ABORTO LEGAL E SEGURO NA ARGENTINA: A CONJUNTURA DE UMA VITÓRIA
Acción fotográfica comisión de géneros @argra_
Por Marilia Moschkovich[1]
Características da história recente argentina que contribuíram para a vitória de hoje:
1) Um trabalho sistemático e intenso, após o fim da ditadura, de condenação criminal dos ditadores, reparação histórica das vítimas, e um super trabalho de memória. Para que nunca mais aconteça!
2) Uma tradição forte de movimentos populares de bairro/vizinhos. Isso foi crucial para a experiência política de levante popular dos panelaços da crise de 2001. Essa experiência marcou muita gente e criou laços solidários importantes com a política e a esquerda.
3) Regulamentação dos meios de comunicação (Ley de Medios). Mais do que isso, dispositivos legais para coibir/proibir que a mídia de massas reforçasse machismo, racismo, e outras formas de violência simbólica. É muito louco ler jornais argentinos, pois até os mais conservadores têm em geral uma abordagem razoável para os casos de estupro, assédio, etc. Isso, inclusive, muito antes de qualquer "metoo". Não tinha nem o Ni Una Menos na primeira vez que morei lá e já era assim.
4) Desde 2012, lei nacional garantindo o direito à identidade de gênero.
5) Falando em Ni Una Menos, vale lembrar que não foi um "movimento de internet". Muito pelo contrário, essa estrutura de proximidade do feminismo com os movimentos populares é forte no NiUna. O movimento se estruturava por comitês populares de bairro/cidade do qual participavam (inclusive homens) representantes de sindicatos e associações profissionais, militantes de diversos partidos de esquerda, coletivos, independentes... uma frente de esquerda real!
6) Também tem muita importância o que era a lei de aborto antes dessa aprovação da legalização hoje. Vejam só: a lei argentina definia o aborto como delito criminal exceto quando estivessem ameaçadas a vida OU A SAÚDE da mulher. Foca nesse "saúde": em 2007, as cortes do país interpretaram que quando a lei diz "saúde", isso INCLUI a saúde psicológica. Ou seja, desde 2007 já havia lá um reconhecimento de que uma gravidez não-desejada causa danos psicológicos e que essa saúde integral das mulheres importa.
7) Isso fez com que diversas organizações feministas conseguissem apoiar concretamente mulheres, pessoas não-binárias e homens trans vivendo gravidezes indesejadas a dispor de seu direito ao aborto. Isso não é o mesmo que a legalização, mas passa-se a quebrar o tabu do aborto.
8) Quebrar o tabu no sentido mais explícito mesmo: as pessoas podiam FALAR sobre isso sem medo, podiam contar suas histórias, etc. e aquela ideia de que aborto é uma coisa horrível, que estraga a vida da pessoa, que causa sofrimento, etc. simplesmente vai sendo desmantelada.
9) É aí que chegamos no dia de hoje, na campanha dos pañuelos verdes, nessa vitória histórica! Escrevi esse fio no intuito de desmistificar a impressão de algumas pessoas de que haveria algo muito mágico e único na Argentina. Não há. Há política, em várias de suas formas. Há coalizões. Há políticas públicas para igualdade de gênero, educação para igualdade de gênero. Enfim, uma série de fatores históricos ligados à luta política lá. Então fica o convite pra gente olhar a história argentina, se inspirar e pensar pra onde vamos e como.
NOTAS
[1] Este post foi originalmente partilhado no Twitter. Disponível em: https://twitter.com/MariliaMoscou/status/1337375692305133572?s=20
Marília Moschkovich é Socióloga (MA/PhD), Professora do FLACSO e do Instituto Gerar de Psicanálise, em São Paulo/SP. É pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença (NUMAS) da Universidade de São Paulo. É colaboradora no Jacobin Brasil e no Blog da Boitempo.
Editora responsável: Marcia Rangel Candido
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