PARTICIPAÇÃO POLÍTICA, PARIDADE DE GÊNERO E VIOLÊNCIA POLÍTICA CONTRA MULHERES
Foto: Ananda Winter. Bolívia.
Em julho de 2018 cheguei em La Paz, Bolívia, para realizar a pesquisa de campo de minha dissertação de mestrado. Naquele momento, estava interessada em compreender como este país havia se tornado um dos países com maior número de mulheres eleitas para o parlamento no mundo. Para isso, investiguei os caminhos para a paridade de gênero conquistada na Bolívia por duas vias, uma de atuação e avanços institucionais e outra que recupera uma trajetória de sentidos atrelados à paridade, sentidos que se encontram e se comunicam, seja estrategicamente, seja como um efeito do tempo que os transforma.
Em termos dos avanços legais e institucionais, os caminhos para a paridade podem ser retraçados a partir da institucionalização de cotas de candidaturas femininas em 1997, de forma mais abrangente, e, de forma mais específica, a partir do início da Assembleia Constituinte, em 2006. Seguindo a onda de adoção de mecanismos para aumentar a representação descritiva de mulheres (Krook, 2009), em 1997 a Lei nº. 1779 de Reforma e Complementação do Regime Eleitoral estabeleceu que pelo menos 30% das listas de candidaturas de deputados/as plurinominais deveria ser preenchida por mulheres. No entanto, mesmo com as listas fechadas e a exigência da lei de que a cada três candidaturas uma fosse feminina, a lei também alterou o sistema eleitoral, ampliando o número de candidaturas uninominais, de forma que deputados/as plurinominais não eram nem 50% da Câmara baixa, o que teve grande peso para a ineficácia das cotas.
Assim, é difícil estabelecer uma comparação entre o percentual de deputadas nacionais eleitas antes e depois da adoção de cotas, já que houve ao mesmo tempo uma mudança de sistema. Convém notar, contudo, que apesar dos 30% de reserva, o percentual de deputadas plurinacionais eleitas como titulares correspondeu a 17,74% (Albaine, 2009). No ano 2000, as cotas se estenderam para o Senado, assim, uma a cada quatro candidaturas departamentais, titulares e suplentes, deveria ser feminina. Outro passo importante, aconteceu em 2004 com a Lei de Agrupações Cidadãs e Povos Indígenas, que determinou que 50% de tais candidaturas fossem de mulheres. Assim, a lei que permitiu que além de partidos políticos, agrupações cidadãs e povos indígenas também pudessem postular candidaturas, foi a primeira a instituir candidaturas paritárias[1].
Mas a paridade de gênero, de forma específica e com um sentido próprio, entra em cena a partir dos preparativos para a Assembleia Constituinte, iniciada em 2006, e começa a se materializar com a Constituição do Estado Plurinacional da Bolívia, aprovada em 2009. Nela, foram incorporados os princípios da paridade de gênero através da garantia de participação igual e equitativa de mulheres e homens nos espaços de representação. Os meios práticos para a paridade foram instituídos em seguida, na Lei nº. 026 de Regime Eleitoral de 2010. A partir de então, as listas de candidatos/as ao Senado, à Câmara de Deputados, às Assembleias Departamentais, Regionais e Municipais passaram a respeitar a paridade e a alternância de gênero entre homens e mulheres. As listas devem começar com uma titular mulher e, depois, seguem de forma alternada. Além disso, para cada titular mulher, deve haver um suplente homem e vice-versa. Nos casos de candidaturas uninominais, a paridade e alternância são asseguradas através da exigência que do total destas candidaturas apresentadas por um partido ou agrupação, 50% sejam de mulheres.
No artigo "Os Sentidos da Paridade Gênero na Bolívia e os Elementos da sua Constante Transformação" (Winter, 2019), eu me debruço sobre a segunda via desses caminhos, ou seja, os sentidos atrelados à paridade de gênero por mulheres que participaram das etapas da sua institucionalização. Esses sentidos que passam por diferentes eixos de definição são móveis e se transformam de forma estratégica, mas também como resultado das experiências de mulheres que passaram a adentrar o espaço político institucional nos últimos anos. No trabalho supracitado, identifiquei três principais eixos de definição, (1) um que relaciona a paridade de gênero a um princípio básico para a democracia, (2) outro que a aproxima da complementaridade andina, o chachawarmi, refletindo o cenário de transformação e reposicionamento das culturas e cosmologias originárias, e, por fim, (3) uma definição que reflete sobre a representação substantiva de mulheres.
Esta última, no entanto, parece uma ponte para novos sentidos. Isso porque frustrações sobre a representação substantiva de mulheres foram expressas de maneira conectada com outra fonte de insatisfação, a ausência de paridade substantiva, ou seja, a assimetria entre paridade de presença e paridade de poder na esfera representativa. A este respeito, dois pontos pareceram gerar consenso, quais sejam, a violência política sofrida pelas mulheres eleitas e as diversas formas através das quais ela se manifesta em conjunto com a criatividade com a qual os partidos políticos e seus líderes têm criado formas de burlar as novas leis de paridade de gênero.
Este trabalho teve entre os seus resultados principais a conclusão de que os sentidos atrelados à paridade de gênero mantém uma constante interação com as experiências de mulheres no espaço representativo, transforma-se e se amplia frente às quebras de expectativas do potencial da paridade (numérica) diante de novos obstáculos, expressos através de variadas formas de violência política contra mulheres. Foi assim que alcancei a violência política como mais um obstáculo que se impõe à plena participação política de mulheres, mesmo depois da sua entrada na política formal, como um tema fundamental a ser incorporado em minha agenda de pesquisa.
