CRISES DO CAPITALISMO TARDIO E A EXPANSÃO DA CONDIÇÃO PERIFÉRICA
Resumo
Um diagnóstico geral parece atravessar eixos temáticos distintos e divergências teóricas no campo da teoria social: vivemos um tempo marcado por profundas e generalizadas crises - econômica, ecológica, política e social. A pandemia de COVID-19, que segue acumulando números desastrosos de mortes e contaminados, parece agudizar tal situação. Diante disso, o presente texto busca elaborar uma breve reflexão sobre o atual momento de crise do capitalismo tardio através da articulação de elaborações teóricas desenvolvidas por pensadores contemporâneos e a discussão a respeito da expansão da condição periférica sobre os países centrais. Ao final, serão apresentadas algumas considerações de tais debates para os campos da teoria social e da organização política nos dias de hoje.
1) Crises do capitalismo tardio e expansão da condição periférica
Na maior parte das vezes, falar sobre crises contemporâneas significa falar também do conceito de globalização. Afinal, vivemos em mundo cuja profunda interdependência entre os indivíduos constitui um dos principais aspectos da vida social - assunto já debatido por Giddens (1991) e Beck (2010) décadas atrás ao abordarem, respectivamente, a “modernidade reflexiva” e a “sociedade (industrial) de risco”. Segundo Held e McGrew (2000), a despeito das controvérsias em torno da utilização de tal categoria, a “globalização” diz respeito - dentre outros fatores - a uma “compressão espaço-temporal” e a uma “interdependência acelerada” em “um mundo em processo de encolhimento” (HELD; MCGREW, 2000, p. 11).
De acordo com esses autores, o desenvolvimento de tal processo suscitou uma sensação generalizada de otimismo nas últimas décadas do século XX, como se caminhássemos para um “espaço social e econômico comum” (HELD; MCGREW, 2000, p. 8). Não é difícil perceber neste tipo de visão as expressões de uma certa confiança de que o desenvolvimento do capitalismo desembocaria, inevitavelmente, em progresso material e melhoria contínua das condições de vida. Como trabalhado por De Souza (2018), uma das ferramentas teóricas mais utilizadas em estudos sobre estratificação social no século XX - a curva de Kuznets - apostava na hipótese de que os processos de urbanização e industrialização nos países centrais levariam gradativamente a uma diminuição das desigualdades sociais.
Contudo, os acontecimentos políticos e econômicos dos últimos anos parecem jogar um grande balde de água fria sobre tal projeção. A partir da década de 1970, acompanhamos o começo de profundas modificações na dinâmica do sistema capitalista. No mundo do trabalho, por exemplo, o processo de reestruturação produtiva do capital (HARVEY, 1992) criou terreno para a intensificação da flexibilização do trabalho, diminuição dos salários e demais processos de precarização (RAMALHO, SANTANA; 2004; ANTUNES, 2018). Junto a isso, o gradativo esfacelamento do Estado de Bem-Estar Social, promovido pela agudização dos conflitos distributivos entre os “dependentes de lucro” e os “dependentes de salário” (STREECK, 2019), abriu espaço para a emergência do neoliberalismo (HARVEY, 2008) cujos impactos incidem sobre o aumento das desigualdades sociais (PIKETTY, 2014) e estagnação das rendas mais baixas (PRZEWORSKI, 2020), dentre outras esferas da vida social.
Neste sentido, as transformações radicais do capitalismo a partir da década de 1970 parecem aproximar as condições materiais dos países centrais das estruturas tipicamente precárias dos países periféricos. Assim, há uma espécie de “subversão negativa” das expectativas otimistas em relação à globalização: em vez de um “transbordamento” do progresso material dos países centrais, observamos um verdadeiro avanço da “condição periférica” sobre o centro do capitalismo. Tal condição diz respeito “à uma forma historicamente determinada de (i) produção social do espaço, (ii) reprodução das relações sociais de produção e (iii) dominação social” (CANNETIERI, 2020), expressando o deslocamento de aspectos típicos da experiência social periférica para os países centrais - tais como, profundas desigualdades sociais, ausência de amparos institucionais, generalização da “viração” em relação à reprodução social (ABÍLIO, 2015), avanço do mercado informal etc.
Vale ressaltar que a constatação de um movimento gradativo de “periferização” do mundo é um tema já debatido por grandes nomes da teoria social - como Paulo Arantes (2021 [2001]), ao falar sobre “a fratura brasileira do mundo”; Beck (1999), com a utilização do termo “brasilianização”; os Comaroff (2012), ao tratarem sobre uma espécie de “africanização” da Europa; Achille Mbembe (2018), com a categoria de “devir-negro do mundo” ao abordar as dinâmicas atuais do neoliberalismo; dentre outros. Neste sentido, parece ser possível afirmar que, atualmente, “um espectro ronda o mundo: o espectro da precariedade” (CANNETIERI, 2020).
2) Desafios para a teoria social e a organização política
Diante de um mundo cada vez mais periferizado, as ferramentas teóricas e analíticas comumente utilizadas no campo da teoria social aparentam não carregar mais o potencial explicativo de outrora - afinal, o “terreno social” sobre o qual pisamos hoje é recheado de desníveis e assimetrias significativamente diferentes daqueles associados à maior parte do século XX. Assim, a “crise do mapeamento cognitivo” (JAMESON, 1996) - isto é, a incapacidade de rastrear e localizar as forças sociais, políticas e econômicas que exercem influência decisiva sobre os fenômenos contemporâneos - nos exige uma postura de atenção em relação às elaborações teóricas produzidas fora do centro do capitalismo (CONNELL, 2012).
