeare, da peça As you like it: “I will chide no breather in the / world but myself; against whom / I know most faults. Não é meu intento criticar / Nenhum fôlego vivo, mas a mim / Somente, em que descubro muitos / Senões. (Skakespeare, As you like it, act III, sc II)”. Retirado de: REVISTA BRAZILEIRA. Rio de Janeiro: Hemeroteca Digital (Biblioteca Nacional), 15 mar. 1880, p. 353. Nessa revista, foram publicadas a frase de Skakespeare e a tradução feita por Machado de Assis.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Júlia Lopes de. (1997), A Silveirinha: crônica de um verão. Florianópolis: Editora Mulheres. 1ª publicação em 1914.
ASSIS, Machado de. (1997), Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo, FTD. 1ª publicação em 1884.
CHALHOUB, Sidney. (2003), Machado de Assis, Historiador. São Paulo: Companhia das Letras.
JORNAL DO COMÉRCIO. Rio de Janeiro: Hemeroteca Digital (Biblioteca Nacional), 1827-2016.
PINTO, Ana Flávia Magalhães. (2018), Escritos de liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil oitocentista. Campinas, SP: Editora UNICAMP.
RAGO, Margareth. (2014), Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar e resistência anarquista, Brasil 1890-1930. São Paulo: Paz e Terra, 4ª edição.
REVISTA BRAZILEIRA. Rio de Janeiro: Hemeroteca Digital (Biblioteca Nacional), 1879-1891.
SCHMIDT, Rita Terezinha. (2017), Descentramentos/convergências: ensaios de crítica feminista. Porto Alegre: UFRGS.
TELLES, Norma. (2012), Encantações: escritoras e imaginação literária no Brasil, século XIX. São Paulo: Intermeios.
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* Este texto é uma versão condensada do artigo “Entre Brás e Guiomar: gênero e história das mulheres em Machado de Assis e Júlia Lopes de Almeida”, publicado na revista Ars Historica, nº 19, jul./dez. 2019, p. 181-200, disponível em:
Gabriela Simonetti Trevisan é Mestra em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas.
Laila Correa e Silva é Doutoranda em História Social pela Universidade Estadual de Campinas, com apoio FAPESP.
Como citar esse texto: TREVISAN, Gabriela S. & CORREIA E SILVA, Laila. (2020), "Machado de Assis e Júlia Lopes de Almeida em diálogo: gênero e história em perspectiva literária". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/09/23/MACHADO-DE-ASSIS-E-JULIA-LOPES-DE-ALMEIDA-EM-DIALOGO
Editora Responsável: Luna Ribeiro Campos