Embora o estudo exposto aqui tenha sido meu percurso para chegar neste tema, em um cenário onde há um relativo aumento[2] de participação política de mulheres à nível global e regional, parece haver um movimento maior da literatura que, acompanhando o movimento das mulheres eleitas, volta-se às experiências de violência que reduzem as possibilidades de atuação política das mulheres que acessam espaços institucionais de poder. Apesar das violências sofridas por mulheres que acessam o espaço da política formal não ser uma novidade, a maior visibilidade do fenômeno e os esforços para nomeá-lo, dentro da academia ou não, são recentes (Krook, 2020; Matos, 2020; Bardal et. al., 2019; Biroli, 2016; Restrepo Sanin, 2018).
Termos como “violência política contra mulheres”, “violência contra mulheres na política” (Krook, 2020; Restrepo Sanin, 2018), “violência política sexista” (Matos, 2020) e “violência política de gênero” (Bardall et. al., 2019) aparecem descrevendo fenômenos distintos ou atos que têm como alvo diferentes grupos de agentes políticas; de forma que para diferentes objetos de pesquisa, um ou outro destes conceitos se torna mais adequado. Mapear estes conceitos sem perder a conexão com como as mulheres que estão sujeitas a essas violências as identificam e as percebem, parece-me um passo natural de uma agenda de pesquisa que percebe que desafios à paridade de gênero, em um sentido muito mais próximo de democracia paritária, continuam ativos mesmo quanto atingida a paridade em sentido estritamente numérico.
NOTAS
[1] Aqui, é interessantes considerar que, em 2004, quando é aprovada a lei que permite candidaturas por agrupações cidadãs e povos indígenas, a Bolívia está no auge da crise que leva ao colapso do sistema partidário; diante deste cenário, as agrupações cidadãs somadas aparecem como segunda maior força política, atrás apenas do IPSP-MAS.
[2] Aqui considero os dados mapeados pelo IPU – Inter-Parliamentary Union nos últimos dez anos. Assim, temos que o percentual mundial de mulheres na Câmara Baixa ou única dos últimos dez anos passou de 19% para 24,9%. A nível das Américas, passamos de 22,1% para 31,1%. Já olhando especificamente para os países que serão futuramente estudados, temos um avanço tímido no Brasil de 8,8% para 14,6% e um avanço expressivo na Bolívia de 22,3% para 53,1%. Disponível para download em: https://www.ipu.org/resources/publications?field_publication_type_target_id_selective=48&field_theme_target_id_selective=88&field_country_target_id_selective=All. Acesso em: 30 out. 2020.
REFERÊNCIAS
ALBAINE, Laura. (2009), "Cuotas de Género y Ciudadania Política en Bolivia". Margen, [S.l.], n. 55, p. 1-10. Disponível em: <https://www.margen.org/suscri/margen55/albaine.pdf>. Acesso em: 04 dez. 2018.
ASAMBLEA LEGISLATIVA PLURINACIONAL. Lei nº 026, de 30 de junho de 2010. Ley del Régimen Electoral. La Paz, 2010. Disponível em: http://pdba.georgetown.edu/Electoral- /Bolivia/Ley26-2010.
BARDAL, Gabrielle; BJARNEGARD, Elin; PISCOPO, Jennifer M. (2019), "How is Political Violence Gendered? Disentangling Motives, Forms and Impacts". Political Studies, s/n, p. 1 – 20.
BIROLI, Flavia. (2016), "Political Violence Agaisnt Women in Brazil: expressions and definitions". Direito e Práxis, v.7, nº. 15, p.557 – 589.
CONGRESO NACIONAL. Ley nº 1779, de 19 de março de 1997. Ley de Reforma y Complementación al Régimen Electoral. Reforma Electoral, La Paz, Bolivia, p. 1 -12, 19 mar. 1997.
KROOK, Mona Lena. (2009), Quotas for Women in Politics: Gender and Candidate Selection Reform World Wide. Oxford University Press.
KROOK, Mona Lena. (2020), Violence Against Women in Politics. Oxford University Press.
MATOS, Marlise. (2020), "Mulheres e Violência Política Sexista: desafios à consolidação da democracia". In: BIROLI, Flávia et. al. Mulheres Poder e Ciência Política. Editora da UNICAMP, Campinas.
RESTREPO SANIN, Juliana. (2018), Violence Against Women in Politics in Latin America. Orientador: Mona Lena Krook. 239 p. Tese (Doctor of Philosophy) - Graduate Program in Political Science, Rutgers University, New Brunswick, New Jersey, 2018.
WINTER, Ananda. (2019), "Os Sentidos da Paridade de Gênero na Bolívia e os Elementos da sua Constante Transformação". Revista Novos Rumos Sociológicos, V. 7, nº. 11, p. 162-196.
Ananda Winter é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher (NEPEM) da mesma universidade. Neste ano, Ananda ganhou o prêmio ABCP-ONU Mulheres de melhor artigo de gênero e política publicado em revistas acadêmicas no Brasil por "Os sentidos da paridade de gênero na Bolívia e os elementos da sua constante transformação".
Editora Responsável: Marcia Rangel Candido