Na verdade, se a condição dos países centrais se assemelha gradativamente à experiência social típica dos países periféricos, talvez um dos caminhos mais profícuos seja exatamente analisar de maneira crítica as elaborações teóricas dos pensadores e pensadoras que se debruçam sobre a condição daqueles que sempre estiveram na “arquibancada do progresso”. Se vivemos uma época de transformação profunda das condições materiais do capitalismo tardio, nada mais coerente do que empreender modificações significativas no campo da teoria social (CONNELL, 2012) a fim de criar modelos explicativos do momento atual, lançando mão da postura crítica daqueles que historicamente ocupam a condição de outsiders within (COLLINS, 2016).
Além disso, a ação coletiva também enfrenta grandes desafios diante deste novo “terreno”. No contexto de expansão da precarização estrutural e profunda fragmentação do tecido social, dificuldades logísticas relacionadas à manutenção de uma organização política ganham um peso decisivo - afinal, o ato de “organizar” também significa lidar com diferentes problemas ligados às condições de reprodução social da militância (TUPINAMBÁ; PARANÁ, 2022, no prelo). Neste sentido, se, atualmente, “a sociabilidade capitalista parece cada vez mais prescindir da organização do mundo do trabalho para garantir a organização dos processos de valorização" (TUPINAMBÁ, 2020), então nos encontramos numa situação em que “pela primeira vez na história da modernidade [...] foi imposta à própria esquerda a tarefa de pensar e produzir as condições econômicas e subjetivas da militância política” (PARANÁ; TUPINAMBÁ, no prelo, p. 151).
Portanto, a expansão da condição periférica e as profundas consequências de tal processo para a dinâmica social de maneira geral parecem demandar uma postura crítica que “jogue luz” sobre grupos que há muito tempo desenvolvem práticas e experimentos políticos na periferia do mundo e, assim, “sobrevivem no inferno” do capitalismo tardio. Contudo, a despeito da relevância, a mera visibilidade da experiência periférica parece não ser suficiente para enfrentar os desafios políticos dos dias atuais - é preciso que, através da interseccionalidade entre classe, raça e gênero, ela se consolide como “um dispositivo capaz de produzir experimentos políticos transmissíveis para além das fraturas sociais” (TUPINAMBÁ, 2018).
NOTAS
ABÍLIO, Ludmila Costhek. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015.
ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviço na era digital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2018.
ARANTES, Paulo. A fratura brasileira do mundo: visões do laboratório brasileiro da mundialização. Sentimento da Dialética, 2021 [2001. Disponível em: https://sentimentodadialetica.org/dialetica/catalog/book/81#:~:text=O%20limiar%20entre%20ordem%20e,atua%20agora%20em%20escala%20global.&text=E%20em%20livro%2C%20em%20Portugal%3A%20A%20fratura%20brasileira%20do%20mundo.
BECK, Ulrich. O que é Globalização? Equívocos do globalismo: respostas à globalização. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1999.
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: Rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010.
CANETTIERI, Thiago. Uma maldição tropical: notas sobre o devir-periferia do mundo. Revista Porto Alegre, 2020. Disponível em: http://revistaportoalegre.com/uma-maldicao-tropical-notas-sobre-o-devir-periferia-do-mundo/
COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 31, n. 1, pp. 99-127, 2016.
COMAROFF, Jean; COMAROFF, John L. Theory from the South: Or, how Euro-America is evolving toward Africa. Anthropological Forum, Londres, v. 22, n. 2, p. 113-131, 2012.
CONNELL, Raewyn. A iminente revolução na teoria social. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 27, n. 80, p. 09-20, 2012.
SOUZA, Pedro H.G. Ferreira de. Uma história da desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil, 1926-2013. São Paulo: Editora Hucitec, 2018.
GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991.
HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992.
HARVEY, David. O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2008.
HELD, David; MCGREW, Anthony. Prós e contras da globalização. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Editora Ática, 1996.
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo: n-1 edições, 2018.
PARANÁ, Edemilson; TUPINAMBÁ, Gabriel. Arquitetura de Arestas: as esquerdas em tempos de periferização do mundo. São Paulo: Autonomia Literária, 2022.
PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2014.
PRZEWORSKI, Adam. Crises da democracia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2020.
RAMALHO, José Ricardo; SANTANA, Marco Aurélio. Sociologia do trabalho. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
STREECK, Wolfgang. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019.
TUPINAMBÁ, Gabriel. Não foi preciso esperar 500 anos para concluir que há um grau altíssimo de arbitrariedade entre representantes e representados. Instituto Humanitas Unisinos, 2018. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/584301-nao-foi-preciso-esperar-500-anos-para-concluir-que-ha-um-grau-altissimo-de-arbitrariedade-entre-representantes-e-representados-entrevista-especial-com-gabriel-tupinamba
TUPINAMBÁ, Gabriel. Um pensador na periferia da História. Revista Porto Alegre, 2020. Disponível em: http://revistaportoalegre.com/um-pensador-na-periferia-da-historia/
Victor Pimentel é graduado em Ciências Sociais (IFCS/UFRJ) e mestrando em Sociologia e Antropologia (PPGSA/UFRJ)
Como citar esse texto: PIMENTEL, Victor. (2022), "Crises do capitalismo tardio e a expansão da condição periférica". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/crises-do-capitalismo-tardio-e-a-expansao-da-condicao-periferica
Editor Responsável: Rafael Rezende